“Nosso problema hoje não é vacina, nosso problema hoje é governo. Nós não temos governo. Esse cara que está aí, o projeto dele é matar um milhão de brasileiros. Não é nem os quinhentos mil, é um milhão logo. Porque, sem vacina, a tendência é ir morrendo.”
O alerta é do médico sanitarista e professor da Faculdade de Saúde Pública da USP Gonzalo Vecina, fundador e ex-presidente da Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária”. Ele participou da mesa redonda “Vacina: Quebra de Patentes em Debate”, organizada pela Frente da Saúde pela Vacinação Pública e realizada por TUTAMÉIA na noite deste sábado (20.3).
Participaram também do debate Boris Vargaftig, membro do PSOL, médico e professor titular aposentado do Instituto de Ciências Médicas da USP, que representou a Frente; Alessandro Octaviani, professor de Direito Econômico da Faculdade de Direito da USP e ex-membro do CADE – Conselho Administrativo de Defesa Econômica; e o jornalista Jamil Chade, especialista em relações internacionais pela Universidade de Genebra (clique no vídeo acima para ver a íntegra e se inscreva no TUTAMÉIA TV).
Vecina disse que, a se confirmar a atual programação de vacinação, em meados do segundo semestre o Brasil deve ter uma situação de aumento da cobertura vacinal e redução do número de casos. O que não necessariamente acaba com nossos problemas, no dizer do médico sanitarista: “Agora: o governo federal continua sendo o mesmo, então continuamos com problemas de isolamento social, continuamos com o problema da possibilidade de ocorrência de uma variante diferente. Então a preocupação com colocar esse senhor para fora tem de continuar importante”.
Por seu lado, o professor de direito Alessandro Octaviani apontou, ao falar sobre a distribuição de vacinas no mundo: “Um instrumento do estado moderno para lidar com essas questões sé a chamada diplomacia econômica. Basicamente: como é que nós vamos reordenar, enquanto humanidade, a disciplina jurídica do conhecimento, que é conhecimento comum e que interessa a todo o mundo. No começo desta pandemia, a Índia e a África do Sul foram à OMC (Organização Mundial do Comércio) propondo não uma simples moratória de um direito de propriedade industrial, de propriedade intelectual, mas sim revogar temporariamente o próprio sistema que regula isso em âmbito mundial. Essa proposta acabou sendo derrotada, mas tivemos uma mobilização na esfera da grande política mundial, na diplomacia econômica, basicamente contestando a atual divisão social internacional do trabalho intelectual e a sua forma jurídica, que a é a OMC. A OMC outra coisa não é que o congelamento de uma posição de força na aquisição da capacidade tecnológica do mundo”.
Questão também ressaltada por Jamil Chade: “Há uma crise profunda de qualquer tipo de cooperação internacional. O que foi feito na pandemia em termos de resposta global? Missão para descobrir o vírus? Zero!. Cooperação internacional em termos financeiros para ajudar os países mais pobres? Ainda estou esperando… Resposta financeira global? Em nenhum momento os bancos centrais do mundo sentaram em volta da mesa, como fizeram em 2008/2009, depois da queda do Lheman Brothers, para discutir um pacto mundial para recuperar a economia mundial. E a vacina? Ué, claro que não vai ter para todos. A falta de cooperação internacional não é apenas na vacina; a vacina é um sintoma de uma situação internacional muito grave”.
E o professor Boris Vargaftig ressaltou: “Precisamos lutar para que a vacinação em massa prossiga. Estamos de certa maneira jogando com os destinos da humanidade. Não é uma coisa à toa. Virão outras enfermidades, virão outros vírus; as mudanças ecológicas em curso levam ao aumento das doenças infecciosas. É uma coisa nova”.
Vargaftig abriu os debates da noite fazendo uma contextualização geral do tema em discussão, que reproduzimos a seguir, na íntegra (o título é nosso).
O PREÇO DO NEGACIONISMO CIENTÍFICO, DO TERRAPLANISMO E DO FANATISMO MESSIÂNICO
- A situação reinante hoje é gravíssima, como mostram os cálculos de Miguel Nicolelis, um dos fundadores do Comitê Científico do Consórcio dos governadores do Nordeste, que prevê, a continuar como progride a pandemia, 500.000 mortos em torno da metade do ano. Os números não têm posicionamento político, são o que são e não adiante xingá-los.
- Não há sanitarista que não pretenda que, nas condições atuais, não existe “tratamento precoce” e que os medicamentos como a cloroquina, distribuídos por algumas agências federais, são absurdos, dão falsa esperança, oneram os orçamentos da saúde, podem envenenar e sua promoção sabota a única medida eficiente, que é o isolamento social, em suas diversas modalidades. Acontece que certos órgãos da categoria médica estão ligados de alguma forma à extrema-direita e favorecem os falsos tratamentos, são cúmplices do que ocorre e de que ocorrerá em breve se medidas sérias não forem tomadas (além de pregadores de falsos tratamentos).
- A única medida medicamentosa que existe hoje é a vacinação, que já fez suas provas em muitas moléstias, sarampo e poliomielite são exemplos paradigmáticos. Quando estudante de medicina, vi na clínica ortopédica do HC as crianças com bloqueios diafragmáticos e dos músculos esqueléticos em geral, colocadas em horríveis caixas, os chamados pulmões artificiais. Víamos também as enormes dificuldades dos pacientes que sobreviviam, com extensas paralisias, caminhando com dificuldade, sofrendo pelo restante de sua vida.
- O responsável era um vírus e o Brasil soube combatê-lo, em operações gigantescas, envolvendo milhões de vacinados. Idem outras moléstias.
- Até há pouco, as vacinas não foram propugnadas pelas autoridades, uma “gripezinha” não valia a pena. Oportunidades de compras foram perdidas e/ou abandonadas e foram organizações baseadas na ciência, a Fiocruz e o Butantã, que enfrentaram o ostracismo, para desenvolverem localmente as vacinas disponíveis hoje.
- Uma vacina tem sempre uma história, como aliás os medicamentos em geral. Existe uma história puramente médica, como a da vacina contra a varíola, desenvolvida após observações de um médico inglês chamado Jenner, que havia notado que lesões chamadas de vaccínia, nas mamas de vacas leiteiras, protegiam as camponesas que ordenhavam contra a varíola. Aliás o nome “vacina” deriva da designação desta doença localizada das vacas, que protegeu milhões.
- A interação entre um germe e o meio natural, sobretudo alterado pelo homem, tem imensa importância na incidência de moléstias. Um exemplo vem do Vietnam, onde num passado distante os habitantes das colinas e montanhas viviam em casas de tipo palafitas, elevadas, alojando os animais no térreo. As mulheres cozinhavam na peça principal, esfumaçada. Nestas regiões, o mosquito Anopheles mininus, cuja fêmea injeta o parasita da malária, não voa além de uma altura de três metros, e assim não atingiam os alojamentos dos habitantes e, no térreo, eram expulsos pela fumaça. Mais tarde, os habitantes provindos do delta migraram às montanhas, fizeram suas habitações baixas e cozinharam no exterior. A incidência de malária foi tão elevada, que se julgaram enfeitiçados e partiram.
- Estas situações se reproduzem em circunstâncias também dependentes do meio, para outras moléstias. Assim, o crescimento do agronegócio, “Agro é tudo”, e a ideologia da “nova fronteira” como alternativa à miséria, “coisa de macho”, oferece condições para a destruição desordenada de florestas, com os desequilíbrios ecológicos que disto resultam.
- A incompetência reinante nas estruturas responsáveis pelo combate, notadamente a incapacidade de tomarem medidas preventivas a tempo (esse seria o verdadeiro “tratamento precoce”), como a compra de vacinas antecipadamente, a organização de sua distribuição coordenação com governos estaduais e prefeituras, deram naquilo a que estamos assistindo. O surgimento da moléstia em Wuhan, na China, e sua expansão ulterior, não eram, na situação do conhecimento atual, previsíveis. Mas a previsão de estruturas sanitárias, cuidados ecológicos sérios, respeito e defesa dos técnicos e trabalhadores do ramo –faltaram completamente. Não por acaso faltaram respiradores, faltam subitamente oxigênio, medicamentos necessários para intubações, como bloqueadores neuromusculares. O negacionismo científico, o terraplanismo, o fanatismo messiânico, têm um preço, que é cobrado hoje.
- Um aspecto pouco discutido é o da autonomia do país em matéria de medicamentos e insumos estratégicos. Butantã e Fiocruz souberam se adaptar à realidade do mundo para empreenderam aquilo que levou finalmente a dispormos, embora em condições difíceis e com frequência contra autoridades, de duas vacinas produzidas localmente. Mas não desenvolveram sua própria, pelo que não têm responsabilidade. O fato é que os créditos de pesquisa, essenciais no caso para o desenvolvimento de uma vacina baseada na ciência constituem uma necessidade absoluta para este tipo de empreendimento. Faze-lo sem este apoio é como mandar foguetes à lua tendo boa formação no uso de fogos de artifício! Estes créditos minguam; sua deficiência parece planejada, construir ou manter uma estrutura nacional de pesquisa condiciona não só o conhecimento, mas qualquer desenvolvimento de produtos, em qualquer área, sobretudo na de alta tecnologia, como é a imunologia moderna. Quero lembrar que na Rússia revolucionária, os créditos para a pesquisa de Pavlov foram concedidos por interferência do próprio Lenin, apesar da miséria e dificuldades então reinantes, com o país invadido de todos os lados pela contra-revolução. Sabiam o que a ciência traria.
- Hoje falaremos de um aspecto mito importante do problema das vacinas: a posse. No capitalismo tudo é mercadoria, tudo incorpora trabalho vivo que passa a ter um custo. A regulação dos interesses eventualmente opostos de participantes no capitalismo se faz, entre outros, por patentes. Estas, como medicamentos e insumos médicos em geral, têm seu uso regulado por patentes, depositadas em órgãos reguladores. Como bancos, escritórios de import-export, serviços ditos de inteligência, todos estes organismos estão a serviço do capital. Acontece que em certos momentos (guerras, epidemias) estas regras não podem persistir. Discutiremos o problema da chamada quebra de patentes das vacinas, em que se suprime o reconhecimento destas mesmas patentes, para produzi-las livremente ou, com um acordo menos oneroso que seria com o pagamento de royalties. Não se trata aí somente de medida política que precisa de respaldo, mas de planejar o uso da liberdade assim adquirida: possuir a tecnologia, os especialistas, as máquinas e seus insumos, tudo em quantidade mais do que imediata. Um governo que não consegue planificar a disponibilidade de vacinas compradas, não conseguirá, mesmo se quisesse, fazer isto. Veremos hoje que problemas são suscitados e discutiremos como resolvê-los.
- Termino com um trecho de uma rubrica assinada ontem pela jornalista Eliana Brum, a respeito do coma de seu companheiro de trabalho, o fotógrafo Lilo: “Ele possivelmente se contaminou com o novo coronavírus ao fotografar o ecocídio produzido pela Usina Hidrelétrica de Belo Monte na Volta Grande do Xingu. Lilo é vítima do genocídio produzido por Jair Messias Bolsonaro, ao deliberadamente agir para disseminar o vírus durante todo o primeiro ano da pandemia, chegando ao inominável de recusar o oferecimento de vacinas. Altamira, neste momento, como grande parte das cidades brasileiras, está em colapso. O último levantamento mostrou 17 pessoas em estado grave, esperando por um leito na UTI do hospital. Estamos chegando a um ponto do horror em que cada brasileiro está ameaçado de perder alguém que ama, quando não a própria vida”.
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