Cajá lembra que viu indignação nos rostos das pessoas mais conscientes do alto sertão da Paraíba no dia do golpe. Tinha 14 anos. Um ano antes, participara da campanha pelo não ao parlamentarismo. Lá no distrito de Itaporanga, acompanhava seu pai, Felix, um pequeno camponês adepto do getulismo.
“Entendi que o golpe era uma resposta à luta popular. Não aguentam a democracia. Na hora em que o povo decide recuperar os poderes do presidente Jango, eles vêm com essa retaliação”, afirma.
Edival Nunes da Silva incorporou o “Cajá” ao seu nome por sugestão de dom Helder Câmara, de quem foi assessor durante a ditadura militar. Franzino, ele era um estudante de sociologia que viera de Cajazeiras, no extremo oeste da Paraíba. Dom Helder achou melhor chama-lo de Cajá, uma fruta que só existe no Nordeste, do que apelidá-lo com o nome de sua cidade de origem, como seus amigos e a namorada faziam até então.
Coordenador do Movimento Memória, Verdade e Justiça de Pernambuco, presidente do Centro Cultural Manoel Lisboa e integrante do comitê central do Partido Comunista Revolucionário, ele fala ao TUTAMÉIA sobre sua trajetória, a resistência ao golpe no Nordeste, a convivência com dom Hélder Câmara e a conjuntura atual.
“Quando cheguei a Cajazeiras, para estudar, descobri a luta de classes, porque tem pobre, porque tem rico”, lembra.
Era 1967 e Cajá conheceu um velho comunista, Sabino Rolim, sempre perseguido. “Era um homem de barba branca, que nos emprestava livros. Era preso toda vez que aparecia uma pichação de ‘Abaixo a ditadura’ na cidade”, conta.
Em 1972, Cajá foi para o Recife, matriculado no Ginásio Pernambucano. Dali tinha partido, em primeiro de abril de 1964, a passeata dos estudantes para tentar impedir a derrubada do governador Miguel Arraes.
“Foram recebidos a bala. Jonas José e Ivan Aguiar foram fuzilados, impunimente até hoje. Qual foi o crime deles? Reunir as pessoas que tinham sentimento patriótico, cívico, de liberdade, de impedir a derrubada de um governo eleito. Foram pacificamente, sem armas, e foram recebidos dessa maneira. E ainda têm a cara de pau de dizer que foi a esquerda que iniciou a luta armada, a violência! E o que diabo foi o golpe de 64? O que foi o ceifamento das vidas de Ivan e de Jonas, se não violência?”, pergunta.
Nesta entrevista ao TUTAMÉIA, realizada em sete de fevereiro de 2024, Cajá fala da importância das ligas camponesas e da repressão que o movimento sofreu com o golpe:
“Havia um processo de rebeldia em Pernambuco. Era o único lugar onde os camponeses faziam marcha pela cidade, desfilavam, iam até o palácio e negociavam com os usineiros cara a cara. Havia 47 ligas camponesas”.
Cajá lembra do que ouviu de Clodomir Morais (1928-2016), sociólogo, comunista, deputado estadual, líder das ligas], quando ele voltou do exílio, sobre a dimensão da barbárie provocada pelo golpe de 64:
“Trezentos, quatrocentos foram mortos só das ligas. Era no dedo que assinava. Esse pessoal era levado para o galpão da usina, nem processo abriu. Foram torturados para entregar seus líderes e apareciam no outro dia boiando no rio Uma [no sul de Pernambuco]”.
“Era muito comum um militar chegar na casa de um deles e falar: ‘Se vocês forem em delegacia, em algum lugar, a gente vem buscar o resto da família. Prefere o quê? Ficar calado trabalhando?’. O cara ia embora para outro estado. Não temos como levantar o total dos mortos e desaparecidos das ligas camponesas. E quanto aos indígenas? Quanto você junta as ligas e as perseguições de indígenas chega a 10 mil mortos e desaparecidos. Esse inventário ainda não foi feito. Mas posso dizer que a conta é muito maior do que está aí”, afirma Cajá.
“Foi uma grande frustração para as massas. As ligas eram um movimento de massas. Tínhamos um movimento estudantil de massas. Tinha o Gregório Bezerra, que foi arregimentar homens no campo para resistir, mesmo contra a vontade do seu partido, o PCB. Em Pernambuco, a resistência foi muito encarniçada. Acho que foi o estado em que o povo foi mais massacrado”.
Cajá se tornou militante do Partido Comunista Revolucionário. Foi preso, torturado; ficou um ano em solitária, ainda quando estudante de sociologia. Último preso político libertado após a lei da anistia, recebeu apoio de dom Helder e de Elis Regina (que o homenageou em dois shows). Doze mil estudantes fizeram greve pela sua libertação.
Sobre dom Helder, ele fala:
“Foi terrivelmente perseguido. Sua casa foi metralhada. Eu vi os buracos. Fui assessor dele por seis anos e meio. Ele era um homem honrado”.
O depoimento integra a série “O que eu vi no dia do golpe”, de entrevistas sobre o golpe militar de 1964, que está completando sessenta anos.
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