“O cenário da pandemia no Brasil é muito grave. Nós ainda passaremos por num grande agravamento da situação. Oficialmente, são cerca de nove milhões de brasileiros infectados; ou seja, mesmo se, considerando a subnotificação, a gente triplique esse número, são 27 milhões; então estamos falando aí de mais de 180 milhões de brasileiros suscetíveis ainda à pandemia. Temos Carnaval se aproximando; depois chegam o outono e o inverno, que facilitam a transmissão. A pandemia se espalha pelo país em ritmos e momentos distintos. Nesse momento, está muito crítica em quase todo o país.”
Essa é a avaliação que faz, em entrevista ao TUTAMÉIA, o médico sanitarista e professor universitário Arthur Chioro, ministro da Saúde no segundo governo Dilma. A causa desse quadro é assim resumida por ele:
“O maior responsável por tudo isso é o criminoso-mor, não há outra expressão, que é o presidente da República. Ele se colocou como o pior inimigo –não é o coronavírus, não é a ignorância, porque, na verdade, ele é o grande fabricador, estimulador dessa desorganização, dessa resposta insuficiente, desqualificada, criminosa, sem empatia, sem responsabilidade, sem nenhum respeito pela vida.” (Clique no vídeo do alto da página para ver a entrevista completa e se inscreva no TUTAMÉIA TV)
As consequências dessa “desastrosa atuação política, criminosa, do presidente Bolsonaro” mais “os erros na condução do ministério da saúde pelo governo Bolsonaro” são ainda agravadas, na avaliação do ex-ministro, pela enorme desigualdade social no país.
“Nãoo se olhou parta o impacto da desigualdade. Essa epidemia não é democrática: ela afeta, de forma muito desigual, os desiguais. Com uma carga enorme sobre a população pobre, preta, das periferias, que vem morrendo de forma muito mais acentuado do que o restante da população. O fato de também não enfrentarmos a desigualdade nos coloca no pior cenário”, diz Chioro.
NEGACIONISMO
De forma deliberada, o governo em suas várias instâncias, ignora os avisos da ciência e da medicina, uma atitude que traz como consequência, de um lado, a disseminação da epidemia e o aumento do número de mortes; e, de outro, a desinformação da população, que leva a comportamentos inadequados para a proteção social, como aponta Arthur Chioro:
“O que me preocupa é a incapacidade que o país tem tido de ouvir os infectologistas, os sanitaristas, os epidemiologistas, aqueles que têm conseguido desenhar o panorama do que nós estávamos vivendo, estamos vivendo e aquilo que se projeta para a frente. Em julho, a gente dizia que o Brasil fecharia 2020 com alguma coisa em torno de 184 mil óbitos. Diziam que éramos alarmistas. Quando a gente também destacou que o “liberou geral” vivido no período pré-eleitoral traria resultados dramáticos e que isso se somaria às festas de final de ano, novamente se desdenhou.”
Como explicar essa atitude, é de se perguntar. Ao que Chioro responde: “Pela pressão econômica, pela pressão político-eleitoral, por esse jogo de interesses, pela agenda de 2022, que tem sido colocada à frente de qualquer outra coisa, por uma enorme irresponsabilidade, por uma postura criminosa de boa parte dos governantes, nós estamos vivendo esse quadro. O descontrole no período pré-eleitoral e nas festas de fim de ano vem mostrando a conta. O que é pior: na maior parte dos lugares no país continua não sendo tomado o conjunto de medidas necessárias.”
A política negacionista, de desprezo às orientações científicas, lembra Chioro, vem desde o início da pandemia:
“O Brasil não tomou o conjunto de medidas de prevenção e controle. Não foram feitas as medidas de lockdown nem de isolamento social, não fizemos as medidas voltadas à prevenção. Faltou desde o começo tudo o que se pode imaginar, numa desorganização, descoordenação, descompromisso do ministério –os erros vêm desde o começo, como a aposta em uma única vacina, transformar a vacina em uma corrida eleitoral, uma corrida marquetológica pior ainda; deixar falta seringa, deixar faltar agulha, deixar faltar máscara, deixar falta respirador. Mais do que isso: perder a coordenação. O Brasil está vivendo o maior evento sanitário dos últimos cem anos e talvez da história do Brasil, o mais grave de todos os tempos, e sem uma coordenação nacional do Sistema Único de Saúde.”
As responsabilidades são claras, no entender do ex-ministro: “Primeiro, o grande responsável se chama Jair Bolsonaro, mas depois, progressivamente, só foi piorando a desmontagem e a descoordenação do ministério”.
VACINAS E FUTURO
O atraso no processo de vacinação, o bate-cabeças na compra das vacinas, os desastres diplomáticos e a propaganda antivacina do próprio Bolsonaro se somam para prejudicar a nação agora, quando a imunização começa a ficar disponível no mundo.
“A questão se desenha de maneira crítica porque nós muito provavelmente ficaremos no fim da fila na hora de uma certa volta à normalidade. O que vai ter um impacto político, econômico, social, sanitário sobre a vida das pessoas. Incrível! O Brasil, com a economia que tem, com a ciência e tecnologia que tem, com o sistema universal de saúde que tem, com um programa de vacinação de 47 anos, com toda essa história, nós jamais poderíamos estar na situação que estamos vivendo. O único cenário que se descortina é que, dada a manutenção da bagunça generalizada, do descompromisso, nós só atingiremos uma cobertura vacinal suficiente para interromper a cadeia de transmissão da doença e ter a proteção que almejamos do ponto de vista coletivo no final de 2022. Vejam os efeitos econômicos e sociais.”
Chioro também aborda a questão da compra de vacinas por grupos empresariais: “Agora, a gente ouve que o setor empresarial está se mobilizando para comprar vacina, o que quebra um princípio do direito à saúde. Se eles têm dinheiro, que comprem a vacina e a entreguem para esse incompetente do ministro da Saúde para ajudar. Mas simplesmente vacinar quem tem dinheiro e deixar de fora quem não tem é inaceitável. Não se pode cair no darwinismo social, no darwinismo sanitário. A única fila legítima é aquela de prioridades: os profissionais de saúde que está na linha de frente, os profissionais de saúde que estão na retaguarda, os idosos que estão em asilos, os indígenas e quilombolas, porque têm um sistema imunológico mais vulnerável; depois, os idosos e as pessoas que têm comorbidade –os brasileiros que têm comorbidade para a covid dá mais de 56% da população adulta”.
E, olhando para o futuro, faz um alerta e um chamamento:
“Este país, para ter soberania, precisa ter a defesa de um sistema de saúde pública para todos, capaz de produzir igualdade, equidade, justiça social. Tempos de sair desse quadro melhores. Temos de sair dessa história sendo uma nação mais comprometida com a vida e mais capaz de se preparar para outros eventos trágicos, outras emergências sanitárias que, com certeza, virão. No século passado, tivemos duas; neste século, em duas décadas, já são cinco. E há a certeza de que vai vir a sexta. Portanto, não podemos deixar de aproveitar para aprender muito. E um dos maiores aprendizados que a gente tem é que não podemos ter um governo, um presidente dessa estirpe. É fundamental valorizar a democracia, valorizar a política e, juntos, construirmos uma democracia forte, capaz de garantir a defesa da vida de todos e de todas.”
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