“Uma agenda de valores de humanidade precisa ser resgatada pela escola e levada adiante em cursos que digam para as crianças o que é a Constituição, o que são direitos humanos, o que é cidadania, o respeito ao outro, os limites da liberdade”.

É o que defende a historiadora Isabel Lustosa ao TUTAMÉIA. Nesta entrevista, ela trata das razões da ascensão das ideias anti-iluministas, do papel da mídia e das elites brasileiras. Autora de da biografia “D. Pedro I” e de “Insultos Impressos, A Guerra dos Jornalistas na Independência, 1821-18232”, Lustosa fala dos 200 anos de independência, da necessidade de defesa do Arquivo Nacional e enxerga no pós-modernismo uma parcela de culpa pela regressão que vivemos. Acompanhe a íntegra no vídeo e se inscreva no TUTAMÉIA TV.

“A direita soube implantar a dúvida nas mentes mais frágeis, sobre coisas que já eram assunto definido na humanidade: a terra não é plana, as vacinas fazem bem –e todo mundo tem que tomar vacina. Está provado que o homem desceu na lua. A gente fica impressionado como não atentamos para o fato de que isso era fácil. Se você pensar que isso aconteceu depois de tantos séculos do iluminismo, das coisas que foram verificadas e aceitas pela cultura ocidental… Está sendo feito hoje em países que foram os primeiros a produzir esse conhecimento. Isso é muito chocante”.

Segue a historiadora:

“Como é possível subverter essas mentes? Como é que a pessoa que se vacinou a vida toda não quer vacinar o filho? Como é que essa loucura conseguiu ser implantada em pessoas que estudaram em universidades, que viveram em países desenvolvidos? É como se fosse preciso estar o tempo todo reforçando o sentido de humanidade. Aí eu acho que o pós-modernismo teve um papel nesse abalo que a cultura ocidental sofreu. A relativização de tudo, a capacidade de questionar a verdade. Nisso os grandes e profundos intelectuais modernos têm a sua parcela de culpa”.

EGOÍSMO E PROJETO DIABÓLICO

Lustosa fala das ações dos ultradireitistas Steve Bannon e irmãos Koch (magnatas do petróleo). “É um projeto diabólico que se beneficia desse egoísmo do neoliberalismo para construir uma coisa monstruosa que a gente tem que preparar para não deixar eles ganharem”.

Ela alerta: “Não é só no Brasil. Em Portugal, o partido da extrema direita está crescendo e é uma coisa tão rastaquera quanto o nosso daqui. É impressionante o que esse momento novo nos revela. Como tem uma parcela da humanidade estúpida! Como uma quantidade enorme de pessoas, e até pessoas que tiveram acesso a tudo, pode ser convertida por um discurso tão tosco. Isso é algo que as pessoas de luzes –para usar a expressão do Hipólito da Costa– têm o dever de fazer. Elas têm que falar, escrever”.

Lustosa percorre as origens desse processo:

“Dentro do debate da historiografia surgiu um questionamento que vem dos anos 1990 ou antes até, sobre as ideias marxistas. Houve aí um começo de neutralização e de crítica, que também era razoável, mas que acabou jogando a criança junto com a água da bacia. Essa crítica de que os conteúdos ficavam muitos marcados pelos meios de produção. Não era assim, mas um pouco. Que se desconhecia os personagens históricos, os heróis que nem Dom Pedro. Falavam de coisas mais abstratas como desenvolvimento, pobreza, subdesenvolvimento”.

A historiadora continua:

“Essa crítica acabou dando uma virada para o nada. Os livros de história já não têm consistência. Os textos da minha infância eram os textos clássicos brasileiros: Navio Negreiro, Meus Oito Anos, Olavo Bilac, Mario de Andrade. A gente aprendia essas coisas básicas, que não eram nem da direita nem da esquerda. Eram elementos fundadores da cultura brasileira, um patrimônio construído ao longo da História, como Camões”.

PREDOMÍNIO DO NADA

“Isso foi sendo substituído por um texto da Bruna Lombardi, que tinha acabado de se tornar escritora. É um exemplo, não quero cometer injustiça. Coisas que tinham uma datação e que nada garantia que seriam permanentes, que se fixariam como fundamento da cultura brasileira. Essas coisas foram relativizando. Outro aspecto importante foi o desrespeito aos mais velhos”.

“No colégio a gente leu “Summerhill”, a liberdade sem medo. O sonho era estudar numa escola daquelas, que você não entrava na sala, ficava no corredor. Essas coisas, quando levadas à prática subverteram determinados valores que foram construídos desde o século 18 em termos do que é educação, do que é civilidade, do que são modos. Os próprios sentimentos cristãos, e de outras religiões, de respeito aos que sofrem, a caridade, a piedade –tudo isso sumiu da agenda escolar para o predomínio do nada”.

“E agora esse nada está sendo preenchido pela direita com esses textos que eles querem impor: a família, o casamento, negação dos homossexuais. Uma agenda de valores de humanidade precisa ser resgatada pela escola”.

IGNORÂNCIA, ELITE SURREAL E CONCENTRADA

Ao TUTAMÉIA, Isabel Lustosa percorre a história do Brasil e afirma:

“A elite do Brasil foi extremamente individualista. Tinha um padrão. A gente vê os filmes, as fotografias, aqueles paulistas, aquela coisa quase surreal. Tem um filme de 1928 de um grupo de paulistas no Copacabana Palace, ainda sem a terra, e aquelas pessoas. É quase um delírio de contraste, de alheamento da realidade do país. E assim foi e parece que hoje tem uma reprodução disso nessa elite que a gente vê, de uma estupidez tremenda, de uma indiferença radical em relação a essas pessoas que aderem a um governo como esse. Pessoas que a gente conhece, amigos, parentes. Tem uma ignorância e uma incapacidade de compreensão”.

“Essa coisa que o Lula tem em excesso, de compreender o que é o sofrimento, imaginar o que é dormir embaixo de uma marquise e chover como choveu esses dias todos. A mulher do Dória, que falou que o cara era da rua porque tirava vantagem de viver na rua. Assim que são as cabeças. E isso é muito preocupante, porque é um pessoal que tem dinheiro ainda, elege pessoas e têm mentes tacanhas”.

Lustosa identifica similaridades entre o comportamento da elite atual com a que existiu no passado:

“Há uma continuidade. Sobrenomes que vem de tanto tempo. A concentração ainda muito forte do poder no centro-sul, São Paulo, Rio. Minas perdeu, mas ainda é. Isso vem desde que a capital mudou para o Rio, no século 18. Não houve democratização da riqueza em nenhum momento. São poucos os casos de pessoas que emergiram. No Império, antes da abolição, é que alguns negros conseguiam ser engenheiros, como os irmãos Rebouças. Um escritor como Machado de Assis era amigo de Joaquim Nabuco. Havia uns buracos dos filhos bastardos, dos protegidos da Casa Grande que acabavam tendo alguma ascensão sem o preconceito que vai se firmar mais no final do século 19. Não era tão gritante como se tornou. Com a República esses canais se estreitaram”.

“A elite ficou mais concentrada, menos capaz de absorver outros elementos, fora um ou outro. Com isso, você perenizou determinadas classes. Esses dias, em peguei um táxi, e o motorista morava no Morro da Providência. E ele já era da quinta geração de parentes dele que morava lá. A ideia norte-americana do ‘self made man’ nunca ocorreu aqui massivamente”.

“A ideia do Lula é que surgisse muitas meninas como aquela do filme ‘A que Horas Ela Volta’. Ali, a filha de empregada fala a mesma linguagem dos donos da casa, uma menina altiva. O fato de ela ser altiva irrita. Quem é ela para passar na frente do filho [do dono da casa] na universidade, para tomar banho na mesma piscina? Essa geração –que eu tenho esperança que vá aparecer agora– é formada num contexto muito diferente do que o Brasil até então tinha andado de chance para essa juventude pobre”.

Para a historiadora, a elite, sem um projeto para o Brasil, tem a mesma cabeça de sempre, como se o preconceito estivesse ali entranhado durante séculos. “É a incapacidade de aceitar que o outro é igual a você. O outro que é pobre, que usa uma roupa modesta”.

MÍDIA E ALTERNATIVOS

A autora “Insultos Impressos” compara a situação atual com a dos primórdios da independência, quando uma miríade de jornais passou a circular.

“A possibilidade de falar e ser ouvido revolucionou a situação. É o que acontece agora. Primeiro você tinha uma imprensa hegemônica, os grandes jornalões, a televisão deitando aquela conversa toda. Num primeiro momento, você tem o surgimento de uma imprensa alternativa que nem a que surgiu na ditadura, nos anos 1970, que conseguiu levar outras palavras para o público leitor. É o que se faz agora. A gente estava soterrada pela Globo, pelos outros jornais. O papel da imprensa alternativa foi romper um tipo de dominação, que nem no absolutismo no antigo regime, que possibilitou essas manifestações todas. Num segundo momento, com a pulverização dessa capacidade de manifestação das pessoas, essas ferramentas foram manipuladas e aproveitadas por determinadas tendências. A direita é que soube fazer isso de forma a implantar a dúvida nas mentes”.

Para Lustosa, “a esperança reside no furo que essa imprensa alternativa fez, a cunha que se meteu e que, ali, eles não são mais a única fonte de informação, e a possibilidade de isso não ser sufocado pela ação da direita”.