“Graciliano Ramos é uma inspiração para todos nós que não nos conformamos com a ordem do capital, a todos nós que queremos a construção de uma sociedade em que os valores humanistas possam prevalecer. [Que queremos] uma literatura que reflita a ideia de que não existe arte fora da vida e uma política que se exerça com preocupações éticas e com compromisso com a transformação concreta da sociedade brasileira. Graciliano é uma referência para muito além desses pontos, mas acho que poucos escritores brasileiros do século 20, e para além do século 20, conseguiram construir uma obra intrinsicamente ligada aos valores da civilização, da liberdade, da justiça. Ele é uma inspiração que vai da política à cultura, do serviço público ao jornalismo. Nas várias atividades que exerceu, foi mais do que um exemplo. Foi uma inspiração permanente. Então, Graciliano vive”.

Palavras de Dênis de Moraes ao TUTAMÉIA, no momento em que se completam 70 anos da morte do autor de “Memórias do Cárcere” e “Vidas Secas”. Doutor em comunicação pela UFRJ e professor associado da Universidade Federal Fluminense, Moraes escreveu “O Velho Graça” e avalia, nessa conversa, a trajetória cheia de dificuldades de Graciliano e a essência de sua obra (acompanhe a íntegra no vídeo e se inscreva no TUTAMÉIA TV).

“A atualidade do Graciliano nos 70 anos da sua passagem e 131 anos depois do seu nascimento é de uma atualidade cortante. Essa atualidade percorre não apenas um dos pilares do legado de Graciliano Ramos, que estão no seu compromisso ético, político com o nosso país, com o nosso povo, com a sociedade brasileira e com as causas democráticas e populares. Mas também porque Graciliano foi um escritor, um intelectual que denunciou de maneira absolutamente vigorosa as mazelas, as desigualdades, as injustiças, as exclusões em nosso país. E essas mazelas, essas dificuldades, essas desigualdades e exclusões dramaticamente permanecem esperando uma redenção que parece não chegar nunca, infelizmente. Por isso mesmo, a voz e Graciliano os escritos de Graciliano, a contribuição crítica de Graciliano permanecem absolutamente atuais, nos convocando a enfrentar esses dilemas, essas exclusões, essas desigualdades, como uma longa luta, como, aliás, tem sido no Brasil, enfrentando elites e oligarquias perversas, egoístas, antinacionais e antissociais. Elites econômicas, políticas, corporativas, culturais e que desafiam, ainda agora, no nosso tempo, o caminho para um futuro mais igualitário e justo. Essa conexão do Graciliano do passado com o Graciliano do presente é indissociável e inquestionável”, afirma.

Na análise de Moraes, os grandes livros do Graciliano Ramos (1892-1953) trazem temáticas e abordagens que perfazem “um conjunto absolutamente incômodo e dilacerador, no sentido de que ele busca penetrar em vários livros, principalmente em “São Bernardo” e “Vidas Secas”, nas entranhas da condição humana do homem brasileiro, uma condição machucada, estremecida, instável, uma instabilidade que parece não ter fim”, diz.

“A forma como ele introduziu a temática da condição humana e a situação do homem brasileiro são configurações que se mantêm infensas à passagem do tempo. Porque ele não contextualizou necessariamente unicamente no nordeste brasileiro, uma região pobre e esquecida. Parecia que ele contextualizava lá. Quando, na verdade, lá ele transformava esses problemas no microcosmo da sociedade brasileira, com os seus desequilíbrios, aspirações, suas derrotas, seus êxitos, suas vitórias. Essa capacidade visionária que o Graciliano teve da dificuldade que o tem de se encontrar consigo mesmo. O país vai sempre se colocando encurralado, sitiado entre aquilo que ele pode ser, o que quer ser e o que na verdade ele é, por conta das contradições extremamente graves do país”.

Moraes lembra que desavisados consideravam Graciliano um pessimista, uma pessoa que não via saída para nada. Uma série de lendas foram criadas em torno do escritor e são desmontadas em “O Velho Graça” (Boitempo). “O que mantém Graciliano também vivo hoje em dia é que Graciliano sempre dialogou com o signo da esperança. Graciliano em vários momentos da sua vida e da sua obra tratou o devir como uma questão fundamental, essencial. Ele sempre acreditou no valor da luta, no valor do enfrentamento das desigualdades e injustiças. Não é absolutamente casual o fato de que Graciliano tenha, a partir de 18 de agosto de 1945, a convite do secretário-geral Luiz Carlos Prestes, ingressado no Partido Comunista do Brasil”, ressalta.

Ele segue:

“Até o seu último dia de vida, Graciliano acreditou firmemente no socialismo como uma ideia chave para a reversão dos problemas do Brasil e o longo processo de luta ser uma saída estratégica humana, humanizadora, capaz de agregar os excluídos, os deserdados, e ser a ponta de lança de construção de um outro tipo de sociedade. E esse outro tipo é cada vez mais necessário. Porque essa sociedade que está aí não serve. Esse país desigual que está aí não serve e não vai a lugar nenhum se não conseguir se libertar das amarras, das contradições profundas, das hesitações, do medo dos poderosos. Graciliano está pungentemente vivo. Ele continua dialogando com a nossa época e nos dizendo tudo aquilo que nós não podemos deixar de procurar, de imaginar, de lutar, de construir um outro tipo de sociedade, um outro tipo de Brasil”.