“Isto aqui virou um país de gente que não produz porra nenhuma e mama no consumo das famílias, na atividade empresarial, no Estado. Eles não têm nada contra ter várias mamas. Ainda por cima põem dinheiro lá fora. Não só não reinvestem no país como sequer pagam imposto porque vai para paraíso fiscal. Isso aqui é surrealista. Tem um bando de chupins que estão drenando a economia. É um sistema de agiotagem que é coberto pelo sistema jurídico. A grande corrupção não é de batedor de carteira, a grande corrupção gerou sua legalidade. O sistema criou uma legalidade da grande bandidagem generalizada”.
O diagnóstico é do economista Ladislau Dowbor em entrevista ao TUTAMÉIA. Professor da PUC-SP, ele foi consultor de várias agências das Nações Unidas, de governos e municípios. Em São Paulo, atuou na gestão de Luiza Erundina (1989-1992). Autor de mais de 40 livros, sua obra mais recente é “A Era do Capital Improdutivo” (Outras Palavras/Autonomia Literária 2017).
Ladislau também está nas telas. Sua análise sobre a globalização, o poder dos bancos e das corporações aparece em “Dedo na Ferida”, filme de Silvio Tendler que traz uma ácida crítica ao capitalismo financeirizado. O documentário ouve diversos especialistas e, acompanhando a rotina de um trabalhador precarizado, mostra como o modelo espalha pobreza e concentração de renda, ameaçando as próprias bases da democracia.
DILEMA É POLÍTICO, E LULA PODE RESGATAR O PROCESSO
Ao TUTAMÉIA, Ladislau foi didático, detalhista e profundo ao destrinchar o contexto maior da economia brasileira e mundial.
Para o economista, os rentistas capturam o poder, e é preciso encarar a questão política. Diz ele:
“É difícil é tirar os parasitas do poder. Parasita é que nem carrapato, são muitos”. Ele afirma que a situação se complica quando há desvio de atenção para “o tríplex, os pedalinhos e coisas do gênero”. E mais:
“O nosso dilema não é econômico, é político. É resgatar a soberania nacional. Não param de vender o país. E põe corrupção nisso. [Imagine] o que entra no bolso dos caras que conseguem entregar o Pré-Sal, terras, coisas do gênero. Estão vendendo tudo em nome de recuperar os equilíbrios. O grau de farsa, de mentira é vergonhoso”.
E segue:
“O processo central é resgatar o político. Não é à toa que o Lula está preso. Porque ele tem plena consciência [dessa situação] e tem apoio político para fazer [as mudanças]. Sem o Lula, não se resgata esse processo. Só com o Lula também não, mas o Lula é um gigante em termos de articulação de forças. Tem muita gente que no Brasil entende que o Lula fez não só um negócio bom para os pobres, mas equilibrou os interesses do andar de baixo da população com outros interesses. Tanto assim que funcionou, apesar da crise de 2008. Este país funcionou”.
CORPORAÇÕES NÃO PRECISAM MAIS DE DEMOCRACIA
Na conversa, Ladislau vai descontruindo a linguagem usada enfaticamente em boa parte da mídia, que tenta fazer da economia um bicho de sete cabeças. Comenta, por exemplo, a afirmação recorrente de que “os mercados estão nervosos”:
“Basicamente é meia dúzia de pessoas que estão nervosas. Não há mercado, são grandes grupos que desequilibram o processo”. E prescindem da democracia, no entender do professor:
“Quando existiam milhões de empresas no sistema capitalista –pequenas, médias, grandes, manufaturas etc –, eles precisavam da democracia. Porque precisavam de um Estado que equilibrasse a guerra entre eles. Hoje não precisam mais. Há 147 grupos que controlam 40% do sistema corporativo mundial. Existem 28 gigantes banqueiros que controlam as próprias empresas produtivas. Eles se articularam, principalmente após 2008. Não é o fim do capitalismo, mas o fim do capitalismo democrático. Eles não precisam mais de democracia”.
ORIGEM DO GOLPE: DILMA TIROU O PIRULITO DOS BANCOS E DOS RENTISTAS
Ladislau, 77, trata de momentos da história do país. Diz, por exemplo, que o período de 2003 a 2013 é considerado a década dourada da economia brasileira. Lembra que, em 2005, apenas 18% da renda das famílias era comprometida com dívidas; em 2012 vai para 46%. “Eles [os bancos] foram endividando as famílias e cobrando taxas de juros absolutamente vergonhosas em cima disso”.
Como no filme “Dedo na Ferida”, o economista demonstra com um exemplo o absurdo da política de juros no país:
“Eu, professor Ladislau, coloco o dinheiro no banco que me paga uma merreca, basicamente a inflação. Na época, a taxa de juros era de 14%; nos EUA era de 1% ao ano. O banco pega o meu dinheiro e aplica em títulos do governo, e o governo paga ao banco, sobre o meu dinheiro, 14%. De onde o governo tira esse dinheiro para dar ao banco? Dos impostos. Quem paga imposto? O professor Ladislau. De um bolso eu coloquei o meu dinheiro no banco que me paga uma merreca; de outro bolso eu dou 14% para o governo, para o governo dar aos bancos para o banco ter o prazer de ter o meu dinheiro”.
Esse modelo, criado pelo governo de Fernando Henrique Cardoso, em 1996, acaba travando a economia e drenando a capacidade de atuação do Estado. Por isso, ele afirma que Dilma Rousseff fez bem em baixar a taxa básica de juros (a Selic) de 12% para 7,25% e definir taxas menores nas operações com os bancos estatais. Segundo ele, começou a haver migração para as instituições públicas, gerando insatisfação em bancos privados e em famílias rentistas.
“Os bancos não gostaram da migração. [O movimento de queda nos juros] não prestou porque a grande mama dos bancos que é em cima das famílias. De repente, as famílias tiveram alternativas; as empresas também. Os bancos ficaram com muita raiva. Também a gente que tinha se acostumado a ganhar dinheiro sobre a dívida pública. Essa massa ficou possessa, passou a bater panela. Tiram o pirulito da boca deles. Isso gera a crise política de 2013 e, a parir disso, não em mais governo. Aí começou o golpe”.
Ele aponta os números do “surrealismo” da economia brasileira. O estoque da dívida das famílias, das pequenas e médias empresas é de R$ 3,1 trilhão de reais. Só de juros, os bancos tiram R$ 1 tri ao ano. Ou 16% do PIB. Por meio da taxa Selic, do Estado se tira R$ 400 bilhões ao ano, 7% do PIB. Na soma, 23% do PIB. Há em estoque US$ 520 bilhões em paraísos fiscais lá fora. Ou seja, R$ 1,7% trilhão, 30% do PIB. Tudo isso, segundo ele, “estrangula a economia. E o sistema tributário agrava a situação”.
POLÍTICA DE JURO É FRAUDE, ESTELIONADO, ASSALTO
Ladislau afirma que a economia funciona com quatro motores: exportações (10% do PIB; 90% é economia interna), consumo das famílias, atividade das empresas e atuação do Estado.
“A demanda das famílias é o principal motor. O principal motor se travou. Neste país com 130 milhões de adultos, há 63 milhões de adultos que estão tecnicamente negativados, com o nome sujo. Se junta as famílias, se tem mais da metade da população [no negativo]”.
O economista fala do endividamento numa era em que as transações são basicamente digitais. “Essas tarjas dos cartões são canudinhos que permitem explorar as famílias através de taxas, tarifas. Faço uma compra de R$ 100 numa papelaria. Pago com cartão de crédito. Da minha conta saiu R$ 100; na da papelaria entrou R$ 95. Cinco por cento de todas as dezenas de milhões de compras! Meu! O CPMF, que era 0,38%, fizeram um escândalo. Aqui toma 5% de tudo isso! Isso é o cartão de crédito. No de débito vai ser 2.5%. Você tem captação de um dinheiro que é hoje virtual, é um sinal magnético. Essa desmaterialização do dinheiro –os bancos trabalham só assim– permite um monte de falcatruas”.
Ladislau dá o exemplo de um fogão que custa a vista R$ 420 e, a prazo, R$ 840. Para o consumidor mostram a prestação: R$ 39,99 ao mês. Cabe no bolso. Por dois anos é preciso pagar. O fogão saiu a R$ 200 da fábrica; com imposto vai para R$ 320. Resume o economista:
“Querem mesmo é vender a prazo. O grosso da população, que tem renda baixa, paga R$ 840 por um fogão de R$ 200. Um sistema de intermediários, que não produz porra nenhuma. Essa gente enriquece de maneira fenomenal sobre juros. É um assalto. Fazer um assalto é arriscado, aqui é legal. Quebraram a base legal de controle do sistema financeiro”.
O professor da PUC fala da taxa cobrada de quem pede empréstimo num banco: 150% ao ano. Fala do juro ao mês: 3,5% –uma aberração inexistente em outros países. “Juro ao mês é uma fraude, é estelionato. A pessoa vai se enforcar, passa para o cheque especial. 320%. Vai para o rotativo do cartão: 400% rotativo do cartão. Pagam isso porque tem um cartel de bancos que maneja a quase a totalidade [do mercado de crédito]. Não há mercado”.
63 MILHÕES DE ADULTOS ENFORCADOS
Segue Ladislau: “O que se gerou foi um sistema em que esses 63 milhões de adultos estão enforcados no país. Ai não compram mais, reduz a demanda, coloca em crise o setor produtivo. Reduz a inflação, quebrando a economia. O pessoal não tem para quem vender. Não é assim que se controla a inflação, quebrando o sistema. Paralisa o segundo motor (consumo das famílias) e o terceiro motor, que são as empresas. Não as grandes, que pegam [crédito] lá fora. As pequenas e médias quebram. Por que o desemprego subiu de 4,8% para 13%? Porque as empresas não conseguem vender e jogam o preço lá embaixo, quebrando”.
“Em nome de salvar a economia, quebraram a economia”, resume Ladislau. Para ele, a discussão sobre o déficit do Estado é uma farsa. Juros altos, quebra das famílias e das empresas afeta o Estado, reduzindo sua capacidade de investir –o que é vital para qualquer país, enfatiza.
Ele lembra que o governo golpista fixou teto para gastos em educação e saúde, mas não para os juros. O modelo, segundo ele, “quebrou as famílias, as empresas e o Estado. Força o Estado a transferir grande parte do dinheiro que viraria saúde, educação etc para os juros, para os bancos. São R$ 400 bilhões ao ano. E se tem a economia que não funciona”.
Nesta entrevista, que pode ser acompanhada na íntegra no vídeo no alto da página, Ladislau mostra modelos que dão certo pelo mundo, ao valorizar iniciativas descentralizadas e com controle local. E trata de soluções:
“O cara que tem o poder na mão vai mamar o que puder. Por isso, tem que ter leis, contrapesos, regulação. A solução está na base: acesso à terra, à informação, aos financiamentos. E contar com a capacidade de gestão local. É preciso ter acesso ao uso produtivo dos nossos recursos. O dinheiro que está no banco é nosso recurso. É preciso assegurar a finanças locais. Isso é comum às economias que funcionam”.
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