“Durante muitos anos, as violações e os crimes contra a integridade sexual foram considerados parte dos tormentos comuns nos campos de concentração –a tortura, os espancamentos, o tratamento ilegal. E foram as mulheres, especialmente as advogadas, as juízas, que começaram a compreender e a pedir que esses crimes fossem julgados separadamente dos crimes comuns, que fossem considerados crimes imprescritíveis, diferenciados dos demais delitos. Isso faz parte de uma outra visão sobre aquele período, de poder entender que a repressão ilegal e a ditadura, além de ser homicida, assassina, também foi machista e patriarcal. É poder pensar aquele passado recente com a visão do presente.”

São reflexões de Alejandra Naftal, diretora-executiva  do Museo Sitio de Memoria ESMA – ex-Centro Clandestino de Detención, Tortura y Exterminio–, o mais importante local de memória da ditadura militar argentina. Ela fala ao TUTAMÉIA dias depois de histórica decisão da Justiça de seu país, que condenou torturadores por crimes sexuais cometidos contra mulheres, presas políticas durante a ditadura militar.

O Tribunal Oral Federal 5 de Buenos Aires declarou os ex-militares Jorge Tigre Acosta e Alberto González culpados por “estupro agravado por ter sido cometido por duas ou mais pessoas, reiteradamente em pelo menos 10 oportunidades”, mais abuso desonesto, privação ilegítima da liberdade e suplícios, crimes que foram declarados imprescritíveis por serem de lesa-humanidade.  A violência sexual cometida contra presas políticas já foi revelada em julgamentos anteriores, mas nunca havia sido julgada como um crime autônomo.

Os crimes foram cometidos na Escola de Mecânica da Marinha, a Esma, talvez o principal dos cerca de 600 centros clandestinos de tortura e assassinato mantidos pela ditadura argentina. Calcula-se que cerca de 5.000 presos tenham passado pelo local, que foi transformado em museu, funcionando desde 2015.

“Tomara que essa decisão permita que outras mulheres também possam falar sobre suas próprias experiências”, diz Naftal ao TUTAMÉIA. Ela completa: “No momento que estamos vivendo, com o feminismo nas ruas, com as mulheres reivindicando seus direitos, por tudo o que está se passando na Argentina e no mundo em relação aos direitos das mulheres, creio que esse é um passo histórico e também, como disse uma sobrevivente que deu testemunho sobre os campos de tortura, espero que seja também um passo inicial para que muitas mulheres que até agora não conseguiram falar sobre seu sofrimento e sobre as violações sofridas nos campos de concentração nos anos 1970 –por causa do estigma, por causa do medo—venham a falar”.

As mulheres, por sinal, são um dos focos do trabalho do museu, destaca a diretora-executiva ao falar sobre as ações da instituição (clique no vídeo para ver a entrevista completa e se inscreva no TUTAMÉIA TV).  Uma exposição com depoimentos de presas políticas foi realizada em 2019 e outra está em projeto, desta vez abordando problemas como a maternidade nos campos de concentração –como Naftal chama os centros clandestinos de detenção e tortura—e a luta das sobreviventes por sua inserção social.

Ao longo da entrevista, conversamos sobre a situação dos militares da Argentina, a colaboração dos Estados Unidos como “professor de tortura” e disseminador da doutrina de segurança nacional, espécie de base ideológica a justificar os crimes cometidos pelos regimes militares. Alejandra Naftal falou ainda da própria essência da ditadura, a razão de ser do regime instalado na Argentina, no Brasil e em outros países do cone sul:

“Hoje se pode dizer que foi a implementação desse neoliberalismo extremada que começa nos anos 1970 e que se perpetua até os dias de hoje. Então, para nós, segue sendo uma tarefa, com as ferramentas que nos dá a democracia, ganhar eleições e poder ter governos nacionais e populares, que estejam mais próximos dos mais humildes, e não vender todos os nossos recursos e ser os governos do capital financeiro.”

A luta pelos direitos humanos, a luta por memória, verdade e justiça é parte integrante, fundamental nesse processo, no entender de Naftal:

“Creio que hoje, na Argentina, o tema da memória, verdade e justiça é o que sustenta a democracia. O movimento por direitos humanos deixou uma marca importante na sociedade argentina, sentimentos importantes. E acredito que o próximo movimento tão importante quanto o de direitos humanos seria o movimento das mulheres. São dois movimentos que se cruzam, que surgem das bases e que estão sempre atentos para serem os alertas para os governos.”

Ela prossegue:

“Não se trata apenas de recordar e homenagear as vítimas, mas sim de termos uma política ativa de memória, que tem de ser uma memória do passado que se articule também com as reivindicações do presente. A memória não é apenas recordar, a memória é uma construção coletiva do presente, que tem de ser sempre revisada, dinamizada, voltando a ser vista, voltando a ser criticada, mas sempre tendo esse passado como um alerta, um aviso de que precisamos nos cuidar porque não queremos mais campos de concentração nem golpes de estado, nem ditaduras sangrentas, nem assassinatos, nem desaparecidos.”