“Eu participei da reunião da CNBB, em abril de 1964, onde se debateu se a CNBB deveria ou não apoiar o golpe militar. A maioria votou pelo apoio ao golpe. Acontece que as bases da igreja eram muito progressistas, principalmente o pessoal da ação católica. Havia bispos de extrema direita, como dom Vicente Scherer, no Rio Grande do Sul, e bispos de esquerda, como dom Helder Câmara, em Pernambuco. Havia uma tensão muito grande. Os bispos brasileiros eram muito divididos ideologicamente”.
Palavras de Frei Betto ao TUTAMÉIA. Frade dominicano, jornalista e escritor, Carlos Alberto Libânio Christo, 79, fala de sua trajetória como liderança estudantil, de sua militância na igreja católica no enfrentamento à ditadura, de suas prisões e da conjuntura atual.
“Bolsonaro foi eleito em 2018 porque nós, da esquerda, nós progressistas abandonamos o trabalho popular. Ou todos nós trabalhamos para semear um futuro melhor para as futuras gerações ou esse país corre o sério risco de voltar a viver sob uma ditadura, sob o tacão setores militares extremamente descomprometidos com a democracia”, afirma em conversa gravada em 13 de fevereiro de 2024.
Em primeiro de abril de 1964, Betto estava no congresso latino-americano de estudantes em Belém, no Pará. “Eu era dirigente nacional da JEC, Juventude Estudantil Católica, hospedado na casa do arcebispo dom Alberto Ramos. Quando houve o golpe, o congresso foi literalmente desbaratado, cada um se mandou para onde podia. Saí da casa do arcebispo, porque ele começou a delatar padres como subversivos”, diz. Betto relembra: “Eu tinha ido para Belém com uma passagem concedida pelo Betinho. Nós éramos muito amigos, e ele era chefe de gabinete do ministro Paulo de Tarso dos Santos, da educação. Fui à agência da Varig para tentar retornar ao Rio, onde eu morava. A agência estava absolutamente lotada e um dos atendentes me disse: ‘Sua passagem não pode ser mais usada porque ela foi concedida pelo poder executivo anterior’. Ele carimbou a palavra “cancelado” na capa da passagem. Eu, um pouco desesperado, foi uma intuição, não raciocinei muito: rasguei a capa e estendi mão para outra atendente –e ela marcou a passagem com conexão no Recife. Uma enorme coincidência: era a posse de dom Helder Câmara como arcebispo do Recife”.
Ele continua: “A JUC, Juventude Universitária Católica, tinha criado um braço político independente da igreja chamado Ação Popular. Betinho foi um dos fundadores desse movimento de esquerda que depois adquiriu um caráter marxista e chegou até a ter um segmento maoísta. A ditadura não fazia diferença entre Ação Católica e Ação Popular. Tanto que o apartamento que eu morava no Rio, que abrigava as direções nacionais da JEC e da JUC, foi invadido no dia 6 de junho de 1964 pelo serviço secreto da marinha, o Cenimar”.
“Fomos acordados às 4 horas da madrugada com metralhadoras e levados todos presos para a Praça 15, onde ficava o Cenimar. Foi a minha primeira prisão. Fui preso duas vezes durante os 21 anos de ditadura. Fomos interrogados sob tortura. Fui confundido como sendo o Betinho”.
“Depois, em 1969, já como frades dominicanos, formos presos Foi a primeira vez na história que frades católicos dominicanos, presos em São Paulo, foram acusados de terroristas”.
Segue Betto: “A repressão, no início, ficou muito grata porque os bispos tinham dado apoio ao golpe. Mas logo começaram a desconfiar que a igreja fazia jogo duplo. Na verdade, a igreja era dividida. Havia sacerdotes, leigos, religiosas que eram progressistas, de esquerda. Sobretudo as comunidades eclesiais de base, que estavam se iniciando naquele período”.
“A repressão começou a considerar que a igreja católica, na verdade, era uma estrutura de esquerda que alguns na cúpula faziam de conta que apoiavam a ditadura, mas estavam todos contra a ditadura. Até porque comparavam a igreja a uma estrutura de caserna. Achavam que uma instituição religiosa funciona como um quartel. Não é assim. Há muitas contradições dentro das instituições religiosas”.
“Naquela época, a igreja católica tinha ampla hegemonia religiosa no Brasil. Era extremamente forte o peso da igreja católica. Incomodava a ditadura o fato de ter bispos, cardeais como dom Aloísio Lorscheider, dom Paulo Evaristo Arns, que eram abertamente críticos à ditadura”. “Hoje a igreja católica é um corpo conservador com uma cabeça progressista. É um ser esdrúxulo”.
O depoimento integra a série O QUE EU VI NO DIA DO GOLPE, em que TUTAMÉIA apresenta depoimentos de figuras como Almino Affonso, João Vicente Goulart, Anita Prestes, Guilherme Estrella, Sérgio Ferro e Rose Nogueira.
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