Nós tivemos duas grandes surpresas no mundo nos últimos 30 anos. A primeira foi a queda do muro de Berlim e o colapso do socialismo na Europa. A segunda grande surpresa foi entre 2010 e 2019, com a ascensão da Direita no Norte bem como no hemisfério sul.”

A avaliação é do ativista filipino Walden Bello, histórico ativista do movimento antiglobalização e profundo estudioso do comportamento e da ascensão da extrema direita no mundo –sua tese de doutorado, por exemplo, foi sobre a contrarrevolução no Chile.


Professor da State University of New York e membro do parlamento filipino de 2009 a 2015, Bello foi agraciado em 2003 com o prêmio Right Livehood Award, espécie de Nobel alternativo, e apontado em 2008 como destaque do ano pela International Studies Association, em São Francisco.

Seu trabalho acadêmico e sua dedicação à produção intelectual –é autor ou coautor de 23 livros— não inibe seu ativismo: sua participação em manifestações nos Estados Unidos já lhe valeu várias prisões por desobediência civil.

Uma delas aconteceu depois que ele invadiu a sede do Banco Mundial, em Washington, para roubar documentos que comprovavam a colaboração entre o Banco Mundial, os Estados Unidos e a ditadura de Ferdinand Marcos, que então oprimia as Filipinas.

O episódio do início dos anos 1980 foi um dos assuntos tratados na entrevista que Bello, hoje com 73 anos, concedeu ao TUTAMÉIA. Para ele, sua atividade de então guarda semelhança com o trabalho de Julian Assange -que já estava preso pela Grã Bretanha na data de nossa conversa com Bello e foi nosso tema de abertura.

O coração da entrevista, porém, foram a ascensão da direita e as possibilidades de os democratas mudarem essa situação. Comentou o Brexit, o governo Trump e as semelhanças entre a política de Rodrigo Duterte, que atualmente governa as Filipinas, e Bolsonaro.

Bello também analisou as razões do comportamento das classes médias, que vem dando suporte popular para figuras como essas cheguem ao governo via eleições, ainda que sua atuação, depois, venha a ser contrária os interesses das próprias classes médias.

Walden Bello afirma: “Minha sensação é: precisamos absorver as lições do que criou a ascensão da Direita, o movimento progressista precisa se der conta que a Direita foi capaz de se apropriar a crítica da globalização. São lições que precisamos aprender para articular um programa que realmente avance o curso da democracia progressista e conquiste a maioria da população.”

O caminho não é fácil: “Precisamos resolver nossas questões dentro da esquerda, buscarmos a união apesar de nossas batalhas doutrinárias. Precisamos encontrar um modo de como se relacionar com a classe média, temos que descobrir o que podemos fazer para usar as contradições dentro dos governos para assim poder prevenir a frente monolítica do estado. Precisamos ser capazes de ter uma narrativa que permita que diferentes áreas da sociedade percebam que o futuro está na democracia progressista”.

O primeiro passo é parar de lamber as feridas e passar à ação, à reconstrução das forças, do pensamento e da unidade progressista.

“É hora de sair da depressão”, conclama Walden Bello, acrescentando: “Quanto mais tempo passamos deprimidos, mais tempo ficamos sem ação”.

Como a entrevista foi conduzida em inglês, publicamos a seguir uma tradução que abrange praticamente toda a nossa conversa. Para esse trabalho, contamos com a generosa participação de Simone Alexandrino, que assistia à transmissão e se prontificou a ajudar, e da Teacher Re, da YourEnglish, que já havia colaborado com TUTAMÉIA em outras oportunidades.

TUTAMÉIA – QUAL SUA AVALIAÇÃO DO CASO ASSANGE?

WALDEN BELLO – Eu acho que Julian Assange basicamente fez um grande favor ao mundo, expondo o tipo de coisa que está por trás das cenas nas decisões do governo dos EUA e de outros governos, assim como as ações de seus serviços de inteligência.

O trabalho do Wikileaks foi muito importante para tornar os governos e processos mais transparentes, e eu acho que o governo do Equador infelizmente cometeu um grande erro ao encerrar seu asilo dentro da embaixada.

O Equador poderia ter abrigado Assange lá por muito mais tempo, mas acho que houve uma tremenda pressão do governo britânico, bem como do governo dos EUA, para tirá-lo para que eles pudessem prendê-lo.

Isso um grande golpe para movimentos que exigem transparência. Eu acho que ele é basicamente um mártir aqui para a causa de maior transparência, bom governo e mais democracia.

Ele fez um grande favor ao mundo, assim como Edward Snowden fez um grande favor ao mundo.

Eu tenho muita simpatia por ele porque, quando eu era muito mais jovem, e estava estudando o que estava acontecendo nas Filipinas, eu tive que ir e roubar documentos no Banco Mundial para expor o que o Banco Mundial estava fazendo [NR: em apoio à ditadura de Ferdinand Marcos nas Filipinas]. Não tínhamos acesso a nenhuma análise ou notícias sobre o que estavam fazendo, a menos que conseguíssemos os documentos que estavam guardados no próprio banco.

Isso foi na década de 1980, não tínhamos a internet na época, tínhamos que ir para dentro do banco. Para entrar, me disfarcei como agente do Banco Mundial nos EUA. Cheguei lá parecendo voltar de algum trabalho importante, uma missão, a gravata torta. Quando eles pediram a identificação, agi como se estivesse meio atrapalhado, e eles disseram: “Ah, você está tão cansado, deve ter trabalhado muito, vá em frente”.

Uma vez lá dentro, acabei conseguindo acesso a três mil páginas de documentos secretos que comprovavam a relação entre o governo de Marcos, o Banco Mundial e o governo dos Estados Unidos.

Fiz um livro baseado naquela documentação, e isso se transformou em um best-seller clandestino nas Filipinas, há quem diga que contribuiu para acelerar o processo que redundou na queda da ditadura de Marcos. Se é verdade ou não, não tenho certeza, mas é o que as pessoas disseram. O livro saiu em 1982, e o governo de Marcos entrou em colapso, caiu em 1986. Então, se a gente não tivesse roubado os documentos, nós ainda não saberíamos, o mundo não teria sabido o que estava acontecendo entre os EUA o Banco Mundial e Marcos.

Eu acho que as pessoas têm o direito de saber. Se o governo tenta manter as coisas longe delas, é legítimo e moralmente correto que as pessoas sejam denunciadoras, conseguindo documentos, mesmo roubando documentos, porque o bem maior é que as pessoas estejam conscientes para que possam democraticamente exercer suas escolhas.

O problema é que, infelizmente, corporações e governos gostam de estar nas sombras, e não apresentar às pessoas toda a gama de fatos para que eles possam fazer escolhas informadas sobre o que fazer. Você precisa sabe a respeito das principais decisões que você sabe que estão ocorrendo. Então eu diria que Julian Assange e Edward Snowden são realmente heróis de nossos tempos em termos do interesse da informação pública, do direito das pessoas de saber.

TUTAMÉIA – O SENHOR SEMPRE FOI UM GRANDE CRÍTICO DA GLOBALIZAÇÃO. O QUE ELA TEM DE TÃO RUIM ASSIM?

WALDEN BELLO – Nos anos 90, houve teve a ascensão da globalização. Empresas assumiram a liderança no processo de derruba das barreiras entre os países, para que o fluxo do capital entre os países ocorresse mais facilmente, para que houvesse mais lucros para as empresas e corporações, e menos proteção na forma de barreiras comerciais, barreiras de investimento e de fluxos de capital entre países.

Tudo isso, essas proteções, era visto como instituições antigas, que precisavam ser eliminadas, e a economia global deveria ser mais integrada.

Mais integrada, é claro, sob o capitalismo global.

Quando nos opúnhamos a isso, em 1990, na oposição ao ajuste estrutural do mundo, o banco, o FMI, a emergência da OMC, as pessoas disseram que nós éramos terraplanistas – no sentido de crentes em coisas velhas, atrasadas, superadas.

Eles afirmavam que a globalização é o caminho do futuro. E diziam que aqueles que se opõem à globalização e defendem as economias nacionais, que têm o espaço para as pessoas decidirem por si mesmas, pertencem ao passado.

TUTAMÉIA – A DEMOCRACIA VAI SOFRER COM O AVANÇO DO NEOLIBERALISMO?

WALDEN BELLO – Sim, mas veja que, na Europa, os defensores do Brexit e mesmo Marine Le Pen, na França, vem se apresentando, pintaram a si mesmos como defensores da democracia. Como que fazem isso? Atacando a União Europeia, dizendo que o que eles fazem não é democrático, o que eles fazem é uma ditadura eurocentrada.

Mas seu objetivo geral é usar a democracia, usar o sentimento antiglobalização para criar uma sociedade exclusivista, baseada na cultura, no racismo e no classismo. Essa é uma das formas que a ultradireita tem usado para se aproveitar, se apropriar de algumas das preocupações tradicionalmente da esquerda, agora reformuladas de uma maneira muito tóxica, que é, na verdade, antipovo.

A direita não tem solução.  A única solução da direita é mais ódio, mais divisão entre os países, mais desigualdade.

Nós, a esquerda, os progressistas, temos de encontrar uma maneira de nos contrapormos a essa fórmula baseada no ódio. Mas não vai ser fácil porque, em muitos países, seja a Índia, seja as Filipinas ou a Tailândia e em muitos outros países, muita gente da classe média aderiu a essa ideologia de direita.

Por exemplo, nas Filipinas, há uma espécie de consenso nesses grupos de que o mal vem dos usuários de drogas, oriundos de comunidades pobres. O governo os retrata como o principal inimigo da sociedade, e a classe média vem concordando, aceitando isso, vendo essas pessoas como uma ameaça.

Basicamente, a elite, o governo, as classes médias nas Filipinas acreditam que, se deixarem os pobres participar da democracia, serão derrotados, pois eles, os pobres, são a maioria. Então procuram encontrar formas de controlar os pobres de modo que eles não desestabilizem a “democracia” e criem uma sociedade que prejudique os interesses das elites.

Na Índia, acontece coisa semelhante, e eu acredito que vocês tenham o mesmo problema aqui no Brasil, onde a classe média, incitada pela ultradireita, pintou o período do governo do PT como o do avanço das massas, que passam a ter empregos que seriam da classe média, invadem os espaços da classe média, como os shoppings, entopem os aeroportos…

Há uma dinâmica de classe aqui que precisamos analisar para entender essa tendência pró-direita. De um lado, há fórmulas políticas [de manipulação] que estão sendo usadas, de outro lado há a classe média, cujos medos vêm sendo estimulados, e acima de tudo, claro, existe a elite corporativa internacional, os capitalistas, que consideram que não se deveria permitir que partidos de esquerda e pessoas de esquerda chegassem ao poder porque poderão restringir a capacidade dos capitalistas de obter cada vez mais lucros.

Eles precisam de gente para dar apoio ao neoliberalismo. Aqui, nos países em desenvolvimento, se essas pessoas forem evangélicas ou fascistas ou o que seja, é muito melhor do que ter a esquerda no poder, pois não vão atacar seus privilégios. Eles sempre defendem que deve haver “menos governo”. Esse tipo de coalisão que está sendo construída, em que a elite se soma à ultradireita neopopulista, é muito perigoso.

TUTAMÉIA – POR QUE É PERIGOSO?

WALDEN BELLO – Eles são perigosos porque promovem uma cultura de ódio. Eles promovem medidas mais autoritárias. Como a a democracia é uma ferramenta que os pobres podem usar para promover seus interesses, então essa gente se torna autoritária, tomando medidas que, gradualmente, vão erodir as fundações da democracia.

Ainda que muitos desses governantes autoritários, como Duterte nas Filipinas e Bolsonaro no Brasil, tenham chegado ao governo por meio de eleições, eles também são os primeiros a desmontar as proteções democráticas, as práticas democráticas, criando novos sistemas que serão muito menos democráticos.

Na Tailândia, por exemplo, depois do golpe de 2014, os militares reestruturaram completamente o sistema político. Agora, há um senado de 250 pessoas NOMEADO pelos militares. E há uma assembleia nacional, eleita pelo movo. Mas qualquer coisa que saia da assembleia pode ser vetada pelo senado, que não é eleito. O governo diz que isso é importante para salvaguardar o povo, quando na verdade estão mesmo é protegendo os interesses da elite.

E acho que vamos ver cada vez mais medidas desse tipo, em que a ultradireita não exerce uma ditadura nos moldes tradicionais, mas faz reformas para tornar o sistema de governo menos democrático e mais sensível aos interesses das elites e das classes médias.

TUTAMÉIA – QUAIS AS DIFERENÇAS ENTRE ESSES PROCESSOS E O DAS DITADURAS DA AMÉRICA LATINA INICIADAS NOS ANOS 1960 E 1970?

WALDEN BELLO – Naquela época, o que houve foram golpes de estado, ditaduras militares. Agora há regimes de direita que chegam ao poder pelo voto, com apoio das classes médicas, e uma vez no poder, tornam o sistema mais autoritário. Essas características são similares ao que aconteceu na Alemanha Nazista: os nazistas chegaram ao poder vencendo as eleições de 1932, utilizando meios democráticos para formar o governo. Uma vez formado o governo, eles começaram o terror.

Há essas similaridades. Nas Filipinas, assim que assumiu o governo, Duterte começou a matar gente como parte de sua companha contra o crime. Ele disse que era todos drogados e que o maior problema da sociedade era o uso de drogas. Agora, depois de três anos, ele já matou cerca de 20 mil pessoas, e ele é popular. Ele conseguiu convencer o povo de que o grande inimigo são os usuários de drogas, que eles não são seres humanos, portanto ninguém precisa se preocupar se forem todos mortos. Afinal, é o povo das Filipinas contra os cartéis, os traficantes e os usuários de drogas.

Portanto, como se vê, a democracia pode ser usada como escada para a criação de governos autoritários.

TUTAMEIA – O GOVERNO DUTERTE É ELOGIADO POR BOLSONARO.

WALDEN BELLO – Sim, posso imaginar que isso aconteça porque os dois são do mesmo tipo; em muitos aspectos, são do mesmo tecido. Eles preferem formas autoritárias de governo. Para Bolsonaro, a democracia [é um mal porque] permite que partidos como o PT cheguem ao poder. E ele já deixou claro para os brasileiros que ele prefere um sistema de governo mais autoritário, parecido com o que foi instalado pelo Golpe de 1964.

Nós não devemos subestimar a capacidade dessas pessoas de criar uma base popular e de usar esse apoio para implementar o seu programa, que pode isolar parte da sociedade, prejudicar grupos e mesmo provocar massacres, como ocorreu na Índia em 2002.

A questão aqui que nós devemos perceber é que o fascismo pode ser popular. O que nós precisamos aprender do que ocorreu nos anos 1930 e 1940 é que o fascismo, quando no poder, é capaz de criar uma base de massa que possibilite que ele sobreviva por muito tempo, como nas ditaduras de Salazar, Franco e mesmo na Alemanha nazista –Hitler tinha apoio popular até o último momento!

Temos de entender que o principal fator que fez com que Hitler mantivesse o apoio popular… Havia, sim, coerção, havia sim, violência, mas o consenso que ele conseguiu criar em grande parte da sociedade alemã, de que ele estava levando, liderando a Alemanha no rumo de uma nova era, em que eles iriam ter e aproveitar sua superioridade racial, eu acho que foi o aspecto central que o manteve no poder por tanto tempo.

Em muitos casos, a classe média é a base de massa do fascismo ou de regimes extremistas. São questões que nós devemos estudar. Precisamos ouvir a história e voltar a examinar muitas das coisas que ocorreram no século 20, porque, a não ser que consigamos absorver as lições do que ocorreu na Alemanha e em outros países, mesmo aqui na América Latina (nos anos 1970), nós podemos vir a repetir os mesmos erros.

Falo da América Latina porque fiz meu doutorado sobre a contrarrevolução no Chile, e lá a classe média estava apoiando o golpe. Era gente que acreditava que a Unidade Popular era coisa do diabo. Apesar do fato de eles terem se beneficiado das melhores condições de vida no primeiro ano do governo da UP, a classe média se voltou contra Allende. Foi a elite e a classe média que criaram as condições para que o golpe ocorresse.

Enfim, nós precisamos ser muito cuidadosos ao analisar a história, sob o risco de esquecermos elementos que podem ser centrais.

O que aconteceu no Chile, com a implantação do neoliberalismo, inclusive com a participação de Paulo Guedes, chicago boy hoje no governo Bolsonaro, está muito conectado ao que acontece aqui no Brasil. A reforma da previdência, por exemplo, está entre as medidas clássicas dos neoliberais.

TUTAMÉIA – E POR QUE A CLASSE MÉDIA AGE DESSA FORMA?

WALDEN BELLO – Acho que há um sentimento de que quando os mais pobres começam a ter mais  poder de compra, eles passam a agir de forma semelhante à classe média, o que por sua vez faz com que a classe média se sinta ameaçada, sentindo que os pobres estão subindo ás custas da classe média.

Por isso não me surpreendi nada quando me contaram sobre os incidentes nos shoppings aqui no Brasil [a reação aos rolezinhos].

Quando a classe média passa a ter esse sentimento, isso faz com que ela se aproxime, busque ajuda, em geral, da direita. E claro que a direita é muito esperta e acolhe a classe média, mesmo permitindo que a classe média seja o rosto da contrarrevolução. Mas, no final, a classe média é que sofre com as medidas neoliberais adotadas na economia…

No Chile, a classe média enfim acordou e percebeu que as medidas neoliberais do Pinochet destruíram seu status, e a classe média passou a apoiar a Consertación, que acabou por tirar Pinochet no poder.

São essas questões que devemos observar e analisar na história de nossos países, na América Latina. Isso, claro, não é estranho ao Brasil, quando se viu a classe média mobilizada contra o PT nas últimas eleições. E isso aconteceu também em 1964, contra João Goulart.

Em 1964, vocês tiveram aqui as mulheres colocadas na linha da frente das manifestações contra Goulart. Depois, no Chile, em 1973, aconteceu a mesma coisa. Precisamos aprender com tudo isso.

TUTAMÉIA – HÁ UMA DIFERENÇA ENTRE A DIREITA NA AMÉRICA LATINA E NO HEMISFÉRIO NORTE?

WALDEN – Desde já há uma diferença quando se trata da aceitação do neoliberalismo porque Bolsonaro e Duterte têm programas neoliberais, eles não infringiram os programas neoliberais. Duterte, por exemplo, o programa dele é neoliberal, ele não questiona isso. Apesar de ser um programa falho, ele continua e diz que há que continuar porque os consultores econômicos, todos tecnocratas, sentem que isso está correto. Ele diz que não entende de economia, então deixa que eles façam.

Mas, no norte, por causa das políticas oportunistas deles a fim de persuadir a classe trabalhadora, muitos da direta se tornaram antiglobalização. Em muitos casos, anti-neoliberais e basicamente eles disseram “sim” à previdência, mas, como eu disse anteriormente, a previdência valendo somente para a parcela dominante da população. Somente para brancos, cristãos, para aqueles que estão aqui há muito tempo.

E esse é o tipo de coisa que se vê nos EUA. Bom, nos EUA, essa ideia de que o que temos na sociedade deve ser usufruído por verdadeiros norte-americanos. O que isso significa, na verdade, é que são o norte-americanos são anglo-saxônicos, protestantes e católicos também, mas certamente não são os latinos nem os negros. Talvez asiáticos, desde que eles se comportem bem. É isso que quer dizer, esse é o verdadeiro significado de “verdadeiros norte-americanos”.

Claro que, na política nos EUA, todas essas pessoas têm essa linguagem codificada, então quando eles dizem “Americanos autênticos” eles na verdade estão se referindo a essa população branca dominante. E depois temos os “falsos Americanos”. Então eles precisam usar essa linguagem codificada para não parecer muito antidemocratas e racistas, mas na verdade eles são racistas.

TUTAMÉIA – COMO ENFRENTAR ISSO?

WALDEN BELLO – Eu acho que temos muito trabalho pela frente em termos de entendimento das dinâmicas dos extremistas de direita.

Precisamos resolver nossas questões dentro da esquerda, buscarmos a união apesar de nossas batalhas doutrinárias. Precisamos encontrar um modo de como se relacionar com a classe média, temos que descobrir o que podemos fazer para usar as contradições dentro de governos para assim poder prevenir a frente monolítica do estado.

Precisamos ser capazes de ter uma narrativa que permita que diferentes áreas da sociedade percebam que o futuro está na democracia progressista. Precisamos fazer com que as pessoas percebam que não queremos a volta da democracia das elites, que foi, sim, construída de forma liberal, mas muito elitista. Isso simplesmente gerou uma estrutura de acumulação de riquezas pelo 1% (da população) e deixou a maioria da população mais pobre.

Esse tipo de alternativa de democracia social progressista é algo no qual devemos trabalhar, porque, como nas Filipinas, por exemplo, se o que dissermos é “oh, vamos voltar à democracia dos últimos 30 anos, onde nada acontecia além de mais pobreza…”, isso não funcionará. O que nos dirão é que isso não funcionou, era hipócrita; se fala de direitos humanos, mas não se pode “comer” direitos humanos. Essa é a resposta que teremos, por isso precisamos ter uma narrativa vitoriosa que traga a igualdade bem no centro do projeto democrático.

Podemos fazer isso? Sim, estou confiante que podemos, mas nada é garantido se não for feito corretamente.

Talvez estejamos nos encaminhado para o fracasso, e a história não é gentil com aqueles que cometem erros, porque você pode acabar com uma ditadura de 40 anos num regime fascista de Direita como o de Franco na Espanha, por exemplo.

Bom, nós não queremos esse tipo de coisa. Esse é o tipo de resultado que pode ser garantido: realmente depende de como nós, progressistas, consigamos ir além das diferenças, criar uma nova narrativa e ter políticas de frente popular que conquiste as pessoas a virem para nosso lado, ao mesmo tempo em que neutralizemos as agências do estado que tem tendências repressivas e fascistas. Não é uma tarefa fácil, mas estou confiante? Sim, estou confiante que podemos fazer isso.

TUTAMÉIA – NO PASSADO, SITUAÇÃO QUE LEMBRA A ATUAL DESCAMBOU NUMA GUERRA GLOBAL. O SENHOR ACHA QUE ISSO PODE ACONTECER?

WALDEN BELLO – Bem, qualquer coisa é possível nesse momento. Eu acho que esse conflito entre China e Estados Unidos pode terminar num confronto maior, e a situação pode ganhar vida própria. Uma vez que se tem uma competição de vertente econômica, isso pode levar à uma disputa militar, o que pode fugir ao controle, e isso cria alianças de um grupo contra o outro, portanto, certamente é uma possibilidade. Mas é importante levar em conta o outro lado da equação, que fascistas chegaram ao poder na Europa e foi somente com uma guerra global que eles foram removidos. Sem a Segunda Guerra Mundial, os fascistas teriam se difundido na Europa e no Pacífico.

Então, o que eu quero dizer é que, em alguns casos, não se pode afastar os fascistas a menos que haja um conflito.

Bom, o perigo está em ambos lados, em outras palavras, as lutas contra o extremismo podem levar a uma Guerra global e sem isso eles não poderiam ser retirados do poder. Estou mencionando todas as possibilidades, mas o mais importante, e eu gostaria de reiterar, é assegurar-se de que, pra começar, a extrema direita não chegue ao poder. Porque uma vez que eles tenham um ponto de apoio no poder, eles irão destruir a democracia. Claro que isso deve ser feito através de meios democráticos, precisamos enfrentá-los democraticamente.

TUTAMÉIA – EM RELAÇÃO AO BRASIL, QUAL SUA AVALIAÇÃO DO GOVERNO BOLSONARO, QUE ACABA DE COMPLETAR CEM DIAS?

WALDEN BELLO – Não sou um especialista em Brasil, mas certamente as pessoas sentem que falta a Bolsonaro habilidades que mesmo o pessoal de direita precisa ter pra conseguir implementar seus programas. Do modo que eu vejo, ele criou muitas tensões com Guedes na sua insistência da reforma da previdência, e gerou tensões com o Senado e a Câmara dos Deputados. Então, basicamente, eu acho que, se ele não adquirir essas habilidades logo, a coligação pode desmoronar.

Então o que aconteceria? Quem ocuparia o vácuo? Os partidos de Centro-Direita se recuperariam com isso ou haveria uma recuperação do PT e então não estaria mais isolado e leva à reconfiguração das forças democráticas? Certamente essa é uma possibilidade.

Mas também existe a possibilidade de que muitos dos quais hoje formam sua coligação venham a dizer “ok, temos que reconfigurar as relações entre nós”. Talvez torná-lo mais como uma figura decorativa, enquanto outras pessoas atuam mais racionalmente, talvez procurando implementar o programa da direita de forma mais cuidadosa e lenta ao invés de forçá-la imediatamente.

Então, podem ocorrer esses tipos de ajustes pragmáticos, mas não acho que devêssemos contar com a essa articulação como um mecanismo por parte da Direita, mas sim confiar em ter um movimento progressista novamente, juntos e lutando contra a depressão, porque ao que parece, até agora, há muita depressão entre os progressistas.

Qual seria a melhor campanha? Seria a campanha Lula Livre a melhor opção? Quem são as novas figuras políticas? Haverá uma reforma da esquerda importante? Essas são as perguntas com as quais devemos trabalhar nesse momento.

De qualquer forma, o certo neste momento é que é hora de sair da depressão, porque quanto mais tempo passamos deprimidos, mais tempo ficamos sem ação.

É como o ser humano, quanto mais você deixar a depressão tomar conta, mais tempo ela fica com você.

Uma das coisas com as quais nós ficamos chocados por um tempo nas Filipinas, sob Duterte, é “como foi que isso aconteceu?” E foi uma surpresa seguida da outra. Mas eu sinto que, depois de três anos, estamos hoje em um estado psicologicamente melhor do que estávamos quando  Duterte inicialmente chegou ao poder, mas ainda estamos longe de ser uma grande força unida que pode confrontá-lo.

Nossas eleições estão chegando em 11 de maio e o maior perigo é que Duterte, com tanta popularidade, saia vitorioso. As pessoas concorrendo ao Senado que são da coligação dele basicamente disseram apenas uma coisa: eleja-nos porque nós terminaremos a revolução de Duterte. E não têm programas, não têm nada, muitos deles são corruptos, até mesmo a filha do presidente disse: “Não é importante ser honesto para ser eleito”. Mas ela fala: “Todos eles são a favor do meu pai. Vote neles porque eles continuarão as mudanças que meu pai trouxe para o país.” E o grande perigo é muitas pessoas ou a maioria de pessoas que apoiam Duterte podem vir a vencer essas eleições intermediárias. E pode levar algum tempo antes que possamos preparar uma coligação vencedora.

Nas Filipinas ainda estamos muito na defensiva. Nós já encaramos a depressão; agora estamos em um estado de pânico (risos). Mas sociedade e as forças políticas são “maníaco-depressivas” e agora estamos no estado de “mania”.

TUTAMÉIA – E TRUMP? AS ELEIÇÕES NOS EUA NÃO SÃO IMPORTANTES PARA O QUADRO GERAL?

WALDEN BELLO – Definitivamente. Como nós falamos antes, as forças progressistas nos Estados Unidos se tornaram muito mais revigoradas por Trump. Hoje se veem tantas pessoas do partido Democrata querendo concorrer contra Trump porque eles sentem que eles têm a chance de derrubá-lo, porque ele é tão impopular. Então eu penso que a grande questão nos EUA nesse momento é: “Você quer uma figura mais radical que promete mudanças reais para ser o que concorre contra o Trump ou você quer uma representação mais tradicional, que pode ser atrativa para a maioria da população branca e de Centro?”

Não como uma ameaça, mas parece que hoje a estratégia dos republicanos é pintar o partido Democrata como se estivesse sob o controle dos membros do partido Democrata no congresso que são jovens e mais radicais, como Alexandria Ocasio-Cortez. E o filho do Trump, há três semanas ele estava incitando palavras de ordem, que eram até vulgares, fazendo a multidão republicana gritar “AOC sucks! AOC sucks!” [AOC é uma merda!, em tradução livre], e isso não é algo que se faça em uma manifestação em massa.

Na mesma linha, uma semana depois, Trump disse: “Estou concorrendo contra pessoas como Alexandria Ocasio-Cortez;  estes são os radicais, ela é uma garçonete de 29 anos de idade e os partidos de Centro e os democratas são controlados por essa mulher, estão amedrontados por ela e ela tem esse novo acordo Green New Deal [NR.: referindo-se a uma versão ecologicamente correta, ou o que seja, dos programas implementedos nos EUA 1933 e 1937, sob o governo do presidente Franklin Delano Roosevelt, com o objetivo de recuperar e reformar a economia norte-americana, e assistir os prejudicados pela Grande Depressão] que vai fazer vocês todos ficarem pobres.”

Trump está tentando usar suas táticas de assustar pintando essa jovem democrata progressista de radical, dizendo que  ela “é a essência do partido Democrata e irá impor um programa que fará a classe média Americana pobre, porque eles cobram taxas porque eles irão implementar esse novo acordo e esse tipo de coisa”.

Então essas são as questões que estão emergindo agora. Falta um ano e meio para as eleições nos EUA, então por um lado, nós revigoramos o partido democrático, mas por outro lado, quem vencerá a definição dessa situação? Será Trump? Ou serão os democratas? E quem entre os democratas irá emergir como aquele que confrontará Trump, que possivelmente terá maiores chances de vencer?

Então tudo isso está ainda no ar nesse momento, muito dependendo do que acontecerá nos Estados Unidos e claro, outras partes do Norte.

Uma grande questão na Alemanha é “serão eles capazes de parar a dinâmica do partido ultradireitista que agora controlam 90 dos 600 lugares no parlamento?

 O qual é um grande salto… E a Marine Le Pan vai conseguir tornar-se presidente em 2022 ou 2023?. Quando eu vi o Macron pela primeira vez, e suas políticas, eu pensei que ele pudesse ser apenas um trampolim para Le Pen eventualmente vencer. Claro que não sabemos o que acontecerá com a Grã-Bretanha, talvez o Brexit de fato a quebrará. Tem muita coisa no ar. Nesse momento, se falarmos com qualquer pessoa da Inglaterra, eles não sabem o que vai acontecer.

TUTAMÉIA – OBRIGADO POR SUA PARTICIPAÇÃO NO PROGRAMA DE HOJE. ANTES DE ENCERRARMOS, GOSTARÍAMOS DE OUVIR SUA MENSAGEM PARA O PÚBLICO QUE NOS ACOMPANHA.

WALDEN BELLO – Nós tivemos duas grandes surpresas nos últimos 30 anos. A primeira foi a queda do muro de Berlim e o colapso do socialismo na Europa. A segunda grande surpresa foi entre 2010 e 2019, com a ascensão da Direita no Norte bem como no hemisfério sul.

Minha sensação é: desde que possamos absorver as lições do que criou a ascensão da Direita, se o movimento progressista se der conta que a Direita foi capaz de apropriar a crítica da globalização, porque parte do problema foi que a era a esquerda tradicional, os socialdemocratas, se identificaram com a globalização e com a União Europeia.

Essas são lições que precisamos aprender para articular um programa que realmente avance o curso da democracia progressista e conquiste a maioria da população.

Acredito que uma das coisas que realmente precisamos fazer e que é muito importante pra nós sermos capazes de ter uma nova narrativa sobre democracia; uma na qual colocamos igualdade no centro e que não seja vista como se nós estivéssemos lutando apenas por antigas liberdades democráticas, que não estamos apenas lutando por eleições nem por liberdades tradicionais que estão associadas à democracia. Mas sim que estamos lutando por uma democracia que realmente alcance o interesse do povo, dos pobres, e que termine com essa desigualdade global escandalosa, que faça verdade um ataque enorme à pobreza global, que permita a diversidade e que anime as pessoas e não as deixem pra baixo.

Eu acho que uma linguagem, um novo discurso democrático é muito importante. Deve ser uma narrativa que possa trazer esperança novamente, e esperança àqueles que estão oprimidos. As pessoas estão num alto grau de confusão em relação aonde isso está indo. Precisamos dar esperança também àqueles que se tornaram céticos e cínicos, e àqueles que basicamente dizem “Oh meu Deus, fascismo e autoridade é o caminho para o futuro” e se designaram a isso. Então eu vejo que é um grande desfio e precisamos trabalhar nisso.

Não há garantias para o sucesso, a única garantia é que nada é ganho sem luta.