O governo Bolsonaro executa no país um projeto de extermínio da soberania nacional. E uma das evidências disso é o ataque à educação, às universidades federais, à produção científica, à construção da inteligência nacional, pois o século 21 não vai permitir a existência de nações soberanas que não tenham capacidade de prover a sua própria inteligência.

É o que afirma MIGUEL NICOLELIS, um dos maiores cientistas do planeta, colecionador de prêmios pelo mundo afora e responsável por um projeto quase miraculoso, o Walk Again –Andar de Novo–, que conseguiu fazer com paraplégicos andassem novamente.

Em entrevista ao TUTAMÉIA (veja a íntegra no vídeo no alto desta página), o fervoroso palmeirense contou algumas das mais recentes conquistas de seu trabalho –que começa a ser adaptado para aplicação em outras patologias neurológicas—ao mesmo tempo em que denunciou o projeto de destruição da ciência nacional que vem sendo aplicado no país desde o golpe contra a presidenta Dilma, agora aprofundado pelo governo Bolsonaro.

Traçou o quadro dramático da atual situação, cujo objetivo, no entender dele, é fazer do país uma espécie de colônia informal dos Estados Unidos: “Basicamente o plano é transformar a gente num Porto Rico gigantesco, num protetorado sem representação política. Um protetorado informal, porque ninguém vai anexar o Brasil porque não precisa. Nessas condições, não precisa, pois você tem aqui um exército de X-9 dispostos a entregar tudo o que estiver disponível.”

O desmonte do sistema educacional e dos projetos de iniciação científica, notadamente o Ciência sem Fronteiras, é parte essencial desse projeto: “Para mim, é cartesiano, é linear: se você mina a formação de mentes críticas, você mina a capacidade de gerar reivindicações que poderiam levar a uma nação, que poderiam criar um projeto de nação”.

A destruição vai em ritmo acelerado, mas há resistência, nota Nicolelis, deixando uma mensagem para a juventude, os estudantes, os jovens cientistas, para aqueles que amam o Brasil:

“Lutem! Continuem protestando. Continuem tentando fazer a sua voz ser ouvida. Não tem outra saída. Não tem outra saída. Se a gente quer manter essa identidade, pouca, mas que ainda existe, de algo que nos une chamado Brasil, não tem outra saída. Porque os caras não vão entregar de mão beijada, isso está óbvio. Se a gente não continuar se manifestando, a gente nunca vai ser ouvido.”

Feito esse resumo de nossa conversa de quase duas horas, reproduzimos a seguir alguns dos trechos da entrevista.

AVANÇOS DO PROJETO WALK AGAIN

O Walk Again –andar de novo—é um projeto criado com um consórcio internacional que, na época, envolveu mais de 150 pessoas de 25 países, principalmente para desenvolver novas técnicas de reabilitação para pacientes com lesão medular.

Essa era a ideia inicial. No começo, a gente planejou e fez uma demonstração na abertura da Copa do Mundo de 2014. O Juliano Pinto uso um exoesqueleto de membros inferiores controlado diretamente pela atividade do cérebro. Ele era um paraplégico de nível alto,  T4, que conseguiu não só dar o chute inicial na Copa, mas também, tanto ele quanto os demais sete pacientes que participaram do projeto se transformaram em um símbolo para nós, porque eles aprenderam a usar essas novas técnicas de neurorreabilitação. Eram todos capazes de dar aquele chute, depois de seis meses de terapia.

Mas o que nos surpreendeu logo depois da Copa é que eles estavam tendo uma recuperação funcional neurológica que ninguém tinha descrito na literatura.

Em 2016 nós publicamos um trabalho mostrando, pela primeira vez, a recuperação de movimento, sensibilidade, controle de bexiga e de funções intestinais. Eles começaram a recuperar abaixo da lesão. Esse artigo foi notícia no mundo inteiro. Foi talvez o artigo científico brasileiro mais noticiado na história, nosso vídeo foi visto por 93 milhões de pessoas no mundo.

Ganhamos vários prêmios internacionais desde a Copa até hoje. Começou com o prêmio da maior sociedade de engenharia dos Estados Unidos, de novas tecnologias emergentes, que eu recebi na China em 2015, e culminou agora, em março último, com o prêmio do Bell Labs, que é  talvez o laboratório privado mais conhecido dos Estados Unidos –foi criado pelo Graham Bell quando ele criou a empresa de telefonia dele, onde basicamente se perenizou a pesquisa computacional de ponta e onde foi desenvolvido o transístor, circuitos digitais, a teoria da informação. Eu tive a honra de receber lá o prêmio Claude Shannon, nomeado em homenagem ao matemático que é considerado o pai da teoria da informação.

Recebi o prêmio em março, na sede original do Bell Labs em New Jersey, e logo depois, em maio, nós publicamos o nosso trabalho definitivo sobre o projeto mostrando que todos os pacientes recuperaram mobilidade –TODOS.

Em novembro passado havíamos publicado um trabalho clinico mostrando que todos tinham recuperado controle motor abaixo da lesão, sensibilidade. Nesse trabalho de maio deste ano nós mostramos dois pacientes andando sem o exoesqueleto!!

Eles recuperaram tanto a mobilidade que nós fomos capazes de usar uma tecnologia não invasiva, de estímulo eletromuscular –desenvolvida em conjunto com um grupo da Suíça—que eles não precisavam do exo. Eles, com a mente, controlavam esse sistema de estimulação e, com um carrinho desses de apoio –um carrinho de dez dólares—e com apoio para suspender o corpo e manter 50% do peso no chão, eles conseguiram andar autonomamente.

O projeto Andar de Novo cumpriu a sua profecia. A gente foi muito criticado, imprensa e muitos dizendo “imagine, paraplégico andar de novo”. Bom, eles andaram. E agora esse sistema de reabilitação está se espalhando pelo mundo.

Nós queremos agora adaptá-lo para outras patologias neurológicas –por exemplo, derrame—e nós já temos uma nova terapia, já usada por mais de cem pacientes no mundo, que foi lá do laboratório da Duke [University, onde Nicolelis atua], para [o mal de] Parkinson. Então estamos começando a abrir o leque de uma maneira…

MARAVILHAS DO CÉREBRO HUMANO

E o que a gente descobriu –é um trabalho que está para ser publicado a qualquer momento –, nós descobrimos que há uma reorganização do cérebro como um todo nesses pacientes. Não foi só na medula espinhal. O que vai ser um choque na literatura especializada, porque nós vimos que TODO o cérebro desses pacientes se readaptou ao fato de eles estarem sendo treinados com a combinação de uma interface cérebro-máquina e realidade virtual que ALTEROU a forma como o cérebro planeja o movimento. Plasticamente alterou o cérebro inteiro!

São alterações que eu nunca imaginei ver, porque elas não são localizadas só na parte motora. Elas são localizadas ao longo do córtex como um todo. O cérebro se autorreorganizou para ter uma nova definição de corpo, te ruma nova definição do senso de ser  –que é um trabalho que a gente também publicou: esses pacientes readquiriram a sensação de ter um corpo íntegro. Quando você tem uma lesão medular, o seu cérebro começa a ignorar tudo o que está paralisado; então, se você uma lesão cervical, você é só sua cabeça; a sua definição de ser fica a restrita a esse espaço e ao espaço em torno de sua cabeça.

Nós conseguimos demonstrar que a definição do senso de ser ampliou-se em paralelo à recuperação da mobilidade e da capacidade sensorial dos pacientes. E isso é revolucionário porque mostra que a plasticidade cerebral é muito mais ampla do que a gente imaginava a até recentemente.

Eu passei trinta anos estudando plasticidade cerebral e eu precisei voltar para o Brasil fazer um estudo clínico aqui, onde eu me formei, para ver que a dimensão dessa plasticidade é muito maior. E ela não é, como a gente imagina, restrita apenas aos neurônios, à substância cinzenta; ela inclui as fibras, os nervos que comunicam as diferentes regiões do cérebro. Ou seja: o tráfico de informação no cérebro é modificado. É como a internet: se você perde um servidor, a internet retransmite por outros servidores, faz um novo roteamento. É isso que estamos descobrindo, é um novo estudo que estamos terminando…

NOVO LIVRO SAI EM 2020

Eu terminei o meu livro [sobre isso]. Deve sair aqui no começo de 2020, pela Planeta, e o título é “O Verdadeiro Criador de Tudo – Como o Cérebro Humano Esculpiu o Universo que Nós Conhecemos”.

Cada um de nós tem uma definição de existência física que é um modelo neurobiológico criado pelo cérebro. E que é muito fluido, você consegue mudar esse modelo, nosso senso de ser, muito rapidamente. Agora, o que a gente não sabia é que, em pacientes que tinham lesão medular havia mais de uma década, a gente seria capaz de reformatar esse senso de ser a ponto de a pessoa dizer para nós: “Olha, eu estou sentido agora que eu tenho pé de novo”! Ou “Eu estou sentindo meu joelho flexionar”. Mesmo antes do joelho estar flexionando; quer dizer: o cérebro se adianta. Nós descobrimos que esse senso de selfie (ser) está prevendo até onde a recuperação vai chegar. Quer dizer: quando ele está te dizendo que você tem joelho, a recuperação só chegou no quadril; quando ele está te dizendo que você tem tornozelo, a recuperação só atingiu os músculos ao redor do joelho. Mas, alguns meses depois, a gente nota que a recuperação atingiu o que o cérebro estava prevendo que ia atingir. É uma coisa sensacional. Uma abstração. O cérebro cria uma abstração futura, antes mesmo de o processo de reabilitação ser culminado; ele está prevendo até onde vai chegar essa reabilitação.

A repercussão está sendo impressionante. Eu saio do Brasil para dar palestras no mundo inteiro, e nós estamos tentando agora fazer o Walk Again 2.0, que é ampliar o leque das terapias para outras doenças neurológicas.

A gente está querendo ter parcerias mundo afora porque se transformou num troço muito mais amplo do que a gente imaginava. E eu tenho muito orgulho de dizer que tudo foi feito –apesar das colaborações com europeus, norte-americanos–, tudo foi feito aqui, em um laboratório no Brasil, com todo o estafe brasileiro, com engenheiros, médicos, profissionais de reabilitação, fisioterapeutas, todos daqui. E ganhou o mundo. Nosso protocolo já tem um nome, que é o Protocolo de Reabilitação Andar de Novo –que dizer, já se transformou num troço que é citado, nosso trabalho de 2016 já tem quase 170 citações [em outros trabalhos científicos] em três anos, o que é muito rápido, é um negócio explosivo.

Isso mostra claramente que você pode fazer ciência de altíssimo nível aqui, sem ter nenhum drama de colaboração, de ficar abaixo de ninguém no mundo. É só uma questão realmente de você ter os elementos fundamentais para fazer ciência, que é gente, infraestrutura e dinheiro.

DESTRUIÇÃO DA CIÊNCIA NO BRASIL

A coisa mais dramática, mais triste, de uma angústia profunda, é receber mensagens no Twitter, no e-mail, no Facebook, mensagens de jovens cientistas brasileiros basicamente desesperados.

Gente da geração do Ciência Sem Fronteira, que foi reconhecido no mundo inteiro como um dos maiores, se não o maior programa de fellowships científicos do planeta. Foram 108 mil bolsas concedidas. Onde eu ia dar palestras pelo mundo encontrava um brasileiro. Fui uma vez no interior do Canadá, a 200 km de Calgary, no meio de lugar nenhum, uma universidade quem ninguém conhece: tinha cinco brasileiros. Eu ia na Harvard, uma vez por ano vou na Harvard dar uma aula no curso de neuroprótese, meu deus do céu, o auditório! Metade é brasileiro. Onde quer que eu fosse…

E essa juventude, que apostou na carreira científica, que apostou em fazer doutorado, pós-doutorado, sair do Brasil para ver o que tem acima das nuvens, e que estava preparada para voltar ao Brasil e pegar o bastão da minha geração –eu tenho 58 anos–, essa geração de repente não tem o barco e não tem o porto para voltar.

O que eu vejo é um número muito grande de jovens cientistas brasileiros que não têm para onde ir, não têm emprego… Quem conseguiu emprego nas federais está desesperado porque as federais estão sendo sufocadas, estão sendo asfixiadas.

Saiu a notícia na “Nature”, que foi um escândalo mundial, que em setembro, outubro, as universidades federais não têm mais como funcionar. Isso não existe em lugar nenhum do mundo!

INOVAÇÃO E SOBERANIA NACIONAL

Você não valoriza as universidades! Aqui, você fala das universidades… Quem está disposto a verdadeiramente defender a única fonte de produção de inovação verdadeira da sociedade brasileira, que são as universidades federais? Não estou dizendo que não tem inovação nas universidades privadas, mas não dá nem para comparar. Se você não tiver um sistema de base, que, no Brasil, se chama sistema universitário federal, você não gera inovação.

Se você não gera inovação, você PERDE sua soberania e você não existe como nação. O século 21 não vai permitir a existência de nações soberanas que não tenham capacidade de prover a sua própria inteligência.

O Ciência Sem Fronteiras era um projeto para que os estudantes, os jovens cientistas conhecessem o que o mundo era capaz de fazer, para você criar uma inteligência, a futura inteligência nacional. Porque, sem isso, você não tem uma nação.

No mundo atual, se você não tem a capacidade de inovar, do ponto de vista científico, tecnológico e cultural, e produzir as inovações necessárias para você alavancar a felicidade humana, o desenvolvimento da condição humana, você não tem uma nação.

Porque a educação está sendo alvo do governo Bolsonaro?

Para mim é cartesiano, é linear: se você mina a formação de mentes críticas, você mina a capacidade de gerar reivindicações que poderiam levar a uma nação, que poderiam criar um projeto de nação.

Nós sempre fomos vistos, tanto pelas elites nacionais quanto pelos de fora, como um país periférico, um país que deveria existir como país, nós nunca cristalizamos uma nação. É um país para ser explorado. Nós temos as maiores reservas proteicas do mundo; nós temos o pré-sal, estamos falando de um potencial de 100 bilhões de barris; o capital geopolítico deste país é gigantesco. Então, se você não educa, se você não cria uma inteligência nacional, você nunca vai criar uma nação ou não vai sustentar uma nação que já exista.

O que há é um projeto de dominação, um projeto de extermínio da soberania. Que é o projeto atual, Bolsonaro é só o fantoche, que está permitindo… Os generais de 64 não visavam exterminar a nação brasileira. Nenhum governo no mundo bate continência para a bandeira de outro país. Quem? Que estadista? Que presidente? Ninguém vai na CIA… Nunca nenhum ministro da Justiça ou presidente fora visitar.

GEOPOLÍTICA

Para mim, a gente subestima, dentro do Brasil, a importância geopolítica que o Brasil tem no mundo. Essa não é uma questão local. O brasil não é um paiseco. Mesmo depois do absurdo que vem sendo acontecendo depois das eleições, mesmo depois da perda da credibilidade do governo brasileiro, a perda da imagem nacional, pela própria dimensão e pela capacidade de produzir coisas importantes para o mundo, o Brasil é relevante.

Então nada que acontece aqui pode ser analisado sem se pensar na geopolítica do momento no mundo. É só ver o papel fundamental que o Brasil tinha nos Brics.

FUTURO AMEAÇADO

De volta à ciência: não é só uma catástrofe desta geração. Se você não tiver essa futura geração, que está sucedendo a minha, não vai ter a seguinte, não vai ter quem formar. Não vai ter professores, não vai ter pós-graduação. Não vai ter gente que vai sair da universidade para criar sua própria empresa, gente que vai criar os mecanismos ambientais, energias alternativas que o Brasil tem todas as condições para ser líder mundial –e estava para ser.

Isso favorece um projeto de colonização. Basicamente o plano é transformar a gente num Porto Rico gigantesco, num protetorado sem representação política. Um protetorado informal, porque ninguém vai anexar o Brasil porque não precisa. Nessas condições, não precisa, pois você tem aqui um exército de X-9 dispostos a entregar tudo o que estiver disponível. Tudo o que vale, porque a miséria ninguém quer compartilhar, as mazelas sociais de uma país como o nosso…

MENSAGEM AO JOVENS

O que falar para os jovens, para os pais desses meninos que foram para fora:
Lutem! Continuem protestando. Continuem tentando fazer a sua voz ser ouvida. Não tem outra saída. Não tem outra saída. Se a gente quer manter essa identidade, pouca, mas que ainda existe, de algo que nos une chamado Brasil, não tem outra saída. Porque os caras não vão entregar de mão beijada, isso está óbvio. Se a gente não continuar se manifestando, a gente nunca vai ser ouvido.