“O que nós estamos vendo hoje no Brasil é um contragoverno. Em vez de fazer o que deve fazer, suportar, representar, unir o país, coordenar esforços para enfrentar a pandemia, há alguém que está produzindo mais inimigos, alguém que está negando o obstáculo real, que considera que vão morrer alguns e tudo bem, alguém que retira proteção trabalhista, que retira o SUS. É a necropolítica”, define em entrevista ao TUTAMÉIA o psicanalista Christian Dunker.

Professor da USP, ele explica que a necropolítica, a política da morte, não se importa com as vidas humanas. “O raciocínio deles é que alguns vão morrer, mas vão morrer longe. Erro. A peste é democrática, a peste vai bater à porta de todos nós”.

Na entrevista ao TUTAMÉIA (veja a íntegra no vídeo acima), ele falou sobre as nossas reações a essa ameaça, a esse perigo. Disse que, ao contrário do que prega Jair Bolsonaro com seu discurso supostamente viril, de coragem, enfrentamento de peito aberto, ter medo é normal e racional neste momento, é saudável.

“Estamos vivendo uma situação inédita. Há uma sensação de insegurança, uma insegurança que é real, é para ter medo mesmo. Aquele que não está com medo ou não está confusos, procure um psicanalista, você não está bem. Não está reagindo como se espera nessa situação. O medo não é pânico, o medo não é angústia, o medo não é ansiedade. Ele vem de condições objetivas.”

E prossegue: “A gente pode agir sobre o medo a partir de uma avaliação, entender o que a gente está enfrentando. O medo leva a gente a uma grande escolha: ou enfrentar ou fugir. E nem sempre fugir é a pior alternativa. É importante poder fugir. As pessoas que têm de enfrentar tudo e não se permitem recuar diante do medo são também muito tolas, são modos meio simples de funcionamento”.

CORAGEM E COVARDIA

O que nos leva de novo a perguntar ao psicanalista sobre as falas de Bolsonaro em que ele não se cansa de usar a palavra coragem, ao mesmo tempo em que chama de covardes os que não pensam ou agem como ele em relação à ameaça que o coronavírus representa para a saúde dos brasileiros –notadamente, os governadores.

O psicanalista explica: “A posição de Bolsonaro é contraproducente em vários níveis. Por que esse senhor precisa transformar isso em uma questão de coragem ou medo? Isso tem a ver com o semblante de virilidade: [a crença de que] os machos que forem mais machos vão sobreviver mais, que é a revelação de uma verdade já posta antes: esta é uma democracia para machos, uma democracia para fortes, é para quem tem mais os meios para o exercício do poder e da violência”.

Isso tem um desdobramento político: “Há um outro sentido nessa polarização. Ao mostrar sua valentia, há um outro sentido para a coragem nesse momento , que é sugerir que o congresso e o supremo são débeis, não sabem tomar decisões, que não tem a coragem devida. Isso me parece ser a preparação para um novo capítulo, que não dá para dizer qual será, mas faz parte do pior cenário possível”.

Dunker retoma a análise do discurso: “Na psicanálise, a gente conhece esse discurso de elogio à coragem como no fundo uma forma de encobrir a covardia. Bolsonaro é um contumaz covarde quando o assunto é o debate, quando o assunto é o espaço público, quando o assunto é diferença de opiniões, quando o assunto é o que fazer. O que ele vem mostrando é sempre covardia, fuga, desculpa, remeter isso para os outros, produzir culpados ou inimigos. Isso se chama covardia”.

COMO ENFRENTAR A QUARENTENA

Dunker também falou bastante sobre as reações de cada um de nós, em casa, a essa situação. E sugeriu diversas formas para enfrentar a angústia que aparece.

Buscar informação correta, baseada em ciência, é um caminho: “Ter informação é uma forma de lidar com o medo, é uma forma de agir racionalmente contra um inimigo, que é um micro-organismo que precisa ser enfrentado. Se você consegue se informar corretamente, elaborar cognitivamente o que está em jogo, você vai ficar seguro”

Apesar de, com o ele diz, não haver receita mágica para o enfrentamento das angústias e do medo, algumas práticas podem facilitar o transcurso desse período com o menor dano possível.

Seguem suas recomendações:
“Primeira: reconstituir seu cotidiano. Marcar horário de almoço, de janta, hora de dormir, horário de notícia, de falar com amigos, alguns marcos de descontinuidade na sua vida. Ficar nesse deslizamento, nesse tempo de planície, sem interrupções, é muito ruim.”

“Segundo: arrume a casa, literal e metaforicamente. Não deixe a louça empilhada, tapete sujo, porque você vai se expor a infecções adjuvantes, adoecimentos secundários. Além disso, lidar com suas coisas, arrumá-las, é uma atividade benfazeja para o ambiente e também psiquicamente, a gente muda o modo de funcionar.”

“Terceiro: leia. A leitura cria um trabalho atencional diferente –em relação a ficar vendo TV, filmes, ouvindo música etc. Você tem de entrar na história e esquecer de si, entrar no personagem, na trama. A leitura deve tomar, de preferência, um tempo maior, um tempo em que você sai de si e depois volta para si. É a biblioterapia, a terapia pelo livro, que é uma das práticas que deram origem à psicoterapia.”

E resume: “No fundo, isso vai tirar o pior e melhor de cada um de nós, e o melhor está do lado da solidariedade. Solidariedade não é só uma coisa benéfica do ponto de vista moral, social. Ela faz bem para a psique humana. Cuide dos outros”.

E é tudo isso que, na avaliação do psicanalista, “Bolsonaro não consegue entender. Como ele fez campanha e foi eleito a partir da produção de inimigos, é parte fundamental da política dele criar e controlar inimigos, e nomear, definir, localizar, inflar inimigos. Nessa situação, em que o inimigo está lá fora e se chama coronavírus, ele simplesmente não pode admitir isso. Acho que há ali uma limitação cognitiva, pessoal, moral, nem sei como qualificar. Tem ali uma atitude negação da realidade que acaba mostrando, nessa ocasião, do que ele é feito”.