“Dói muito o que a gente está vivendo hoje em dia, mas acho que existem algumas coisas que são sementes para um momento interessante que vai vir aí, no futuro”, afirma o professor de jornalismo e crítico de arte Fabio Cypriano ao analisar a situação do Brasil pós-golpe.
Uma dessas semente, disse ele em entrevista ao TUTAMÉIA, é exatamente a reação dos artistas plásticos: “Eles de fato viraram militantes. Eles fizeram cartazes para serem levados para as passeatas, eles iam para os lugares. Ou seja, o artista não ficou como um ser à parte, olhando e falando na sua pintura, no seu atelier, mas eles de fato, intervieram. Isso é que eu acho muito legal: de fato intervir. Isso acaba sendo uma prática artística”.
O que foi uma inovação –talvez uma revolução—nas artes visuais, uma área marcada muito pelo individualismo: é o artista trabalhando solitário em seu atelier, em sua casa, diferentemente do teatro e do cinema, sempre produções coletivas.
“Pela primeira vez, pelo menos desde a época que eu cubro a arte, do início dos anos 2000, eu vi artistas entrosados, discutindo, fazendo propostas juntos”.
Uma expressão disso foi a intervenção de um grupo de artistas na abertura da última Bienal, ocorrida bem na época em que se consumou o golpe contra a presidente Dilma: com camisetas dizendo “Fora Temer”, “Diretas Já”, circularam pela sala onde ocorria a cerimônia de apresentação e verbalizaram denúncias contra o atentado à democracia brasileira (abaixo, reprodução de imagem de vídeo sobre o manifestação).
A Bienal, tradicionalmente, é instrumentalizada pelas elites, pelos oligarcas, por mecenas com olhos mais voltados para seus interesses pessoais de lucro ou ganho de prestígio do que propriamente o desenvolvimento das artes –é o que Fábio Cypriano demonstra em seu trabalho de pós-doutorado, que chega ao público numa versão super-hipercondensada, num livrinho minúsculo, quase do tamanho de um celular, tal e qual os poemas de cordel.
O livro do jornalista, “A Bienal da Elite de São Paulo”, sai na série Pandemia, lançada pela editora N -1: “A ideia é popularizar textos acadêmicos, colocando-os em um formato quase panfletário”, diz o jornalista, que atualmente coordena o curso de jornalismo da PUC-SP>
No livro –e na entrevista ao TUTAMÉIA—ele busca demonstrar, buscando argumentos na história e nas relações econômicas, que “a Bienal sempre foi um exemplo de usurpação do espaço público em favorecimento de interesses privados”
Conta histórias dos grandes mecenas do passado, como Assis Chateaubriand e Ciccillo Matarazzo –o primeiro criou o MASP, Museu de Arte de São Paulo; o outro é o “pai” do MAM, Museu de Arte Moderna, e da Bienal. Lembra também passagens das atuações de diretores mais recentes, como o banqueiro Edemar Cid Ferreira.
Em comum, os empresários do passado e deste século têm a vontade de se legitimarem no coração da elite. “São pessoas que ganharam muito dinheiro, mas que não eram aceitas no círculo da elite. Aí, para eles poderem fazer negócios -também se faz negócio na ópera, na bienal–, eles tinham de fazer parte disso.”
Cypriano acrescenta: “Tanto o Ciccillo quanto o Chatô criaram instituições personalistas, que dependiam extremamente deles, e o drama dessas instituições, até hoje, é exatamente esse, dependem sempre de uma figura central”.
Ou, como ele escreve em seu livro: “Criaram instituições privadas com funções públicas, mas seguiram nelas os típicos procedimentos de empresas privadas no país”. O problema é que, do ponto de vista financeiro, essas instituições estão longe de serem privadas: 75% de seus orçamentos é fundado com dinheiro público, revela o crítico de arte.
“Essas figuras se arvoram nas instituições, agem como empresários, mandam embora quem querem, mas com o dinheiro público. O dinheiro público está sendo usado nessas instituições por um grupo oligarca, que não é democrático, não é permeável, não é aberto.”
“Se as instituições funcionam à base de verbas púbicas, a situação tem de ser mais transparente”, argumenta ele, propondo: “A gente tem de começar a discutir para que essas instituições sejam mais permeáveis, mais democráticas -a gente está pagando por isso, todo mundo está pagando por isso”.
A democratização é fundamental, pois a arte está longe de ser algo etéreo, que paira sobre a sociedade. Ao contrário, é instrumento político: a própria criação do Museu de Arte Moderna acontece sob inspiração do serviço de inteligência norte-americano, que tratava de incentivar, no mundo, o desenvolvimento da arte abstrata.
“Quando o MAM de SP é inaugurado foi numa parceria do Ciccillo Matarazzo com o Nelson Rockefeller. Faz parte da política norte-americana de aproximação com o Brasil criar um campo de diálogo em que eles vão trazer a ideia de se criar o Museu de Arte Moderna para defender uma arte abstrata, que seria uma arte que não é política, que não vai estar falando do real…”, conta Cypriano.
Evidência disso, diz ele, é o fato de que a primeira exposição que acontece no MAM se chama “Do Figurativo ao Abstrato”. Para o jornalista, “Isso já dá um pouco essa noção de que a tendência tem de ser o abstrato”. Lembra que Rockefeller chegou a doar cinco trabalhos abstratos para o surgimento do MAM, trabalhos abstratos porque não seriam trabalhos críticos.
“O contraponto disso na época era o muralismo mexicano, com artistas como Orozco, e Diego Rivera, que eram comunistas declarados e que faziam painéis nos muros da cidade, justamente para ser popular, denunciando a situação de exploração. Os Estados Unidos não queriam defender ou mostrar esse tipo de arte, eles achavam que a arte abstrata era o que era mais legal. Mas claro que isso tinha uma razão de ser: o abstrato não fala de nada, é uma forma de escamotear a realidade.”
Tal uso político acontece o tempo todo: Cypriano lembra, por exemplo, do conceito de “arte degenerada”, criado por Hitler. O líder nazista usava argumentos muito próximos aos usados, hoje em dia, pelo MBL e grupos de direita para atacar exposições como a “Queer Museum”, realizada em Porto Alegre no ano passado, e uma performance realizada em São Paulo.
São, na verdade, forma de censura, afirma o jornalista, destacando que essas contradições ficaram mais claras, evidentes no Brasil depois do golpe de 2016: “De um lado, tivemos os mecenas das artes, os galeristas, que defendiam o impeachment, e de outro lado os artistas, que criaram uma série de atividades, de ações e que denunciaram o golpe claramente”.
O clima resultou em “uma campanha explícita contra os artistas porque eles são a voz crítica em relação a este momento que a gente vive”.
Mas há reação, destaca Cypriano, lembrando que a mostra proscrita “Queer Museum” será reinaugurada, agora no Rio de Janeiro, depois de uma mobilização de artistas capitaneada por Caetano Veloso: “Os artistas estão atuantes”, diz.
E não só no Brasil. Um exemplo é o trabalho do alemão Mario Pfeifer, que mostra agora na Bienal de Berlim um trabalho em vídeo sobre o espancamento e morte de um imigrante em uma cidadezinha na Alemanha. Os agressores foram aclamados por grupos racistas como “heróis” protetores da Nação. Pfeifer virá ao Brasil na época da Bienal de São Paulo para participar de um seminário promovido pela revista “Arte Brasileiros” (será no dia 6 de setembro, das 9h às 17h, no auditório Ibirapuera, no parque Ibirapuera. A entrada é franca, é só chegar meia hora antes para retirar o convite, o auditório tem 800 lugares).
Um evento bem mais engajado do que a própria Bienal –pelo menos, de acordo com as previsões de Cypriano, para quem a 33ª edição do evento, com início no mês que vem, “não vai ser legal.”
Ele destaca o fato de o curador da mostra, Gabriel Perez-Barreiro, ser ligado à supercolecionadora de arte Patricia Cisneros –como também era o curador da edição de 2012, Luiz Peres Oramas, segundo Cypriano afirma em seu livro.
“Uma pessoa que é vinculada a uma colecionadora tão poderosa como ela, que tem todas as empresas de comunicação, tem esse poder todo assim, não vai fazer uma Bienal tão crítica como foram os duas últimas Bienais. Vai ser uma bienal comportada, bonitinha, alegre. O Brasil tá entrando em colapso, o mundo inteiro está entrando em colapso, e eu acho que a gente não vai ver colapso nenhum na Bienal. O que é uma pena.”
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