“No 25 de Abril eu era uma criança muito pequena, vivia em Viena com meus pais. Mas eu me lembro muito bem desse dia: meus pais eram muito jovens e ficaram pulando, literalmente, de alegria na nossa casa. E me dei conta que uma coisa muito importante tinha acontecido.”

É o que nos conta a portuguesa MARIA DE MEDEIROS, atriz de “Pulp Fiction” e realizadora de “Capitães de Abril”, talvez o filme que, apesar de ficcional, melhor retrate a insurreição portuguesa contra a ditadura naquela que passou a histórica com o nome de Revolução dos Cravos, por causa das homenagens feitas pela população aos soldados que chegavam às cidades como libertadores.

De sua quarentena em Paris, onde está instalada, a atriz, cineasta e cada vez mais cantora falou com TUTAMÉIA sobre essa conquista do povo português, sobre seu filme, sobre sua vida em tempos de pandemia (veja a íntegra no vídeo no alto desta página e se inscreva no TUTAMÉIA TV).

A conversa transitou sempre entre passado e presente: à certa altura, interrompe a entrevista para tentar captar o som das palmas dos moradores de Paris, que diariamente têm ido às janelas, às oito da noite, para homenagear a ação dos médicos, enfermeiros e trabalhadores da saúde na sua batalha contra o coronavírus.

Mas voltemos ao passado, que está presente, no dizer de Maria de Medeiros: “Quanto mais o tempo passa, e eu vejo o que está acontecendo no mundo, mais o 25 de Abril me enche de orgulho. A Revolução dos Cravos foi realmente um gesto de uma humanidade, de uma justiça, de uma generosidade extraordinárias. Há poucos exemplos como esse, de um país que sai de uma longuíssima ditadura de direita férrea, dura, por um golpe de estado feito por militares, que não ficam no poder, que é entregue imediatamente à sociedade civil e instauram uma democracia. É um gesto único, praticamente, na história universal”.

Ela segue comentando sobre o impacto da revolução na vida de sua família:

“Foi algo que mudou a vida dos portugueses, uma revolução política, geopolítica, econômica, uma revolução social também. A vida das pessoas mudou, um número enorme de casais se separaram –foi aliás o caso dos meus pais. Isso mudou a nossa vida. As duas filhas fomos viver em Lisboa com nossa mãe, que era jornalista de política naquela época. Graças a ela, eu acabei cruzando com todos aqueles protagonistas, jovens militares do movimento dos capitães.”

A vida era difícil e empolgante: “Eu me lembro de que, no nosso primeiro ano, como muitas famílias que voltavam a Portugal, a gente não tinha casa em Lisboa. Então os hotéis estavam completamente tomados. A gente viva em um hotel, um pequeno hotel, muito carismático, que é do lado do Parlamento. A gente, as crianças, ficávamos no pátio, brincado, e a gente ouvia os deputados no Parlamento”.

Tudo isso influenciou a trajetória da realizadora de “Capitães de Abril”, em que também atua: “Eu faço parte de uma geração de portugueses que caíram na poção mágica da revolução, durante a infância. Éramos extremamente politizados. Nas nossas brincadeiras, os xingamentos eram: “Você é um capitalista!” ou “Seu latifundiário!”. Com o passar dos anos, eu me dei conta de que essa bagagem que eu tinha adquirido na minha infância, eu tinha de prestar um tributo a isso. Eu tinha tido uma oportunidade extraordinária, de viver na infância esse período revolucionário em Portugal, a construção de uma democracia, uma democracia muito sólida. Foi algo extraordinário para mim ter vivenciado isso. Então tornou-se uma meta de vida, um objetivo de vida, fazer um filme (no destaque, cena de “Capitães de Abril”)”.

CONTATO COM O BRASIL

O Brasil vivia então um dos períodos mais violentos da ditadura militar, e a oposição recebeu isso como o grito de esperança, no dizer de Maria de Medeiros: “A revolução situou Portugal no mundo. Os olhos de todos os antifascistas se viraram para Portugal, e aconteceu na época um autêntico turismo político. Gente do mundo inteiro que foi para Portugal para viver essa atmosfera revolucionária. O período revolucionário foi um período de grande aproximação entre Portugal e o Brasil, porque obviamente a revolução significou para os brasileiros uma lufada de ar, de oxigênio, de ver que pode haver luz no fim do túnel, que as coisas acabam por mudar”.

Começaram a chegar a Portugal as obras de artistas brasileiros –Maria de Medeiros lembra a presença artística esfuziante de Glauber Rocha. Mas foi a música que provocou maior impacto na menina que ela era.

Filha do pianista, maestro e compositor Antônio Vitorino D`Almeida, vivia até então imersa nas canções eruditas, ouvindo árias de óperas e concertos dos grandes mestres. “Eu não conhecia os Beatles nem os Rollings Stones. Minha música preferida era o balê “Petrushka”, eu gostava de Mahler, de Prokofiev. A revolução para mim foi também essa oportunidade de descobrir outros tipos de música. Me apaixonei de imediato pelo jazz e me apaixonei pela música brasileira. A partir daí, fui criando uma curiosidade enorme pelo Brasil”.

Aqui esteve várias vezes, realizou trabalhos com músicos brasileiros, fez filmes sobre a luta contra a ditadura –destaque para “Repare Bem”, documentário sobre a trajetória de Eduardo Leite, o “Bacuri”. Nos dias de hoje, ela segue acompanhando as lutas dos brasileiros pela democracia: fez, por exemplo, documentário sobre manifestações em Paris em homenagem a Marielle Franco (“Marielle Presente!).

Sobre o momento brasileiro, ela fala: “Puxa, pobres brasileiros, a cada dia uma coisa impensável acontecendo. Há um lado em mim que está muito zangado, porque o impeachment d Dilma foi uma insânia ao nível da história universal. Tenho pena que não exista hoje um Shakespeare para escrever a história da Dilma, que gravasse a dimensão da infâmia. Ali se perdeu a sensatez, se perdeu o Estado de direito, se perdeu o respeito às leis. E muita gente compactuou com isso. Muita gente achou que, talvez, pudesse sair algo de bom disso. Como é que poderia sair algo de bom disso? Isso é uma coisa que me choca tremendamente. O Brasil está sendo vítima de coisas horríveis, mas alguma responsabilidade tem. A democracia exige responsabilidade, não é um sistema feito para pessoas irresponsáveis ou alienadas. É o melhor que temos, mas é um sistema exigente. Há uma dó na alma quando a democracia é sacrificada pelo próprio voto”.

Nestes tempos de pandemia e ataques à democracia em vários cantos do planeta, ele vem produzindo uma espécie de diário musical, oferecendo em suas redes sociais uma música quase que a cada dia. Já homenageou amigos italianos, amigos brasileiros… E diz: “É um momento para refletir muito, embora seja difícil. Um ato de resistência é manter a criação”.

GRÂNDOLA, VILA MORENA

A Revolução dos Cravos teve um espírito muito musical (no vídeo da entrevista, há presentes musicais especiais, do Brasil e da França. Confira lá).

Conforme nos diz a Wikipédia, “Às 22h55 do dia 24 de abril de 1974 é transmitida a canção “E Depois do Adeus”, de Paulo de Carvalho, pelos Emissores Associados de Lisboa. É um dos sinais previamente combinados pelos golpistas, que desencadeia a tomada de posições da primeira fase do golpe de estado. O segundo sinal é dado à 0h20 de 25 de abril, quando a canção “Grândola, Vila Morena”, de Zeca Afonso, é transmitida pelo programa Limite, que confirma o golpe e marca o início das operações”.

Foi “Grândola”, censurada e proibida pela ditadura, que passou à história como A canção revolucionária portuguesa.

E é com ela que TUTAMÉIA fez, no programa de hoje, uma homenagem especial à Revolução dos Cravos, trazendo a voz da soprano JOANA MATERA. Ela interpreta a canção revolucionária a capella, numa gravação feita gentilmente para a nossa produção.  Joana estuda canto desde os 12 anos, dedica-se ao canto lírico e às obras sacras. Incluem-se no seu repertório árias de óperas e música erudita brasileira. Tem foco também no ensino de canto para crianças de regiões carentes, trabalhando que você pode conhecer mais visitando a página da cantora AQUI.

INSURREIÇÃO DA ITÁLIA CONTRA O NAZIFASCISMO

O 25 de Abril é data de muitas memórias, de muitas conquistas dos povos na luta pela democracia, pela paz e pela justiça. Três décadas antes da Revolução dos Cravos, o povo italiano se levantava para finalmente retomar de volta sua pátria do jugo do nazifascismo. Para lembrar aquele período, trazemos para você agora um texto do jornalista e revolucionário JOSÉ LUIZ DEL ROIO.

VIVA O 25 DE ABRIL!

por José Luiz Del Roio – Instituto Astrojildo Pereira

Os números do calendário podem revelar agradáveis surpresas. A mesma data pode representar dois momentos grandiosos da história. Esse é o caso de 25 de abril de 1945, que marca a insurreição armada da cidade de Milão contra o nazifascismo, e o de 1974, que enterra o salazarismo em Portugal com a Revolução dos Cravos.

Abril é primavera na Europa. A Itália, território de duros combates está arrasada, os exércitos aliados avançam contra as tropas nazistas. Milão, poderosa cidade industrial é naquele momento um ponto de concentração dos fascistas. Ali estão Mussolini e seus principais assessores, também para lá convergem as brigadas negras italianas (os Camisas Negras) e fascistas de outros pontos da Europa, como as milícias francesas de Joseph Darnand.  Na cidade está a sede da Gestapo e das S.S. alemãs. O fascismo pretende transformar Milão em uma fortaleza inexpugnável.

As forças antifascistas agrupadas no CNL – Comitê de Libertação Nacional– decidem que Milão tem que se libertar por si mesma, sem esperar os exércitos aliados. Para o orgulho e resgate dos italianos pela infâmia fascista, lançam um terrível ultimato: “Render-se ou morrer” – “A piedade está morta!” .

No dia 24 de abril chegam as ordens para a insurreição. A mesma ordem determina que as Brigadas Garibaldi, lideradas pelo comunista Comandante Cino Moscatelli, desçam das montanhas e entrem em Milão.

Já de madrugada, tem início a ocupação armada das fábricas, e os combatentes clandestinos da SAP – Esquadras Armadas Guerrilheiras – se mobilizam e conquistam as sedes dos jornais e das rádios. Horas depois, com a colaboração da população começa o cerco aos quartéis e sedes das forças militares fascistas. O combate toma conta da cidade.

Mussolini e seus ministros fogem para os lagos mais ao norte. Seus cadáveres fuzilados voltarão para Milão três dias depois. As tropas nazistas iniciam sua retirada. Na manhã do dia seguinte – embora a luta permaneça – os jornais sobre a direção dos guerrilheiros anunciam: Milão está libertada.

Hoje minha amada Milão está esmagada pelo vírus, mas com orgulho de sempre recorda seu 25 de abril – Agora e sempre – RESISTÊNCIA.

Quase 30 anos depois…

Desejo homenagear a Revolução do Cravos com uma singela recordação pessoal.  O Partido Comunista Italiano havia organizado para o 25 de abril uma concentração de solidariedade aos países que sofriam debaixo de ditaduras fascistas naquele ano de 1974. Foi realizada na cidade de Terni, que possuía um forte componente de metalúrgicos. Foram convidados representantes da resistência em Portugal, Espanha, Grécia, Uruguai, Chile e Brasil.

Minha modesta figura representava os lutadores brasileiros. O companheiro português cujo nome neste momento não recordo era o vice-secretário do Partido Comunista Português. Já ancião, dirigente respeitado e que havia passado inúmeros sofrimentos nos anos em que esteve nas masmorras do fascismo português. Muito educado e muito formal.

Na madrugada do dia 24 me encontrava num hotel, com insônia e ouvindo o rádio, quando o locutor deu uma estranha notícia – tropas militares moviam-se para Lisboa. Mais nada. Pensei se era o caso de acordar o companheiro português, que dormia no mesmo hotel. Achei que sim e lá fui acordá-lo. Abriu a porta com seu pijama impecável. Pedi desculpas por incomodá-lo e contei a ele o acontecido. Pensou alguns segundos e depois começou a pular, me abraçou e disse: “É o que esperávamos: o fascismo em Portugal caiu!” E eu chorei.