“Os psicopatas têm um gosto pela crueldade, não têm sentimentos sociais como culpa, vergonha, às vezes nojo também não. Têm uma racionalidade extremamente egoísta e manipulativa. Não medem consequências muitas vezes. Principalmente não respeitam a lei. Identificam a si mesmos como autores da lei. Têm esse apossamento. É o pior diagnóstico para uma personalidade antissocial. Eu acho que não [que Bolsonaro não é psicopata]. Ele sofre de uma coisa muito menos espetaculosa, menos fulgurante. Tem traços de perversão, óbvio, mas tem uma limitação cognitiva e relacional. É o que o [Jacques] Lacan chamaria de um canalha, um canalha no sentido clínico do termo”.

É o que afirma o psicanalista Christian Dunker ao TUTAMÉIA. E o que é um canalha no sentido clínico? “É aquela pessoa muito pequena do ponto de vista da capacidade de raciocínio e que justamente a gente não aceita para análise porque, quando você aceita, o que sai é um bobo. Uma pessoa tola. Isso está presente nele. Uma limitação muito grave. Não me parece uma psicopatia porque ele tem dentro dessa pequenez um apego mórbido com os filhos e com a família. Psicopatas passam inclusive por cima da família. Matam pai e mãe se for o caso, filho fica pelo caminho. Verdadeiros psicopatas não têm essa loucura com o funcionamento grupal familiar”.

O psicanalista segue:

“O diagnóstico secundário que eu proporia é de paranoia sistêmica. Alguém que está há tanto tempo vivendo num universo institucional onde as pessoas são números, onde o que vale são curvas, onde os interesses são completamente opacos, que precisa replicar inimigos e aplicar a lógica persecutória para produção de inimigos e formar o fortalecimento de uma família ampliada”.

“O diagnóstico de terceiro nível é que é um narcisismo infantilóide. Todo mundo reconhece isso no idiota da quinta série que fica falando: “ÓOhh, eu sou mais macho que você, vou arrancar a sua calça para baixo, você vai ver que o meu pinto é maior do que o seu”. Obviamente, é uma masculinidade frágil. Que acaba sendo imposta a todo mundo com uma coisa meio obscena, meio fora de lugar”.

Professor na USP, Dunker está lançando “Uma Biografia da Depressão” (Paidós). Nesta entrevista (acompanhe no vídeo e se inscreva no TUTAMÉIA TV), ele fala de seu novo livro, analisa a situação do país, avalia o bolsonarismo e faz um apelo:

“É momento de gravidade. A gente está num deserto que onde não se vê o fim. Estamos em três, quatro semanas cruciais. Chegou a hora de cada um dar a sua parte. Chegou a hora de falar com as pessoas que estão na rua sem máscara. Chegou a hora de não tolerar mais a licenciosidade com aglomerações, não tolerar mais as pessoas que Estão aí sendo inconsequentes com a pandemia. É uma espécie de governo paralelo que a gente precisa agora. Os cidadãos brasileiros precisam tomar as rédeas do que está acontecendo. Tem muita gente boa tentando reverter, trabalhando na saúde. Mas agora chegou a hora de cada um fazer a sua parte. Fica em casa e não deixa ninguém sair, porra!”.

NECROPOLÍTICA E NURENBERG

Sobre a situação do país, ele declara:

“No começo, [Bolsonaro] parecia meramente desorientado. Mas aos poucos ele vai mostrando que de fato está aplicando com todas as letras uma necropolítica. Está interessado na ponta do lápis em fazer morrer pelo menos um milhão de brasileiros. Para isso, ele ataca as nossas estruturas já fragilizadas, tanto em termos institucionais, [com queda nos] repasses, redução de agentes de saúde. Agora é um espetáculo dantesco. O Brasil com ministros que não entendem nada de saúde pública que não sabem como funciona o SUS. Colocou-se agora um representante da indústria farmacêutica, que não entende nada de saúde pública. É uma coisa espantosa”.

Dunker segue:

“A gente tem uma vacina, que está sendo fabricada e que vai pôr fim a isso, que é a vacina de Nuremberg. Ela pode demorar, mas vai chegar. A história pode demorar um tempo, mas ela não falha. Esses criminosos vão a julgamento. Pode ser daqui dois anos, quatro anos. Mas a gente está no nível que temos que localizar os colaboracionistas”.

BOLSONARISMO ASSOREADO

Ao avaliar a pulsão de morte que envolve o bolsonarismo, Dunker afirma:

“O bolsonarismo tem uma relação de posse com o Brasil, com as leis, com as instituições, com a Constituição. É tudo meu! O que faz a pulsão de morte quando a gente a dissocia dessa forma. Não basta ter, é preciso abusar. A prática do poder é sempre ir além de onde ele pode. Esse é o discurso do começo ao fim. Vamos fechar o Supremo, vamos atacar o outro. É a tentação permanente de abusar do poder”.

“Quem faz isso está ao mesmo tempo se desautorizando. Está dizendo assim: “Eu tenho menos poder do que eu realmente achava que tinha. Por isso eu estou colérico, bravo”. O que acontece é abuso de poder e impotência de autoridade.  Na hora que você precisa que a pessoa obedeça a sua palavra, ela não obedece. Estamos à deriva. Obedeço à pancada, à força. Então vai ter que gastar muita força para as pessoas continuarem operando os seus lugares”.

“É o que está assoreando o bolsonarismo. Ele perde cada vez mais autoridade dentro da sociedade brasileira. Ele é cada vez mais ridicularizado nas ruas, cada vez menos arrogante, ele perde espaço nas redes sociais a olhos vistos. Este processo, a gente conhece essa curva. Quando a gente chega a 30%, ela se inverte completamente. O bolsonarismo não consegue ser uma minoria, uma excepcionalidade. Para sobreviver como império, tem de se imaginar maior do que ele é”.

NEOLIBERALISMO E DEPRESSÃO

Em “Uma Biografia da Depressão”, Dunker traça a história da condição e mostra como ela foi colocada em destaque com a ascensão do neoliberalismo. O marco inicial nessa trajetória de alta ocorreu em 1973, quando o neoliberalismo começou a estruturar a implantação de seu primeiro laboratório em céu aberto: a ditadura de Pinochet no Chile.

O neoliberalismo, enfatiza o psicanalista, também é um tipo de psicologia, de moralidade e forma de vida. “Não basta consumir e produzir de forma neoliberal, é preciso viver de forma neoliberal. Isso significa olhar para a sua vida como se ela fosse uma empresa: está dando lucro, prejuízo, está investindo, qual o risco tributário, qual o risco trabalhista. Internalizaram a lógica da empresa na administração do seu sofrimento”.

Se no liberalismo havia preocupação com alguma proteção do trabalhador –criação de fundos de pensão, de ambientes com ergonomia etc.–, o neoliberalismo a destruiu.

“O neoliberalismo descobriu que isso não é tão bom para os negócios. E se a gente inocular mais sofrimento no trabalhador, de propósito, com método cientifico. Demito 20% da empresa, jogo um departamento conta o outro, crio bônus erráticos, microgestão. Se eu faço as pessoas sofrerem mais elas produzem mais. Ficam com medo de perder o emprego, trabalham no fim de semana, aceitam jornadas espúrias e contratos precarizados em nome de uma engenharia de administração do sofrimento dentro do trabalho. Essa máquina tem uma forma de sofrimento que é aquela necessária para esse sistema, a mais visível dentro deste sistema. Essa patologia é a depressão”.