“É um governo que, em lugar de dar horizontes, fecha horizontes. Em vez de ajudar a comunidade a se tornar mais sólida, a dispersa e desagrega. É um governo de vários bandos que se agregam em torno do Bolsonaro, que tem um projeto de destruição, de desmonte, de esfacelamento. Ele recusa uma sociedade civilizada, equilibrada. Parece intencional provocar mais ruptura, mais cisão, mais perda de referência para as pessoas. Estamos numa situação bastante grave, e já há hoje maior aumento de demanda para atendimentos [psiquiátricos] individuais. Não acho que aumentar o número de consultas individuais vá resolver o problema. É preciso que se abram caminhos de maior solidariedade, de mais conforto, que as pessoas se confortem mutuamente, ganhando confiança uns nos outros. Hoje o que se faz é o contrário: é aumentar a desconfiança uns nos outros. Tantos psiquiatras que tiverem não vão dar conta do volume de desconfiança, de medo e de insegurança que está se gerando”.

As palavras são do médico psiquiatra Roberto Tykanori Kinoshita ao TUTAMÉIA. Professor adjunto da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp/Baixada Santista) e ex-coordenador da Coordenação Geral de Saúde Mental, Álcool e outras Drogas do Ministério da Saúde, ele afirma que as tensões, amplificas na pandemia, devem ser avaliadas num contexto mais amplo:

“O neoliberalismo incute medo, insegurança contínua. As pessoas vão perdendo racionalidade e o senso de civilidade por causa desse grande medo difuso de insegurança contínua e de perda de referências. O negacionismo tem a ver com esse estado afetivo muito negativo, muito tomado de medo. Há uma exacerbação da sensação de insegurança, da perda de referências, da sensação de ameaça. Isso faz com que as pessoas fiquem muito ansiosas, muito angustiadas. Aumenta o consumo de substâncias, aumentam comportamentos para extravasar esse estado. E traz muito sofrimento, porque as pessoas acabam brigando.  Vão se rompendo os laços sociais por causa dessa sensação de insegurança muito grande. Se as lideranças da sociedade não têm uma voz que organize, que dê segurança, que dê organicidade aos indivíduos, as pessoas vão cada vez mais para a barbárie”.

Nesta entrevista (acompanhe a íntegra no vídeo acima e se inscreva no TUTAMÉIA TV), Tykanori analisa as respostas para a pandemia, aborda os interesses por trás das tentativas de retrocesso no âmbito da reforma psiquiátrica, nas conquistas da luta antimanicomial e nas políticas de redução de danos. Fala dos mecanismos que envolvem a adição a drogas e declara:

“O proibicionismo traz medo, culpa e vergonha. Romper com o proibicionismo é tentar romper com uma cultura que se funda na culpa, no pecado, na noção de que as pessoas não podem e não devem fazer certas coisas. É preciso entender que essa cultura proibicionista não beneficia ninguém. Além de não beneficiar do ponto de vista direto, ela serve para justificar toda a opressão de classe, pois a maior parte dos jovens presos nos últimos anos são negros e pobres”.

DESIGUALDADE, SOFRIMENTO E DEPRESSÃO

Na visão do psiquiatra, a pandemia trouxe um contraste entre os países orientais e ocidentais. “Os orientais têm uma cultura muito voltada para a vida comunitária. A comunidade vem antes dos indivíduos. A comunidade responde rapidamente. No lado ocidental, há séculos vem se apostando nesse liberalismo individual. Há a percepção de que uma regra coletiva, um bem coletivo é secundário em relação ao bem privado, individual. Isso causou muitos problemas. O pensamento individualista faz com que as pessoas resistam muito a ações que visam um bem coletivo”, diz.

No Brasil, avalia, a situação fica muito pior por conta das desigualdades. “Existem estudos epidemiológicos que mostram que quando a desigualdade é muito grande, os parâmetros são piores nas sociedades mais desiguais do que nas igualitárias. Os ricos, nos países desiguais, têm mais problema dos que os ricos nos países mais equitativos. O mesmo para os pobres. O efeito da desigualdade traz um mal que está associado a essa mentalidade mais individual, mais liberal. Na desigualdade, os indivíduos precisam estabelecer mecanismos de validação social. Numa sociedade super concorrencial, é cada um por si”.

Esse quadro explica comportamentos na pandemia. Fala Tykanori:

“Num país desigual como o nosso, é mais exasperada essa disputa por mecanismos de status e validação em pequenos signos e sinais. É muito difícil as pessoas deixarem de consumir, de fazer coisas que trazem marcas individuais e status, em prol de um bem comum. Você vai parar de fazer as coisas, vai ter que se restringir, parar de circular, aparecer, conquistar pequenos signos de status, o que é muito importante numa sociedade muito desigual. Diz do quanto o a nossa sociedade carece de afetos coletivos, de validação mútua. Isso traz consequências muito importantes em relação a sofrimento, à depressão, consumo de substancias, suicídios. E o Brasil é um dos campeões de desigualdade”.

EXACERBAÇÃO DO NEOLIBERALISMO CORRÓI CIVILIZAÇÃO

O psiquiatra nota que existe uma decadência na cultura civilizatória que emergiu a partir da Revolução Francesa. Recorda que, nos anos 1980 na Itália, era inconcebível, por exemplo, aceitar que uma pessoa dormisse na rua durante o inverno –o que não ocorre mais hoje, quando a população de rua cresce e é hostilizada. “Na Europa, o neoliberalismo corroeu as bases que foram construídas durante do século 19 para o 20, uma história de respeito, de dignidade, uma certa noção de civilidade como meta. Isso foi sendo corroído. Houve uma barbarização impressionante das relações. Foi se perdendo o pudor em relação a essas questões que são bárbaras”.

Para ele, “a corrosão desse espírito de civilização tem a ver com a exacerbação do neoliberalismo, com essa financeirização do processo da vida. As pessoas vão perdendo a noção do que é o valor. O valor de uso se perde e você fica só com o valor de troca. O que resta é uma noção de sobrevida, não de vida. Nessa situação de muito medo, de muita insegurança, de extrema ameaça, as pessoas negam a racionalidade porque a razão não organiza a conduta das pessoas. O que organiza a conduta das pessoas são as emoções, os afetos. Para que a razão possa imperar, as pessoas precisam estar num estado afetivo adequado para serem racionais. Se você está com medo, assustado, desesperado, a única racionalidade é sobreviver”.

CULTURA PROBICIONISTA NÃO BENEFICIA NINGUÉM

Na conversa com o TUTAMÉIA, o psiquiatra tratou dos mecanismos que provocam a adição às drogas.

“A pessoa está infeliz, não tem emprego, não consegue ser provedor, não consegue se prover, não tem um amor. Pode apelar para uma sustância X. Se ela parasse aí, e não houvesse toda essa cultura proibicionista, talvez ela passasse o dia com uma ressaca e, no dia seguinte, segue a vida. Como depois que faz o consumo ela vai se defrontar com uma sociedade que é toda proibicionista, negativa à essa conduta, ela vai, necessariamente, sofrer mais do que antes. Além de ter o sofrimento primeiro, que era das suas carências, das suas necessidades, gera-se um sofrimento de ordem moral, que é da ordem da criminalidade, da desqualificação enquanto pessoa. Daí que, de um problema, se tem dois. Então bebe mais, consome mais para escapar disso, dessa dor, desse sofrimento e vai aumentando. É uma espiral de consumo contínuo”. E enfatiza:

“É preciso entender que essa cultura proibicionista não beneficia ninguém. Além de não beneficiar do ponto de vista direto, ela justifica toda a opressão de classe, a maior parte dos jovens presos nos últimos anos são negros e pobres. Ela não faz com que se tenha menos consumo, menos venda e menos problemas. As pessoas que têm problemas com drogas são em número mínimo em relação aos consumidores. O mercado de droga é gigante, movimenta milhões. A grande parte dos consumidores não tem problemas. Quem tem problema não é por causa do que consome; é porque consome sob certas condições”.

Tykanori segue:

“Existem personagens na sociedade que têm grande poder político, social, econômico. A pessoa consome e vai para o pronto socorro e, no dia seguinte, segue trabalhando. Não tem a menor culpa de ter consumido. O fato de a pessoa ter muito poder, ser branco, ter família poderosa faz com que ela, no dia seguinte, não tenha uma questão moral. Quem tem muito poder não tem culpa nem vergonha nem medo. Não fica preso nisso. Quem não tem poder, quem não tem recurso, ao ser colocado sob essa pressão proibicionista, criminalizante, desmoralizante é onde começam, de fato, os problemas de ficar preso nesse círculo vicioso. A droga em si traz alterações biológicas? Sim, mas é uma parte menor do que aquilo que é a construção social cultural e proibicionista que está sobre a população que consome”.