“Respirem!”, pede e conclama o escritor Paulo Scott ao final de sua entrevista ao TUTAMÉIA, depois de falar de racismo, fascismo e produção literária, de movimentos populares e das rebeliões contra a violência policial, como a que sufocou até a morte George Floyd –“Não consigo respirar” foi a última frase do homem negro esmagado pelo peso de um policial em Minneapolis, nos Estados Unidos.
“Ser de uma família negra é uma luta constante”, disse ele, ao falar sobre si mesmo e sobre os personagens de “Marrom e Amarelo”, livro que “discute o racismo de forma contunde, nunca vista na literatura brasileira”, no dizer de Paulo Lins, autor de “Cidade de Deus” (clique no vídeo acima para ver a entrevista completa e se inscreva no TUTAMÉIA TV).
Ele explica: “Nesse romance, eu parto de uma realidade que eu conheço. Eu venho de uma família negra. Desde a minha adolescência, mas principalmente na faculdade, eu passo a me autoidentificar como um indivíduo negro, um negro pardo claro. Isso para mim era essencial em um país que não consegue se olhar no espelho, que não consegue dialogar com sua ancestralidade. Mesmo nos espaços de esquerda –eu fui presidente de DCE, trabalhei com o Movimento de Justiça e Direitos Humanos–, eu percebia que a militância, as lideranças não percebiam a urgência de certas conversas, de certos diálogos e abordagens.”
No centro da trama estão dois irmãos, um mais claro e um preto retinto, tal como na família de Scott: “Meu pai chama meu irmão de Marrom e me chama de Amarelo. Isso é da minha família mesmo. O resto não é da minha família. Quando a gente nasce muito claro, como eu nasci, você tem um cabelo muito claro, liso, depois que ele vai escurecer e encrespar. A mãe logo sacou de dizer pros filhos que era uma família negra. Mesmo que você se reconheça negro, você [sendo mais claro] não sofre as consequências da hierarquia cromática que existe no Brasil e nos Estados Unidos, que se chama colorismo e que divide a comunidade negra de uma forma absolutamente eficaz e efetiva”.
Não confunde a sua história com a literatura, afirma Scott: “Tenho uma verdade que eu conheço, que eu uso para fazer ficção. Ser negro é uma luta constante. Você não tem descanso. É julgado o tempo todo. Estudantes de países africanos que foram estudar em Porto Alegre me disseram que só aqui no Brasil, na América, foram descobrir o que é ser negro”.
A literatura pode abrir janelas de percepção, ajudar a compreender os problemas da sociedade e do íntimo das pessoas:
“Não acho que a literatura tenha soluções para essa realidade. Mas pode ser um raio X. Por que a poesia é tão legal? Porque ela nos ajuda a enxergar certos ângulos e certas sombras que nós não enxergaríamos. E a literatura tem isso, uma arma poderosa, que é o diabo da empatia. Tenho amigos brancos, de classe média alta, que me disseram: `Pô, Scott, só quando eu li “Marrom e Amarelo que eu entendi um monte de coisa que você falava, e eu não conseguia entender´. Essa força que a literatura tem é muito significativa.”
Assim, mesmo sendo ficção, a literatura tem compromisso com sua época, com a realidade vivida. A pandemia do coronavírus, diz Paulo Scott, vai ter impacto sobre a produção e o consumo de ficção. No caso particular do próprio Scott, já teve impacto: o autor foi obrigado a fazer uma parada no livro que está escrevendo, “Rondonópolis”, para pesquisar mais e esperar os desdobramentos da crise do Covid 19 no país.
“Acabei deixando de lado o romance novo, porque eu preciso entender um pouco melhor a repercussão da pandemia para retomar o início. Até porque o livro começa no início deste ano, em Xangai, onde eu estive no ano passado para fazer uma residência. Tem várias coisas que têm de esperar o desdobramento. Hoje não tem como não incorporar o que vai sobrar dessa nossa experiência, que vai durar mais alguns meses. O leitor, a leitora, como aconteceu depois da Segunda Guerra, não vai se contentar com certa narrativa de ficção realista. Os impactos do que está acontecendo agora vão mudar a procura, os desejos e a leitura de quem se relaciona com ficção literária, com literatura. O livro já está estruturado, já comecei, … então fico pesquisando.”
Mas não se trata apenas de sua história ser afetada; o impacto na criação e no consumo de literatura será geral, no entender do escritor gaúcho:
“A pandemia é um espelho. Agregará novos traumas a todos nós, nos descortinará mais uma vez, mostrando nossas virtudes, nossas perversidades, nossos egoísmos, nossas incapacidades, sobretudo nossa covardia. Esse trauma não vai admitir certas embromações, certas narrativas que tratam de situações que podem parecer ingênuas ou não suficientemente profundas, não suficientemente reais ou verossímeis depois desse trauma.”
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