Os tiros e as bombas israelenses que, na Faixa de Gaza, mataram mais de sessenta jovens palestinos e deixaram cerca de dois mil feridos ecoaram no estúdio de TUTAMÉIA ao longo de nossa entrevista com padre Julio Lancellotti, um dos maiores defensores dos moradores de rua que São Paulo já conheceu.
Padre Julio só soube do massacre quando chegou para a entrevista, na manhã de segunda-feira, 14.5. Suas primeiras palavras foram de lamento, indignação, revolta:
“Impactado pelo que está acontecendo na Faixa de Gaza, eu digo desde já: eu sou palestino! Queria estar lá com eles, jogando pedras no Exército de Israel. É uma vergonha, e o mundo não pode se calar diante de um massacre tão grande. O povo palestino, que tanto luta pela liberdade, pela dignidade da vida, está sendo massacrado pela violência do Exército israelense, que quer defender um imperador do mundo, decadente, como é o presidente dos Estados Unidos, Trump, que é o rosto da morte.”
Coordenador da Pastoral do Povo de Rua da Arquidiocese de São Paulo e pároco da igreja São Miguel Arcanjo, na Mooca (zona leste), Padre Julio trabalha há décadas com a população pobre da cidade. Por causa disso, não poucas vezes foi perseguido: em março último, recebeu mais uma das tantas ameaças de morte de que já foi vítima.
”Essas ameaças que eu tenho vivido são por causa dos moradores de rua, é por causa desse ódio aos pobres, que se chama aporofobia. Nós vivemos numa sociedade que tem ódio aos pobres, que tem ódio aos moradores de rua.”
Uma sociedade que pouco ou nada faz para enfrentar, minorar a situação de desigualdade social. Transforma a vida numa guerra, define o religioso, que vai completar setenta anos em dezembro:
“Nós vivemos aqui no Brasil algo que é quase semelhante [à vida dos palestinos]: aqui também há uma Faixa de Gaza. Há lugares no Brasil que se chamam mesmo de Faixa de Gaza, onde vivem os moradores de rua, as pessoas das ocupações, as pessoas sem condições de vida, que estão se amontoando nos quartos. Aumenta a mortalidade infantil de forma tão alarmante. É também uma guerra o que estamos vivendo aqui, um ataque sistemático por essas forças dessas reformas econômicas.”
Apesar das dificuldades, o povo de rua luta: “Nossa resistência é incomodar. Os pobres incomodam. Por isso que as políticas hoje são de higienização: querem que os pobres desapareçam. Como diz o papa Francisco, `O sistema produz os pobres e depois quer escondê-los`. Não vamos deixar os pobres escondidos. Nosso trabalho é incomodar. Se eles não nos dão paz, nós também não vamos deixá-los governar em paz. Vamos incomodar, ser a pedra no sapato.”
O papa Francisco esteve muito presente ao longo da entrevista, como está presente na vida de Lancellotti e na luta dos sem teto de São Paulo: chegou até a mandar seu solidéu [chapéu religioso] de presente para padre Julio e a pastoral:
“Foi um gesto de carinho. E o povo da rua leva aquilo para todo o lado, numa caixa de acrílico. Eles falam que é o bonezinho do papa.”
Apesar disso, o papa Francisco está longe de ser uma unanimidade na igreja. Padre Lancellotti diz que a orientação papal tem adversários e inimigos no Vaticano e aqui no Brasil também, mesmo entre os jovens religiosos:
“O clero mais jovem não gosta do papa Francisco. Está na retranca. Eles querem o glamour, o poder. Não são todos: há muitos padres, jovens seminaristas, comprometidos com uma luta transformadora. Mas o neoconservadorismo na igreja –como na sociedade como um todo—é muito forte. Eu vejo grande parte de seminaristas e de padres jovens buscando a identidade no conservadorismo, onde dá segurança. Porque viver junto do povo, viver a força do amor que descentra, é muito arriscado. Querem viver seguros; para isso, é preciso tirar todos os questionamentos e todas as dificuldades.”
A seguir, alguns destaques da entrevista com o religioso, que também falou sobre deus e o diabo, a formação de novos padres e os desafios da igreja, além de homenagear figuras como o cardeal Arns e dom Luciano –e muito mais, como você verá assistindo ao vídeo que pode ser acessado no alto da página.
GOLPE FAZ AUMENTAR POBREZA
Vemos o resultado desse golpe: hoje eu encontrei várias famílias que estão cozinhando com álcool. Estão em quartos com muitas pessoas, e as crianças correm sério risco de serem queimadas e de inalar a substância tóxica do etanol.
O preço do gás é impossível. O custo é tão alto que o povo voltou a cozinhar a lenha, voltou a cozinhar com etanol. E isso no centro de São Paulo, na cidade mais rica do Brasil, imagine isso pelo restante do país, no sertão, no Nordeste, no interior, onde as pessoas estão completamente abandonadas.
Estamos vivendo uma situação de aumento da pobreza. Sá na área da Grande São Paulo, no último ano, houve um aumento de mais de 35% da situação de extrema miséria.
Hoje fiquei muito chocado, na paróquia, vendo as crianças. Estava lá com várias famílias, me contando que estão cozinhando desse jeito, numa situação de extremo risco. São pessoas que estão numa situação de extermínio, numa situação, realmente, de morte.
Essa situação da mortalidade infantil, a dos moradores de rua, é o que se chama hoje de MISTANÁSIA, que é a morte social, a morte que poderia ser evitada.
No caso das crianças, são mortes que poderiam ser evitadas com melhores condições de saúde, de higiene, de saneamento básico. As pessoas são condenadas a morrer por uma situação social. É a morte social dessas pessoas que, pela miséria, pela falta de atenção básica à dignidade da vida, eles morrem, porque não têm acesso a água potável, não tem acesso a medicação de urgência, porque não têm o cuidado materno-infantil.
SISTEMA DA MORTE
A pobreza mata pelo abandono, pela falta de respostas. O fato de viverem na pobreza e de viverem numa país onde a pobreza aumenta, onde o sofrimento dessas pessoas aumenta, é o que vai levando ao completo abandono.
Não há condições de vida dignas. O sistema que nós vivemos, todo ele, é um sistema de morte. O Papa Francisco diz que nós vivemos um estado iníquo, uma situação política, econômica, social iníqua, causadora e propiciadora de morte, e não de vida.
Esse sistema, o neoliberalismo, esse capitalismo liberal exacerbado, ligado à meritocracia, ligado à competição, isso não tem futuro, isso é de morte. E os pobres vão morrer. É o que o papa Francisco chama de descartáveis. É uma população que está aí para morrer mesmo: é deliberadamente descartada pelo sistema.
DENUNCIAR, RESISTIR, INCOMODAR
Nós temos de romper. Temos de resistir a isso. Isso tem de ser denunciado, isso tem de ser tornado público. Nós vivemos no tempo dos fake news, vivemos no tempo em que as pessoas são enganadas.
Nós somos uma geração que tem de aguentar e resistir. E não se calar. Dizer, como tem feito o papa Francisco: essa população está descartada. Esse sistema, disse o papa, é um estado iníquo, é um estado delinquente, um sistema gerador de morte.
Nós temos de vivenciar, com o nosso povo, experiência de autonomia, de resistência, buscar alternativas. A grande proposta é encontrar uma forma alternativa de viver. Essa que nós vivemos não tem futuro, ela está se exaurindo.
A resistência pode tomar muitas formas, pois vai ser uma resistência histórica.
Mesmo que nos matem, nós vamos morrer gritando contra esse sistema que nos mata.
É uma situação tão difícil a que estamos vivendo que a resistência é não aceitar fazer parte disso.
Algumas pessoas falam para mim: “Sucesso!” Mas não, eu não quero ter sucesso, quem tiver sucesso neste sistema é porque aderiu a ele. Neste sistema, eu tenho de ser fracassado. E o meu fracasso, a minha morte, a minha dor é a denúncia do carrasco deste sistema, que nos mata, que nos sufoca, que nos engana e que não nos permite viver.
PEDRA NO SAPATO
O povo de rua resiste porque quer comer, quer ter um lugar para dormir, ele quer ter alegria, ele quer fazer o seu pagode, ele também quer dançar, também quer fazer amor. É um povo que tem seus filhos, que tem suas crianças…
Eu acredito que a nossa resistência é incomodar. Os pobres incomodam. Por isso que as políticas hoje são de higienização. Elas querem higienizar, querem que os pobres desapareçam. Como diz o papa Francisco: “O sistema produz os pobres e depois quer escondê-los”.
Não vamos deixar os pobres escondidos. Nosso trabalho é incomodar. Se eles não nos dão paz, nós também não vamos deixá-los governar em paz. Vamos incomodar, mostrar que tem uma pedra no sapato.
Eles podem dominar, mas não vão dominar tudo. Não vão dominar nossa forma de pensar, nossa forma de sentir, nossa forma de agir.
Temos de ser a pedra no sapato.
PALESTINA E BRASIL
Os jovens palestinos, neste momento, são o paradigma, o protótipo da resistência. A pedra palestina contra o tanque de Israel.
Eles não vão conseguir enfrentar o tanque de Israel, o fuzil, a metralhadora dos soldados israelenses –que as polícias militares usam também aqui no Brasil. Mas eles mostram e chamam a atenção do mundo: cada palestino que cai é a dor da resistência de nosso povo. Nós morremos com cada palestino, e nós vivemos com cada um que sobrevive.
Cada palestino que morreu hoje na Faixa de Gaza é um morador de rua, é uma mulher, é uma criança…
A luta é essa.
O que vai acontecer lá? Os jovens palestinos vão morrer. Mas eles vão morrer manchando de sangue as mãos do Trump, do Netanyahu, aquele diabo de Israel, vão manchar as mãos deles de sangue. Eles não vão ser felizes porque vão ter as mãos manchadas de sangue, do sangue palestino, como aqui, do sangue dos pobres, dos moradores de rua, das mulheres, dos que foram incinerados no prédio do largo do Paissandu. Eles não serão felizes com a morte dos pobres. Eles vão engasgar com a champanhe que eles vão tomar. Eles vão engasgar com a comida refinada que eles vão comer.
A história vai mostrar. Quem no mundo vai aceitar o extermínio do povo palestino? Os loucos? Nem em Israel o povo vai estar de acordo com isso. Os que lutam pela dignidade, pela liberdade, vão resistir.
Como aqui nós vamos resistir, também, e vamos ter de lutar também e vamos ter de enfrentar, também, essas forças do Mal.
Nossa luta é uma luta histórica. É uma luta que não começou conosco e que não vai acabar conosco.
REPRESSÃO
O que me fere mais é que eles batem nos moradores de rua e falam para eles que eles estão apanhando porque são meus amigos.
Durante um tempo, na antiga Febem de São Paulo, que hoje é a Fundação Casa, tinha um cassetete em que estava escrito “Padre Julio Lancellotti”.
Os guardas diziam para as crianças: “Vocês querem chamar o padre?” E batiam neles com aquele cassetete.
Tinha também um cassetete chamado “direitos humanos”. E tinha um chama do “ECA” (Estatuto da Criança e do Adolescente). Era escrito no cassetete. E os meninos apanhavam com aqueles cassetetes, com o meu nome, ECA, direitos humanos.
Muitos que batem nos moradores de rua dizem: “Vai chamar o padre, ele é o primeiro que nós vamos quebrar a cabeça!”
É uma virulência, uma força muito cruel.
Precisamos ter sempre claro: lutar não é crime, quem ocupa não tem culpa. Lutar por uma vida digna, em que haja espaço para todos. Esta cidade não tem prédios abandonados, tem povo abandonado.
O que as pessoas querem ter, tanto os palestinos quanto povo da rua, é autonomia. Querem se autodeterminar, não querem ser tutelados, não querem ser confinados. Toda forma de confinamento é crime, toda forma de tutela de um povo, de uma nação, de um grupo social é inadequada.
EMPOBRECIMENTO ENLOUQUECEDOR
A população de rua sobe no mundo inteiro. Nova York são 50 mil, Los Angeles, 40 mil, São Paulo deve estar passando dos 20 mil, o Rio de janeiro está chegando a 15 mil, o crescimento é exponencial em Florianópolis.
Isso é resultado do empobrecimento, que é resultado do desemprego. E do individualismo nas famílias, de não suportar a pessoa que é difícil. Aumenta a dificuldade de sobreviver, e isso vai enlouquecendo as pessoas, também vai tornando as pessoas mais intolerantes.
Toda essa depressão econômica que a gente está vivendo, ela tem um impacto na vida humana. As pessoas não têm como comer, não têm como curar suas doenças, suas dores, não têm onde dormir, não têm uma casa para juntar o seu grupo familiar.
A gente está passando por um empobrecimento enlouquecedor.
Estamos vivendo uma época de mudanças. Mas, se nós não atentarmos, será uma mudança para a barbárie.
DEMÔNIO
Nunca se falou tanto em demônio, sem entender o que é o demônio na Bíblia.
O demônio é o que divide, o demônio é o que aliena, o demônio é o que tira a pessoa da comunhão e do convívio, que desumaniza.
Jesus expulsa o demônio que desumaniza. Ele é um exorcista, ele tira as pessoas da alienação, ele tira das pessoas aquilo que divide, aquilo que aparta as pessoas do convívio humano, tudo aquilo que desumaniza.
Hoje, qual é o demônio? O demônio é o capitalismo!
O demônio é o que faz aumentar a mortalidade infantil, o demônio é o que desemprega as pessoas, o demônio é a especulação imobiliária. Esse demônio é que tem de ser expulso. O demônio é aquilo que aliena as pessoas, que entristece, que angustia, que faz as pessoas ficarem sofridas.
O demônio é a exploração, é o que desemprega, são as forças que matam os palestinos. Isso é o demônio. É aquilo que desumaniza a vida, que expropria.
Esse demônio é que tem de ser expulso. O demônio do “CAPETALISMO”, como dizem alguns bispos lutadores e como diz dom Angélico [Sândalo Bernardino]. Esse que é o demônio, o demônio CAPETALISTA.
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