“A vida de Stephen Hawking, sua determinação de se comunicar, de continuar produzindo, tudo o que fez é um ato de enorme bravura, uma resistência, um ato de amor à vida. É um exemplo em que a gente deveria se mirar.”
É a avaliação do jornalista e doutor em ciências Ulisses Capozzoli, que participou de transmissão especial do TUTAMÉIA dedicada a analisar o legado do físico britânico, morto nesta quarta-feira (14/3) em Cambridge, Inglaterra, aos 76 anos.
Um dos mais importantes e influentes cientistas do século passado e deste início do século 21, Hawking foi, para milhões de pessoas, uma espécie de guia de viagem no maravilhoso mundo da ciência.
Seu livro mais conhecido, “Uma Breve História do Tempo”, discute as origens do universo, penetra nos escaninhos da física quântico, transforma em conhecimento palatável os para muitos de nós inimagináveis buracos negros.
Para além da divulgação científica, Hawking se dedicou à pesquisa com profundidade e criatividade reconhecida por seus pares, tentando até seu fim transformar em realidade o sonho de Einstein, a combinação, a unificação das teorias que buscam explicar as origens e o funcionamento do universo.
Enquanto trabalhava em tudo isso, o físico britânico enfrentava uma terrível doença, um mal degenerativo que o acometeu aos 21 anos e foi destruindo seu corpo. Teria dois anos de vida, foi o prognóstico que recebeu na época. Pois viveu mais 55 anos, e nenhum segundo em redoma de vidro.
Ao contrário, participou da sociedade e das lutas de seu tempo independentemente de sua condição física. Apoiou, por exemplo, o movimento pacifista e, de bengalas, esteve presente em manifestações contra a guerra do Vietnã (foto Mark Dee Smith).
Nos dias de hoje, em que o liberalismo vira corrente única de pensamento e a privatização parece a panaceia de todos os males, ergueu sua voz em defesa do sistema público de saúde. Não só denunciou a política do governo conservador britânico de tentar sufocar o sistema, entrando em debate feroz com o ministério da saúde, como também se associou a uma ação judicial para impedir que os projetos governamentais fossem levados à frente.
Enfim, como destacou Ulisses na entrevista ao TUTAMÉIA, foi uma vida dedicada à vida, à observação do universo, a tudo aquilo que faz de nós mais humanos, que faz de nós poeira de estrelas.
Talvez a própria condição física de Hawking tenha contribuído para que suas pesquisas e seus trabalhos tivessem tanta penetração na sociedade -é uma tese que Capozzoli levantou ao longo de nossa conversa e que debulhou em mais detalhes em um texto publicado nas redes sociais na manhã de hoje. Com autorização dele, reproduzimos a seguir as considerações do jornalista sobre um dos aspectos da trajetória de Stephen Hawking.
STEPHEN HAWKING JÁ NÃO VIVE MAIS AQUI
por ULISSES CAPOZZOLI
O século 20 foi pródigo em físicos de refinado talento, ainda que alguns tenham se destacado mais que outros no imaginário do grande público. Entre esse grupo mais reduzido, talvez ninguém tenha atingido o status de Stephen Hawking, morto nesta quarta-feira em consequência da doença degenerativa que se apossou de seu corpo aos 21 anos de idade. Desde então ele dizia desfrutar de um “bônus”.
O que explica a popularidade de Hawking em comparação a outros físicos como o absolutamente genial Richard Feynman (1918-1988), ou John Archibald Wheeler (1911-2008), ambos americanos, ou o alemão Werner Heisenberg (1901-1976), para citar, de forma injusta, uma lista de apenas três inteligências num universo amplo?
Feynman, que falava algumas palavras em português, gostava de tocar bongô, foi um dos pioneiros da eletrodinâmica quântica, uma teoria quântica (no nível atômico e subatômico) de campos eletromagnéticos, deixou uma contribuição ampla na física. Uma série de palestras que fez sobre gravitação, assunto aparentemente bem resolvido, publicada sob a forma de livro (As leis da física, disponível em português), é de rara beleza. Com uma jarra de água fria e uns pedaços de borracha ele decifrou o acidente com o ônibus espacial Challenger que explodiu em 28 de janeiro de 1986 matando toda tripulação. Feynman foi o humor e o afeto em pessoa, relatam quem o conheceu bem.
Wheeler, orientador do próprio Feynman, foi colaborador de Albert Einstein (1879-1955) que dispensa apresentações, o homem que alterou profundamente o conceito do tempo (dependente de um campo gravitacional ou da velocidade de um observador) e explicou a gravidade como uma curvatura da estrutura do espaço-tempo, que ele mesmo havia unificado em 1905 com sua relatividade restrita. Wheeler, com quem trabalhou o físico brasileiro Jaime Tiomno, é um dos pais da bomba de hidrogênio, algo capaz de causar repulsa nas pessoas, mas que, na essência, é um pequeno sol construído pela sofisticação da mente humana.
E Heisenberg, o pai da mecânica quântica, na sua versão atual, ainda que tenha seguido as pegadas deixadas por outros, como o também alemão Max Planck (1858-1947). A mecânica quântica se ocupa da matéria em escala atômica e subatômica, o que significa dizer, átomos quebrados em seus componentes: prótons, nêutrons e elétrons, nos dois primeiros casos construídos por quarks e finalmente os quarks formados pelo que podem ser supercordas infinitamente reduzidas. Algo como o toque em uma nota de um piano cria um quark, e quarks se combinam em diferentes formas para compor prótons e nêutrons que, reunidos aos elétrons criam corpos tão distantes quanto o de quem lê este texto, uma girafa, uma estrela ou uma galáxia inteira. O Universo conhecido. Ao menos em termos de matéria convencional, a que reconhecemos por aqui.
Einstein, em sua época, encantou o grande público com uma reinvenção do mundo. Mas Hawking, com seu corpo retorcido pela doença, sugeria uma inteligência alienígena, com segredos e conhecimentos que, supostamente, apenas alienígenas detêm. A mídia, evidentemente, com seu apreço ao exotismo, ajudou a esculpir essa imagem. Além disso, o refinado humor britânico, potencializado habilmente por Hawking também participou de sua própria escultura enquanto cientista pop star.
Isso não significa, evidentemente, que ele não tenha dado todas suas contribuições à ampliação do conhecimento na vertiginosa e fascinante exploração da máquina do mundo. Ainda que sua primeira mulher, Jane Wild, com quem teve três filhos, tenha dito de forma um tanto depreciativa, que ele “se acreditava um deus”. De perto, na intimidade como diz uma frase de gume afiado, “ninguém é perfeito”.
Hawking teve o talento de poucos, talvez o do físico soviético naturalizado americano George Gamow (1904-1968), mas em outro estilo e em outro tempo, de traduzir ciência para as multidões. Sua contribuição quanto à evaporação de buracos negros (expressão criada por Wheeler), para citar apenas uma, já desloca a ciência para uma revisão profunda. Ainda assim, não conseguiu realizar o que é conhecido como “o sonho de Einstein”. O desejo de integrar gravidade e mecânica quântica, micro e macro para explicar, em uma equação físico-matemática, a identidade do mundo. De tudo o que existe.
Deixar um comentário