A participação do Brasil no comando das forças de ocupação da ONU no Haiti foi “uma experiência muito mais perigosa do que parece”, diz o historiador Everaldo de Oliveira Andrade, professor de história contemporânea no departamento de História da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP.
“A ação contaminou o Exército Brasileiro. Veio de lá essa experiência. Aprofundou algo que já existia no Exército Brasileiro, que é o autoritarismo, a herança da ditadura… Com essa experiência no Haiti, essa questão ganhou uma dimensão muito mais perigosa, no sentido de se apossar dos Estado, das políticas do Estado, ameaçar a liberdade, os direitos, e aproximação de uma política de completa liberalização para o capital e ataque aos direitos sociais, que é o que o Exército fazia lá no Haiti”, afirma o especialista, que acaba de lançar o livro “Haiti – Dois Séculos de História”.
A ação das Nações Unidas, diz Andrade em entrevista ao TUTAMÉIA (veja a íntegra no vídeo do alto desta página), legalizou o que de fato havia sido uma invasão por parte dos Estados Unidos, disfarçada de intervenção pacifista: “Supostamente os EUA desembarcaram as tropas para resolver uma guerra que estava ocorrendo lá. Era uma rebelião de grupos armados, mas não era uma guerra. E governo haitiano não solicitou nenhuma intervenção. Os americanos desembarcaram, obrigaram o presidente Aristide a assinar a renúncia, sequestraram o Aristide, tiraram ele do Haiti. Posteriormente a ONU legalizou isso criando a Minustah (Missão das Nações Unidos pela Estabilização do Haiti) e oferecendo ao Brasil o comando das tropas de ocupação.”
Na prática, analisa, o Brasil foi empregado como instrumento militar dos Estados Unidos, que estavam envolvidos em ações bélicas em outros cantos do planeta, mas não queriam correr o risco de perder o domínio sobre o Haiti, sempre utilizado por eles como instrumento geopolítico de controle regional –é vizinho de Cuba.
Segundo o professor, “o Brasil foi seduzido por essa suposta missão de pacificação. O fato de o Brasil ter enviado suas tropas abriu oportunidade para que se mobilizassem outros países latino-americanos. O Evo Morales enviou tropas, o Uruguai enviou tropas, a Argentina enviou tropas”.
Longe de pacificar o país, a missão das tropas de ocupação provocou ainda mais violência:
“Há uma série de relatos de que as tropas brasileiras, que supostamente estavam lá em nome da paz, executaram uma política que vai minando a vida política e cultural do Haiti. Vai fortalecendo uma imagem falsificada de que Haiti é o paraíso das gangues, onde você sai na rua e é metralhado. Não é assim: no Brasil há lugares que são muito mais violentos do que o Haiti.
“Tudo isso para justificar a ocupação militar, que tem outro objetivo, que é encobrir o fato de que o Haiti virou uma plataforma de exploração do trabalho quase escravo, uma plataforma para grandes empresas produzirem produtos em massa a um custo mínimo, um preço baratíssimo, mais barato do que na China. Então houve um deslocamento de grandes empresas para lá. E era preciso garantir a ordem. Os relatos são de violência crescente. As tropas brasileiras chegaram até a invadir uma faculdade. O objetivo das tropas da ONU era reprimir, era controlar essas populações, permitir a ação das grandes corporações.”
Uma experiência que, na avaliação do historiador, deu ao Exército brasileiro ambições políticas mais claras: “O Exército brasileiro é o mesmo Exército do período da ditadura militar. Ele se aproximou mais dos Estados Unidos, é verdade. Mais do que isso: quando o Brasil entrou no Haiti, entrou numa nova fase, permitindo que os militares se envolvessem diretamente com o controle político de uma nação, com todos os seus problemas sociais. E as ambições talvez tenham subido à cabeça de muitos deles”.
“O Haiti foi um laboratório para as forças armadas brasileiras”, afirma o professor Everaldo Andrade. “O presidente Aristide foi retirado à força, e os generais brasileiros passaram a dirigir o país, as operações militares, a repressão. O trabalho dos soldados era ir nas favelas ficar metralhando, enfrentando gangues. Foi um papel desagregador que o Exército brasileiro exerceu no Haiti, não teve nada a ver com defesa da democracia. Desagregou social e politicamente a resistência haitiana, e criou uma unidade, uma experiência comum, de partilhamento da ocupação, da repressão, por parte desses generais. E isso é muito perigoso. Então esse exército, que teve essa experiência lá, o que ele vai fazer quando enxerga os problemas daqui? Vai agir da mesma maneira…”
E ainda: “Não é à toa que um dos generais que comandou a tropa lá, que hoje está na cúpula do planalto, o que ele falou agora sobre o AI-5. A lógica deles é a mesma: se deu certo lá, o que a gente vai fazer no Brasil?”
O livro, por sinal, cita declarações de militares brasileiros exatamente nesse sentido: “Este é o ganho mais expressivo da missão Haiti, aprendemos a empregar novas forças em cenários certos, a produzir informações estratégicas, a trabalhar em conjunto, a sair do país, criando a doutrina das missões expedicionárias”.
O que já era sentido mesmo durante o período da ocupação. Movimentos de protesto contra a invasão e de solidariedade ao povo do Haiti já haviam destacado esse aspecto, conforme o historiador conta em sua obra, citando texto produzido pelo comitê brasileiro “Defender o Haiti é Defender a Nós Mesmos”, que fiz o seguinte:
“Dia após dia percebemos que as tropas brasileiras não levam ajuda ou paz, mas sim vão lá para serem doutrinadas na tortura e em tantos outros crimes contra o povo do Haiti. Dia após dia os comandantes do Exército Brasileiro treinam os jovens soldados não na solidariedade, mas na desumanidade. São os manuais dos anos de chumbo da ditadura militar que são aplicados lá, para preparar tropas para agirem no Brasil. O que fazem lá, como os próprios comandantes admitem, é um laboratório de táticas militares para serem aplicadas nos morros e favelas do Brasil.”
EMBAIXADA DOS EUA SUSTENTA O PRESIDENTE DO HAITI
O fato é que, diz o historiador, “a Missão de Paz no Haiti não pacificou o Haiti e não trouxe benefícios sociais”, como comprovam as recentes manifestações do país caribenho, onde mais uma vez o povo se revolta e luta por justiça social e melhores condições de vida.
Trata-se, analisa o professor, da expressão de uma revolta que havia sido represada pela violência das tropas de ocupação.
“Veja bem: O Aristide tinha base popular. Era um padre da teologia de libertação, tinha um grande movimento de massa, conseguiu organizar o movimento popular. Esse líder foi destituído para desarticular esse movimento popular. Esse movimento foi enfraquecido, mas não foi totalmente destruído.
“De 2004 para cá, os supostos presidente eleitos foram eleitos em eleições fraudadas em que a minoria da população participou. As instituições dos movimentos populares, dos estudantes foram alijadas do processo. O atual presidente foi eleito por uma parcela mínima da população. Ele é apoiado pelos empresários e pela igreja católica. Quem sustenta o presidente é a embaixada dos Estados Unidos. E essa camada de políticos, em grande parte apoiados e financiados pelos Estados Unidos, que se aproveitaram da crise para saquear o país.
“O movimento popular está aproveitando a retirada momentânea da ONU para retomar uma situação. A situação está caótica. Desabastecimento, hospitais fechando. Uma situação de revolta em ebulição, descontrole. As eleições não foram realizadas. Há uma articulação de grupos buscando uma alternativa política no sentido popular. É bem complicada a situação do Haiti, mas os haitianos ganhar uma oportunidade e estão nas ruas buscando condições para construírem eles mesmos o seu caminho.”
ESCRAVOS EM LUTA PELA LIBERDADE
De certa forma, retomam o caminho trilhado há mais de duzentos anos, quando os escravos negros se rebelaram contra a dominação e transformaram o Haiti no primeiro país independente na América Latina.
“O Haiti é o país pioneiro da liberdade dos negros na América Latina”, diz o professor, que prossegue contando outros resultados da revolução de 1804 no país caribenho:
“A independência do Haiti é, ao mesmo tempo, uma luta pela libertação dos escravos. É uma dupla revolução, social e política ao mesmo tempo. É uma revolta de escravos, que consegue a vitória derrotando o exército mais poderosa da época, que era o exército de Napoleão Bonaparte. Napoleão mandou 50 mil soldados, que atravessaram o oceano Atlântico e foram esmagados pelas tropas dos escravos, comandados por Toussaint Louverture.
“Essa revolução vitoriosa tem impacto enorme na América Latina. Não só no Brasil: há também relações dos revolucionários com Simon Bolívar. A terceira expedição dele, que é a vitoriosa, contou com apoio político e material do Alexandre Pétion, que era presidente do Haiti em 1816, 1817. Ele ofereceu navios, armas, soldados, recursos e ajudou a expedição. Ou seja: o Haiti é protagonista direto da luta pela liberdade aqui na América do Sul. Negociou para que Bolívar assumisse em seu programa a libertação dos escravos como tema central de sua luta.”
“Uma das grandes conquistas da independência é a nacionalização da terra. Um artigo que deixa muito claro que a terra haitiana pertence ao povo haitiano. É proibido que um estrangeiro tenha terra no Haiti. Isso só vai ser revogado no século 20, quando os Estados Unidos invadiram o Haiti em 1915, tomaram o Haiti e impuseram essa revisão da Constituição.
“Além da unidade nacional econômica, outro aspecto importante para a formação da nação haitiana é o surgimento de uma língua, o creole, que é produto da fusão de línguas e dialetos africanos com o francês. Além disso, a religião africana, o vuduísmo, que é uma religiosidade ligada aos fenômenos da natureza e está em oposição ao catolicismo, que é quase a religião oficial da Europa. São perseguidos sistematicamente, piano contra o tambor, o francês contra o creole, tudo isso vai ser objeto da resistência do povo do Haiti.
“O Haiti conseguiu também ser um polo de resistência intelectual à ideia racista de que os brancos são superiores aos negros. São intelectuais do Haiti que produzem livros em defesa da humanidade e dos direitos dos negros como seres humanos.”
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