“Existe uma linha paralela, uma conexão entre o atentado no Riocentro e o assassinato de Marielle: é esse radicalismo extremista paramilitar armado. O caso Riocentro, embora as autoridades estivessem cientes do que iria acontecer, foi um atentado fora da cadeia de comando. A gente pode entender que ele foi planejado por uma organização paramilitar. Eu vejo nesse grupo, o grupo da chamada Direita Explosiva do Brasil, uma espécie de embrião das milícias, num modelo muito parecido com o que a gente vê hoje aqui.”

A avaliação é do jornalista Chico Otavio, autor de reportagens que, em 1999, revelaram os bastidores do fracassado atentado terrorista contra o show no Riocentro, há quarenta anos, em 30 de abril de 1981. A série investigativa, realizada com Ascânio Seleme e Amaury Ribeiro Jr., valeu ao trio o Prêmio Esso de Reportagem, considerado o Oscar do jornalismo brasileiro.

Em entrevista ao TUTAMÉIA, autor de “Os Porões da Contravenção” –que assina com Aloy Jupiara—, ele aponta: “Insisto em dizer: a história se repete. Freddie Perdigão Pereira, que foi quem fez a ponte entre os agentes operativos do DOI e a agência Rio do SNI no atentado ao Riocentro, depois foi ser chefe de segurança da Independente das Escolas de Samba e trabalhar como líder de um grupo de segurança informal de uma grande empresa de transporte de passageiros capixaba. É muito embrião de milícia. A milícia está um pouco na raiz desse atentado ao Riocentro.”

Professor de jornalismo na PUC-RJ, ele continua: “Uma aliança se estabeleceu entre os agentes da repressão, no momento em que a ditadura desmontava os seus porões, já no processo de abertura política, e os bicheiros. A contravenção, os bicheiros foram uma espécie de plano B desses agentes que ficaram órfãos de seus ditadores. Muitos deles se sentiram traídos, porque, de uma hora para outra, aquele cara que entre 1969 e 1974 teve plena licença para andar à paisana, usar verbas secretas, licença para sequestrar, para torturar, para matar e desaparecer com os corpos, tudo isso em nome da Pátria, tudo isso para afastar o perigo comunista, de repente ele se viu obrigado a voltar para o quartel. Bota farda de novo, bate continência, vai para a ordem unida, e o cara não se conformou com isso e se sentiu traído. O porto seguro que ele encontrou foi a contravenção. Então vários desses agentes altamente violentos, altamente operativos, foram cooptados para as tropas do crime organizado.”

SOLDADOS UNIVERSAIS

O processo se renovou ao longo do tempo, conforme o relato do jornalista e escritor (clique no vídeo para ver a entrevista completa e se inscreva no TUTAMÉIA TV): “Nos anos 1990 e anos 2000, a história se repetiu. Quando houve uma onda de sequestros e outros crimes no Rio de Janeiro, e a polícia civil acabou se vendo incapaz de fazer esse enfrentamento sozinha, ela começou, com aval dos governantes, a recrutar para os seus quadros soldados altamente operativos da Polícia Militar. Criou-se a figura do adido, aquele PM cedido temporariamente para as delegacias de polícia. Essa cara deixava de usar farda, passava a se vestir com roupa civil, e ia para a rua como linha de frente da polícia civil no enfrentamento da criminalidade.  Quando a curva dos sequestrou começou a cair, eles foram devolvidos para os quarteis, eles não aceitaram isso”.

Autor, com Vera Araújo, de “Mataram Marielle”, o jornalista diz que um exemplo desses adidos que não se conformaram com a volta ao quartel é Ronnie Lessa, acusado de ser um dos assassinos de Marielle Franco e Anderson Gomes. “Quando desmontaram essa relação PM-Polícia Civil-adidos e determinaram a volta desses PMs aos quartéis, ele foi servir de segurança para a família Andrade, uma das famílias mais importantes da contravenção. Aconteceu também com Adriano Magalhães, com vários outros, Pereira, que foi outro policial que migrou para as milícias. Esses caras viraram assim soldados universais, Robocop. Os caras eram Robocop! Empoderados, eles começaram a ganhar poder nas comunidades. Cresceram vendendo segurança e foram com o passar do tempo assimilando novos negócios – a gatonet, o transporte alternativo, o botijão de gás e aí eles entraram num ramo altamente lucrativo, que é o da construção civil, especialmente a construção ilegal. Há muito muito isso no Rio das Pedras e na Muzema”.

 

FAMÍLIA BOLSONARO

Mais: “Passaram a ser eles o poder político e econômico. Há casos de parlamentares eleitos como representantes da milícia. A CPI da Milícia, de 2008, mostrou isso: havia milicianos na Câmara Municipal do Rio de Janeiro, em outras câmaras espalhadas pela Baixada Fluminense, na Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro. É um processo que já evoluiu além do apoio, embora o apoia exista também:  parlamentares que não são exatamente iniciamos, mas têm compromissos assumidos. O que acontece, que para mim é um atentado contra a democracia, é que os milicianos fecham essas áreas e só permitem, durante as campanhas eleitorais, a atividade política desses candidatos.”

As relações com de milicianos com a família Bolsonaro são conhecidas, diz o premiado jornalista, lembrando a importância das investigações sobre o assassinato de Marielle para expor esses laços:

“A proliferação, a expansão das milícias, especialmente pelas áreas periféricas do Rio de Janeiro, se deu de forma silenciosa, à custa de corrupção. Paradoxalmente, foi revelada, foi levada à tona por conta da morte da Marielle. A investigação, por exemplo, da milícia de Rio das Pedras, uma das mais atuantes, mais violenta e mais antigas milícias do Rio de Janeiro, foi um subproduto das investigações sobre a morte de Marielle e Anderson. Caiu toda a cúpula dessa milícia, incluindo um ex-capitão do BOPE chamada Adriano Magalhães, que, além de ser o responsável pelo tal Escritório do Crime e o chefe da milícia de Rio das Pedras, o Adriano Magalhães tinha a ex-mulher e a mãe lotadas no gabinete do então deputado estadual Flávio Bolsonaro, que estão na investigação das rachadinhas no gabinete do filho mais velho do presidente da República.”

Lembra também: “Olhando os mapas eleitorais, vemos que a família Bolsonaro sempre performa eleitoralmente muito bem nessas áreas dominadas pelas organizações paramilitares no Rio de Janeiro”

“EU ESTAVA LÁ”

A entrevista volta para a história do atentado ao Riocentro. Chico Otavio assim descreve o contexto do episódio:

“O atentado vem numa sequência de uma série de outros atentados ocorridos no Rio –no Brasil, mas especialmente no Rio—contra a ABI, contra a OAB, no qual morreu em 1980 a secretária do presidente, dona Lyda Monteiro, contra bancas de jornais que vendiam jornais alternativos. Isso culmina no atentado daquela noite, 30 de abril de 1981, acho que era terceira edição de um show organizado pelo Cebrade – Centro Brasil Democrático–, que era uma ONG que trabalhava com a anistia, com a reconstrução da democracia no Brasil, dirigida pelo Oscar Niemeyer e Chico Buarque de Holanda. O show era um acontecimento, um frisson pela juventude assistir numa mesma noite Chico Buarque, Gonzaguinha. Clara Nunes, MPB4, Alceu Valença e o muitos outros. Uma coisa histórica mesmo.”

Acrescenta uma nota pessoal: “Eu estava lá. Vi, a poucos metros, o corpo dilacerado do sargento Guilherme Pereira do Rosário. Nunca mais eu apaguei essa imagem da memória. Eu vivo me encontrando com essa história.”

Em seu trabalho com repórter, ajudou a desenredar a trama do crime: “Pelo que eu apurei, fui um atentado planejado por bolsões radicais dentro do governo, que não se conformavam, não aceitavam o processo de abertura política. Foi planejado por velhos oficiais, que tinham tido uma atuação forte na repressão política e que naquele momento, em 1981, estavam nos quadros da burocracia do SNI. Como eles já não eram tão operacionais, tiveram que estabelecer uma ponte com a velha guarda operativa do DOI da Barão de Mesquita, onde ainda estavam seus antigos comandados –sargentos, especialmente, sargentos veteranos que eles arregimentaram para fazer essa série já tentados. Tinha gente também civil”.

A seguir, trechos do relato de Chico Otavio:

O Puma em que a bomba explodiu, no episódio que ficou conhecido como Atentado no Riocentro

A NOITE DO CRIME

“O personagem que fez essa ponte era o coronel Freddie Perdigão Pereira. Teve passagem pelo DOI e estava na agência Rio do SNI. Mobilizaram uma equipe, provavelmente cinco carros, seis carros com duplas de agentes sob o comando do Freddie Perdigão e que foram naquela noite com o objetivo, até onde eu apurei, de melar o show. Provocar um grande prejuízo econômico e moral para o Cebrade e causar um dano na luta democrática.”

“Só que, como todo mundo sabe, houve um acidente de trabalho, e explodiu a bomba no colo do sargento Guilherme Pereira do Rosário, agente do DOI, que estava no banco do carona do Puma pertencente ao então capitão Wilson Machado. A bomba explodiu no colo dele, matou o sargento na hora, dilacerou o sargento, e foi essa a imagem que eu vi, que eu testemunhei naquele momento, e feriu gravemente o então capitão Wilson Machado, que estava no banco do piloto.”

“Ele foi socorrido por dois estudantes que passavam naquele momento para ir ao show –o show estava começando, a bomba explodiu por volta das 21h15, eu também estava na fila para entrar. Esse casal de estudantes socorreu o capitão e o levou até o Hospital Miguel Couto. A estudante era Andrea Neves (irmã do senador Aécio Neves). Ela me contou isso, disse que foi segurando as tripas do capitão com as mãos.”

DESTRUIÇÃO DE PROVAS

O que se seguiu foi uma série de embustes para esconder o DNA do atentado fracassado, conforme as informações e a avaliação de Chico Otavio: “O Exército enterrou o sargento com honras militares e daí mobilizou uma imensa operação de destruição de provas que pudessem incriminar o DOI e especialmente os ocupantes do Puma. Culminou num IPM, talvez aí uma das mais tristes páginas da história do Exército brasileiro, um IPM comandado pelo então coronel Job Lorena de Santana no qual eles falsamente atribuíram o atentado a uma suposta organização extremista de esquerda ou de direita chamada Comando Delta, forjando provas, ignorando outras. Foi num absurdo total. Ninguém acreditou, a imprensa na época teve um papel fundamental de contraditar e denunciar a farsa do IPM. Mas era uma ditadura.”

“O caso só foi reexaminado em 1999 –e é aí que eu entro como repórter, quando a Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados encaminhou ao Ministério Público Federal um conjunto de depoimentos que ela havia tomado ao longo dos anos sobre o caso, entre os quais o do então comandante do 18º Batalhão de Polícia Militar de Jacarepaguá, o tenente-coronel Ile Marlen Lobo Pereira Nunes, que diz com todas as letras que recebeu do comando da PM naquela noite, estranhamente, uma ordem para suspender o policiamento militar na área do Riocentro, mesmo sabendo que ali haveria uma concentração de milhares as pessoas, para um show que era um dos mais importantes do Brasil.

“Esses depoimentos foram considerados novas provas suficientes para reabrir, em 1999. O segundo IPM, comandando pelo general Sérgio Alves Conforto, chegou a uma conclusão histórica, mudando totalmente a versão anterior. Estabeleceu que o sargento, então capitão, o coronel Freddie Perdigão Pereira mais um militar e um civil não eram vítimas, e sim autores daquele atentado. O Exército reconheceu aquela autoria. Nada em termos judiciais rolou depois disso, porque até hoje a Justiça brasileira tem entendido que esses crimes estão cobertos pela Lei da Anistia, embora tenham ocorrido depois.”

ÚLTIMA ESPERANÇA

“Em 2014 foi feita uma outra nova investigação, muito mais ampla, por um grupo muito importante do Ministério Público Federal chamado Justiça de Transição. Esse grupo formulou uma nova denúncia, e de novo a Justiça entendeu que não podia rever as decisões anteriores.

Hoje uma ação no Supremo, sob a relatoria do ministro Marco Aurélio, baseada no caso julgado pela Corte Interamericana de Direitos Humanos, caso Gomes Lund, que entendeu que houve ali um atentado grave aos direitos humanos. O que se discute é se esse entendimento do Judiciário confronta a decisão tomada pela Corte Interamericana de Direitos Humanos. Se o Supremo entender que houve o confronto, o Ministério Público entende que seria uma deixa para todos esses casos que estão represados sejam reabertos, incluindo o caso Riocentro. Então essa é a última esperança que resta para levar ao banco de Réus os responsáveis ainda vivos, entre os quais o hoje coronel da reserva o Wilson Machado.

DÍVIDA DO EXÉRCITO

O outro personagem na cena do crime, o então capitão Wilson Machada, seguiu sua carreira militar normalmente: “Essa progressão de carreira e a promoção pós-aposentadoria de Machado refletem o interesse das Forças Armadas de manter o silêncio do Wilson Machado”, avalia o jornalista. Silêncio que o próprio exerce mantém a respeito daquele período: “O Exército até hoje não cedeu os arquivos do antigo Centro de Informações do Exército, que era o mais ativo, mais operante e mais importante órgão de repressão das Forças Armadas especialmente entre 1969/1974, período mais sangrento da ditadura militar”.

Para jornalista, “essa é uma dívida que o Exército tem com a sociedade. Não apenas pedir desculpas, de não apenas cobrar explicações do capitão Wilson Machado, mas como especialmente franquear os seus arquivos para a história, para pesquisa, para a sociedade em geral.”

BUSCAR RESPOSTAS

Professor na PUC-RJ, Otavio afirma: “Rever casos como o do Riocentro, quarenta anos depois, é uma oportunidade de mostrar o que foi a ditadura militar, do que ela foi capaz. Casos como o da Casa da Morte, de Petrópolis, que me envolveu como repórter, são exemplos dessas barbaridades que a ditadura cometeu. Lamentavelmente a gente vê hoje grupos nas ruas, de uma forma irresponsável, pedindo a volta do regime. É o papel do jornalismo. Que as novas gerações continuem se interessando por esses esclarecimentos, continuem buscando essas respostas para não deixar esses temas morrerem”.

ALOY JUPIARA

A entrevista com o jornalista Chico Otavio foi realizada na quinta-feira, 29 de abril de 2021, véspera do aniversário de 40 anos do Atentado no Riocentro e dia em que o Brasil superou a marca de quatrocentas mil mortes por causa da covid 19.

Minutos antes do início de nossa conversa com Otavio, o Conselho Nacional de Secretários de Saúde divulgou os números do dia: 3.001 mortes nas últimas 24 horas, num total de 401.186 vidas perdidas durante a pandemia –a maior parte delas, mortes que poderiam ter sido evitadas se o governo federal tivesse adotado as medidas de proteção e prevenção recomendadas pela OMS e pelas instituições médicas e científicas brasileiras.

“Como milhares de famílias, também fui afetado”, contou Otavio logo no início da entrevista: “Eu queria também prestar uma homenagem a um grande amigo meu que a Covid levou há três semanas, o Aloy Jupiara”.

Também jornalista, editor-chefe do jornal fluminense “O Dia”, Jupiara morreu no dia 12, aos 56 anos.

“Foi uma perda imensa na minha vida. Ele, por exemplo, era um dos editores dessa matéria de 1999, sobre o caso Riocentro, com que eu ganhei, junto com Amaury Ribeiro e Ascânio Seleme, o Prêmio Esso de Reportagem. Ele dividiu comigo a produção dos livros “Deus Tenha Misericórdia de Nossa Nação” e “Os Porões da Contravenção”. Ele sempre foi um cara assim muito determinado, especialmente nesse enfrentamento dessas organizações criminosas, e o livro traz um pouco disso porque conta a aliança entre os agentes da repressão e a cúpula da contravenção entre os anos 1970 e os anos 1980”.

Otavio segue: “O Aloy foi um cara muito importante não só para o jornalismo, ele é um personagem da cultura carioca, um defensor ardoroso da tradição do samba, das escolas de samba, um cara apaixonado pela história das escolas de samba especialmente pelo Império Serrano. Foi um dos fundadores do Museu do Samba, um dos responsáveis pelo projeto tombamento do Samba como patrimônio imaterial do Brasil. Para mim, é um orgulho ter sido amigo do Aloy Jupiara”.