“A violência contra os povos indígenas é intensa, é cotidiana, e ela não cessa. As pessoas não conseguem dormir à noite porque passa gente disparando sobre os barracos. É uma violência sistemática, que antes nós combatíamos, e a gente acreditava que tinha o estado que poderia agir na defesa desses povos. Agora não: é um Estado que autoriza esse tipo de ação criminosa. Nós estamos diante de um Estado criminoso. Se os poderes públicos, Judiciário, Legislativo e o próprio Executivo, não agirem, eles serão cúmplices de um genocídio daqui a poucos anos. Grave, brutal genocídio. Se devastam as terras, matam-se as pessoas e rouba-se o direito daqueles que não têm terra a poder ter um dia acesso à terra. É o tripé: tira o direito, tira a terra e tenta integrar. Porque daí não tem perspectiva de uma vida indígena no país. Essa é a tese do Bolsonaro. É isso que ele defende, e isso que sua antipolítica vem sendo implementada nesse ano e meio em que ele está no poder.”

A afirmação é do missionário leigo Roberto Antonio Liebgott, coordenador da regional sul do Conselho Indigenista Missionário, que falou ao TUTAMÉIA em programa sobre o recém-lançado relatório do Cimi “Violência Contra os Povos Indígenas”.

Participou também o presidente do Cimi, dom Roque Paloschi, arcebispo de Porto Velho, que começou falando sobre a situação dos povos originários na Amazônia nesta crise sanitária: “A pandemia revela isso. As comunidades indígenas tentaram fazer aquilo que era possível, mas as políticas públicas não colaboram. Os invasores, os grileiros, os madeireiros, os garimpeiros e outros grupos, eles não fazem quarentena, elas vão com tudo, porque eles se sentem legitimados pelo discurso do governo brasileiro”.

Sobre o território onde exerce sua missão pastoral, em Rondônia, ele diz: “Aqui nós temos o povo caripuna, dentro do município de Porto Velho, a poucos metros da cidade, terra demarcada, homologada, registrada, portanto terra da União para o povo caripuna. Essa terra está sendo invadida há vários anos. Nada acontece. A situação tende a piorar” (clique no vídeo acima para ver o programa completo e se inscreva no TUTAMÉIA TV).

Já piorou muito ao longo do governo Bolsonaro, como demonstram os números do relatório do Cimi, que analisa dados de 2019 e os compara com os do ano anterior –que também já foi de aumento da violência contra os indígenas.

O número de invasões mais que dobrou: “Houve um aumento de 134,9% nos casos relacionados às invasões, com o registro de 256 casos de invasões possessórias, exploração ilegal de recursos e danos ao patrimônio em pelo menos 151 terras indígenas, de 143 povos, em 23 estados”.

O documento também afirma: “A ‘explosão’ de incêndios criminosos que devastaram a Amazônia e o Cerrado em 2019, com ampla repercussão internacional, deve ser inserida nessa perspectiva mais ampla de esbulho dos territórios indígenas. Muitas vezes, as queimadas são parte essencial de um esquema criminoso de grilagem, em que a ‘limpeza’ de extensas áreas de mata é feita para possibilitar a implantação de empreendimentos agropecuários. Infelizmente, as violências praticadas contra os povos indígenas fundamentam-se em um projeto de governo que pretende disponibilizar suas terras e os bens comuns nelas contidos aos empresários do agronegócio, da mineração e das madeireiras, dentre outros”.

A ocupação é feita à base de intimidação, ataques, brutalidade contra mulheres e crianças, extermínio de lideranças: “No capítulo Violência Contra Pessoa, foram registrados os seguintes dados em 2019: abuso de poder (13); ameaça de morte (33); ameaças várias (34); assassinatos (113); homicídio culposo (20); lesões corporais dolosas (13); racismo e discriminação étnico cultural (16); tentativa de assassinato (25); e violência sexual (10); totalizando o registro de 277 casos de violência praticadas contra a pessoa indígena em 2019. Este total de registros é maior que o dobro do total registrado em 2018, que foi de 110”.

“Nosso documento é um grito à sociedade brasileira e à sociedade internacional para que voltem os olhos e se preocupem com a realidade dos primeiros habitantes de nosso país e sobre as terras que esses povos ocupam e que hoje estão sendo devastadas. É um chamado ao poder público para efetivamente atue no sentido de assegurar aos povos indígenas os seus direitos constitucionais”, diz Liebgott.

O missionário, formado em direito e filosofia, mostra o retrato que os números constroem: “O que percebemos, examinando os dados de 2019? Primeiro: quem mais praticou crime foi o próprio Estado, através do governo federal. O que o discurso de Bolsonaro propõe é a desqualificação dos direitos constitucionais dos indígenas, como se direito não houvesse ou fosse privilégio. E em segundo lugar ele autoriza, a todos os setores que são contrários aos indígenas, a que passem a provocar e a invadir, de forma contínua, os territórios. Que é o que efetivamente aconteceu”.

O relatório do Cimi sustenta a firmação do missionário, dizendo que, em muitos casos de ataque a terras indígenas “os próprios invasores mencionavam o nome do presidente da República, evidenciando que suas ações criminosas são incentivadas por aquele que deveria cumprir sua obrigação constitucional de proteger os territórios indígenas, patrimônio da União”.

Para Liebgott, “há um sentido nisso tudo, por parte do Estado, que é autorizar, avalizar, para que os territórios possam ser invadidos, e os povos possam ser agredidos fisicamente, culturalmente e territorialmente. O governo Bolsonaro prega para os povos indígenas os preceitos da ditadura militar: a assimilação dos indígenas à sociedade ou sua integração forçada. Ele propõe um tripé na sua política anti-indigenista, que é o da desconstitucionalização, da desterritorialização e da integração dos povos indígenas à sociedade brasileira. Isso desembocou no contexto absolutamente sombrio e devastador na vida dos povos indígenas no Brasil. A devastação da Amazônia é cotidiana, acelerada e brutal de tal forma que não sobrará nada em poucos anos, se continuar sem controle”.

Dom Roque lembra as palavras do papa Francisco na encíclica “Tutti Fratelli”, que denuncia as desigualdades no mundo e prega a solidariedade. “Anteriormente, nos encontros com os movimentos populares, o papa também aponta que a solução vem de baixo para cima, e não de cima para baixo, onde a concentração, onde a economia mundial se resume em um pequeno grupo de pessoas que vão dominando. É só ver o que essas grandes empresas ganharam durante a pandemia: os números são assustadores! Eu lembro que, quando ele esteve em Puerto Maldonado, no Peru, ele foi muito explícito ao falar sobre a relação criminosa com a exploração dos recursos naturais. Nada justifica a exploração de maneira gananciosa, ambiciosa, de grupos, em detrimento dos povos originários e dos povos de cada país e do mundo.”

Essa exploração que o Cimi vem denunciando em seu trabalho pastoral, explica o presidente do Conselho: “O Cimi procura ser um aliado dos povos indígenas. Caminhamos juntos na discussão das questões e no encaminhamento de soluções. Acreditamos ser um dever nosso, de denunciar todas essas práticas criminosas, que vão se agravando cada vez mais. Esse povo se sente autorizado, se sente confirmado pelo governo para agir dessa maneira. E não há justiça”

Prossegue dom Roque: “O genocídio continua. Se negam os direitos básicos dos povos indígenas, os direitos originários e os direitos constitucionais. A única coisa que os povos indígenas têm é o direito ao território, e até isso o governo quer tirar“.

Por isso, Liebgott aponta: “Precisamos projetar de forma mais intensa as nossas mobilizações para tentar frear esse brutal governo que nós temos no país hoje. Ele não mede esforços para combater indígenas, quilombolas, moradores de rua, pessoas das favelas, ele tem como ambição o rompimento de qualquer perspectiva do respeito aos direitos humanos”.

Trata-se de uma situação que não pode ser enfrentada apenas pelas próprias vítimas, destaca dom Roque Paloschi: “Somos atacados constantemente, mas o Cimi vai caminhando, tendo essa certeza de que nós não podemos ter medo. Nesta hora não se pode calar, nessa hora nós não podemos ficar indiferentes. Estamos diante de uma situação que exige muito mais do que a presença de Cimi, exige a participação social. A causa indígenas é de todos nós”.