“A Lava Jato acabou ou está no caminho para acabar, mas esse modelo vai ficar de pé? Vamos continuar tendo essa coisa essa vulnerabilidade ou será que o poder executivo e seus órgãos específicos vão passar a tomar conta disso? Será que nós vamos deixar o Ministério Público, com a sua concepção, tratar de soberania nacional? Será que este é o órgão, a instituição mais adequada para se dar conta de que tem vários outros elementos a serem cuidados, além da questão própria, do combate à corrupção? Isso aí foi favorecimento a interesses de outro país.”

Os questionamentos são da jurista Carol Proner, doutora em direitos humanos pela Universidade Pablo de Olavide, da Espanha, e integrante da Associação Brasileira de Juristas pela Democracia. Ela falou ao TUTAMÉIA no dia seguinte à decisão do Supremo Tribunal Federal que sacramentou a devolução dos direitos políticos ao ex-presidente Lula, confirmando sentença do ministro Fachin sobre a incompetência do então juiz Sérgio Moro para julgar aqueles processos.

“O prejuízo à participação popular provocado pela Lava Jato e pelas condenações ilegais de Lula é irreparável. As consequências para o país são dramáticas porque foi isso que produziu a figura do Jair Bolsonaro nesse vácuo da política. Talvez as forças que engendraram essa operação não sejam bolsonaristas. Acho que são lavajatistas, mais ligadas à direita neoliberal, a setores que estão aí agora sem coragem, sem tem vontade de empreender a questão do impeachment de Jair Bolsonaro. São pessoas que estão ligadas a setores estratégicos dos Estados Unidos, do deep state. O fato é que a consequência, inclusive pela fraqueza da direita de propor um candidato com condições de voto, foi a viabilização da extrema direita no país, do fascismo na política. O resultado está aí: política deliberada de mortes, uma usina de morte.”

“Desde a fixação artificial e equivocada, fantasiosa, falaciosa, farsesca da competência do juízo, nós já tínhamos o indicativo da suspeição, a tentativa de criar no imaginário popular, com a mídia condenando, a ideia de que Lula recebia propina da Petrobras”, diz Proner  (clique no vídeo para ver a entrevista completa e se inscreva no TUTAMÉIA TV).

E segue: “O caso de Lula não era um caso qualquer, era um caso que envolvia os direitos dele e os direitos coletivos, o direito mais importante na participação social, que é o direito ao voto. Esse direito penal de exceção, aliado a uma estratégia mais ampla de law fare, que foi desvendada ao longo do processo, tinha a intencionalidade justamente de limitar o direito de participação popular”.

ATAQUE À SOBERANIA NACIONAL

Professor de direito internacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro, ela aponta justamente a ingerência externa nos processos: “Havia um esquema muito bem forjado, envolvendo atores internacionais, a ingerência Internacional, e um nível de sujeição muito grande desses funcionários públicos. Medíocres, totalmente deselegante, com corte ideológico bastante racista, com ódio de pobre, com ódio de gente do povo, com um ódio de um projeto popular”.

Ela denuncia: “Os funcionários do sistema de Justiça brasileiro cooperaram em matéria penal, com documentos e instrumentos, com os Estados Unidos como se fossem funcionários deles. Abriram a casa: podem entrar… Facilitaram encontros e ainda recomendaram os advogados conversassem com as autoridades do Departamento de Justiça dos Estados Unidos, das entidades de investigação daquele país, e que fossem prestar depoimento lá. No momento em que eles vão prestar depoimento lá, abre toda um favorecimento de jurisdição, que não precisava ter sido feito, poderia ter demorado. Isso quer dizer que eu sou contra o combate à corrupção? Não! Eu sou a favor do combate soberano, e não capacho, e não sujeitando-se de uma vez por todas aos interesses de outro país”.

“Temos de ver como criar instrumentos que nos resguardem de voltar a acontecer o que aconteceu”, aponta a jurista.

SUBMISSÃO AOS ESTADOS UNIDOS

A professora de direito internacional afirma que está em curso no mundo um projeto dos Estados Unidos de, com a desculpa de lutar contra o terrorismo e a corrupção, se assenhorar dos processos judiciais em outros países –é a extraterritorialidade da justiça norte-americana, dos poderes dos EUA.

“O processo sobre Pasadena também se encaixa nessa tentativa de jurisdição universal de combate à corrupção que os Estados Unidos tentam impor ao mundo. Eles vão em cada país e procuram quais são as grandes empresas estratégicas. Não é à toa que, aqui no Brasil, os setores que foram afetados são os setores estratégicos para o futuro do país. Na construção civil, um milhão e cem mil empregos afetados diretamente. Destruíram as empresas, não foram atrás dos responsáveis pela corrupção. Por isso é que eu falo da necessidade de criar mecanismos soberano de combate à corrupção. A França caiu nessa armadilha dos Estados Unidos, e hoje há naquele país um debate soberanista sobre como combater a corrupção sem se submeter aos Estados Unidos e a esse regime hegemonista dos bancos”, diz a jurista.

E continua: “Isso nos vulnera completamente. Tem uma quantidade de coisas que nós temos que ver porque o modelo ainda está de pé, e é um modelo de guerra de novo tipo. Essas novas estratégias de guerras híbridas foram usadas no Oriente Médio, na África do Norte, na Eurásia”.

TERRORISMO E LEI DE SEGURANÇA NACIONAL

“Há um outro debate que surge a partir daí, que é sobre a Lei de Segurança Nacional. Nós podemos escorregar e cair num marco pior do que o anterior. Há uma tentativa de substituir a Lei de Segurança Nacional por lei antiterror e tentar complementar o quadro da organização da lei de organização criminosa. Isso é muito grave, é muito importante que a gente fique atento, pois é uma outra ofensiva desse mesmo grupo do deep state.”

A tentativa faz parte, explica ela, do processo de submissão aos EUA: “Isso foi uma missão do Sérgio Moro naquele período em que foi ministro: a primeira coisa que ele fez foi tentar aí na Tríplice Fronteira e reabilitar aqueles convênios e tratados que envolvem o combate ao terrorismo. É muito importante para esse grupo que se construa essa possibilidade de incidência dos tratados internacionais do Brasil que envolve o combate ao terrorismo, para depois eles fazem aplicar as leis extraterritoriais. Hoje os Estados Unidos vêm aplicando a extraterritorialidade sobre países como Venezuela e a China. Através da hegemonia do sistema bancário, eles podem bloquear contas, bloquear transferências bancárias. Essas vulnerabilidades que envolvem direito internacional também estão no combate à corrupção, isso é muito grave”.

E alerta: “Nós temos uma situação de vulnerabilidade, e o próximo governo tem essa incumbência de começar a ficar mais atento com esses novos recursos de desestabilização que estão ativos aqui dentro. Nós estamos muito vulneráveis: a gente não estuda mais defesa nacional. Defesa nacional nas mãos de militar é defesa de fronteira; não podemos ficar nessa. É muito mais coisa que está em jogo. Temos que estudar rede de computadores, estudar a questão da vulnerabilidade das grandes corporações que lidam com os nossos dados. São essas coisas que estão em jogo”.

CADEIA PARA BOLSONARO

A responsabilidade do governo federal sobre a mortandade no Brasil durante a pandemia, as chances de impeachment e as denúncias contra Bolsonaro no trib unal penal Internacional também foram analisadas por Carol Proner. Eis a seguir algumas de suas observações.

“A Associação Brasileira de Juristas pela Democracia fez a denúncia contra Bolsonaro no Tribunal Penal Internacional por genocídio, crimes de lesa-humanidade. Já havia uma denúncia anterior por conta do comportamento dele específico em relação a uma comunidade indígena no Mato Grosso do Sul, denúncia feita pela Comissão Arns, que é a denúncia que está prosperando.

“Bolsonaro pode, sim, responder por crime de lesa-humanidade nesse caso dos índios. Além disso, a OAB terminou ontem estudo concluindo que Bolsonaro fundou a República da morte na pandemia, agindo deliberadamente contra medidas de proteção ao coronavírus. Eles citam principalmente a falta de vacinas da Pfizer, no ano passado, as ações do Presidente de desautorizar o então ministro da saúde a comprar doses do Coronavac e a resistência do governo federal em adotar medidas sanitárias que ajudaram a minimizar a transmissão do vírus como distanciamento sociai e uso de máscaras.

“Ele pode responder, sim, um dia. Essas coisas demoram, mas um dia chega, porque não prescreve, esses crimes são imprescritíveis. Ele não terá escapatória: um dia ele responde. A ação dele é deliberada mesmo, é sistêmica, é flagrante e está no governo como um todo. Se condenado no TPI, ele provavelmente pegaria uns 30 anos de prisão. Então não é fácil. Ele seria enquadrado na condição de réu por crime de lesa-humanidade, a vida dele não vai ser fácil, não. Nem a dos filhos dele.”

IMPEACHMENT

“A questão do impeachment sempre está presa a um acordo político. Desde o ano passado… Há mais de cem pedidos impeachment, vindos da sociedade civil organizada. São dos integrantes do coletivo do Movimento Negro Unificado, dos partidos políticos,  do MST, da Frente Brasil Popular, da Frente do Povo Sem Medo; são coisas gigantescas, que representam setores enormes da sociedade. Há uma vontade de que se abra um processo político, que se inaugure um processo político.

“A gente nota que os empresários ficam entre tentar tirá-lo de uma vez e passar as piores pautas né neoliberais, que eles nunca mais serão a oportunidade. Se acabar o governo Bolsonaro, eles não vão passar mais essas pautas. Então eles só têm esse tempo final para passar. Então, se pensarmos quem são os interessados e o que está em jogo, o relógio vira ao contrário: quanto tempo falta para acabar o governo para que as faltas sejam aprovadas. Então, se o que está em jogo é isso, não há interesse mesmo para que o Bolsonaro seja retirado por um processo de impeachment”.

“A CPI da Pandemia, a meu ver, é muito favorável. Já começou a funcionar mesmo antes de ser instalada, fez com que Bolsonaro reagisse contra o ministro Barroso, já fez com que ele se desesperasse mais, se desestabilizasse mais, já faz com que ele tenha de se explicar. Tudo isso enfraquece Bolsonaro, no cômputo geral é bom.

“Ao mesmo tempo, vai criando na sociedade uma consciência sobre o que é certo e o que é errado na sociedade. As pessoas estão sendo levadas à morte por um engano. Isso é intencional, isso é deliberado, em alguns casos até programático, talvez até a necropolítica em ação. Eu espero que seja responsabilizado aqui dentro, e que as instituições possam fazer seu papel.”

LULA

Com a decisão do STF, Lula já teve restituídos seus direitos políticos, poderá concorrer às eleições 2022. Ele mesmo acabou de lançar nas redes sociais oficiais que não guarda rancor de ninguém, que está preocupado com o Brasil de 2021, que parem de falar de candidatura e passemos a cuidar do país atualmente e que ele tá pronto para lutar pelo país.

“Lula tem direito, sim, a todo tipo de reparação por parte do Estado. Pela privação de liberdade, os 580 dias naquelas condições, todo o dano moral, tudo que foi abalado. Não sei se ele vai pleitear, considerando quem ele é. Não sei se ele faria, se tem interesse nisso, mas que ele tem direito ele, tem. Com a grandeza dele, eu não me surpreenderia se ele dissesse que não vai atrás disso, eu acho que ele não vai.

“Lula sai com uma generosidade, uma altivez. Ele sai uma pessoa ainda mais forte, mais preparado.  Ele traz uma serenidade para o debate político que eu acho superengrandecedora. Espero que ele seja candidato. Ele não tá falando disso. Mas ele é um dos maiores quadros políticos da América Latina, se não o maior. A gente tem a sorte de ter ele aqui para ajudar a gente a sair desse buraco, desse abismo em que a gente está caindo.

“A própria liberação do Lula traz um traz um ânimo assim para imaginar que há racionalidade na política. Obriga também a haver um debate mais racional das pessoas na política. Acho que a gente tem condições de ter um futuro melhor. Eu sou uma otimista.”