“Giuseppe Verdi é a quinta-essência da Itália no século 19. É a figura emblemática da Itália como uma nação que pode se chamar assim, sem estar subordinada a ninguém, uma nação que tem hino, bandeira, idioma –uma nação, portanto, que joga a Copa do Mundo quando não dá vexame nas eliminatórias. Giuseppe Verdi foi isso tudo porque soube ser o artista antena da raça, soube captar as aspirações de seus contemporâneos e soube traduzi-las em música, de um jeito que todo mundo, em sua época, se identificou, e soube vestir a camisa azurra, a camisa da unificação. Ele fez isso com tanta força e com tanta maestria que, mesmo hoje, nós, que não temos nada a ver com a unificação italiana, conseguimos ser tocados e nos identificar com a sua mensagem. É a mensagem de alguém que soube ouvir a sociedade da sua época, que não subiu na torre de marfim e soube unificar as suas reivindicações e dar a sua tradução mais convincente e mais veemente.”
Quem fala é o jornalista e tradutor Irineu Franco Perpetuo, um dos grandes estudiosos da música erudita no Brasil, em programa especial de TUTAMÉIA em homenagem a Verdi, morto há 120 anos, em 27 de janeiro de 1901. Ao longo da entrevista, conversamos sobre as principais óperas do grande compositor italiano e sobre sua importância política, sem deixar de falar de seus romances, intrigas, ciumeiras e pitis.
Perpetuo destaca que a música de Verdi está presente na memória de quase todos, ainda hoje: “Ele é daqueles compositores quem mesmo quem acha que não ouviu já ouviu pelo menos “La Donna è Mobile” em algum realejo em algum canto do mundo”.
É uma das grandes figuras culturais do século 19, diz o jornalista, justificando: “É um músico absolutamente quinta-essencial de uma época em que ópera era muito mais do que ópera. Hoje, não temos a dimensão do que era ópera no século 19, antes do nascimento do cinema e do esporte organizado de massa. As pessoas iam à ópera também para torcer, tinha policiamento dentro do teatro para vigiar as torcidas organizadas na plateia. Naquela época, então, em que ópera era um misto de cinema, futebol, Netflix, o Verdi era o grande cara da ópera, a grande celebridade”. (Clique no vídeo acima para ver a entrevista completa e se inscreva no TUTAMÉIA TV)
Ele faz sucesso em uma época em que a música italiana começa a perder espaço: “Verdi coroa uma grande geração de músicos italianos do século 19, começando com Rossini, primeira geração, segunda geração Donizetti e Bellini, e Verdi a terceira. O curioso é que esse é o período em que a Itália está perdendo a predominância, teoricamente, em que o eixo de interesse da música está se deslocando para o mundo austro-germânico, Haydn, Mozart, Beethoven e para a grande música instrumental. Mas esses compositores italianos são os caras que reafirmam a primazia italiana na música vocal, mesmo tendo até de concorrer com óperas de outras nações –no século 19, todos os países vão afirmar sua identidade nacional pela música, e tratam de fazer óperas em suas línguas, até no Brasil houve tentativa de fazer ópera em português. Foi algo que ocorreu no mundo todo, a ideia era “vamos fazer ópera na nossa língua para a gente mostrar que é uma nação”.
Mas o que há na música verdiana que a torna tão especial?, perguntamos ao jornalista.
“Verdi herda desses compositores o grande talento como melodista, essas coisas que caem no ouvido e não desgrudam, manteve esse amor pela voz. Ao longo da carreira, ele vai sofisticando a escrita orquestral, trazendo coisas da escola austro-germânica para a música dele. E ele tem uma coisa apaixonante, que é o senso do teatro, o tempo dramático. Os compositores italianos meio que inventaram o cinema antes de o cinema existir. E, se você comparar o Verdi com o Wagner, as noções de tempo dramático não poderiam ser mais distintas: as óperas do Wagner são longas e se demoram e se esparramam, enquanto no Verdi são um filme de Hitchcock.”
A paixão, o deixar o público em frenesi, aparece mesmo nas óperas menores, na opinião de Irineu: “Ele era muito preocupado com o tempo dramático. Escreveu para um amigo: “De todos os estilos, o pior é o chato. Esse é o que eu não quero ser”. Há então esse senso do drama no Verdi muito atento. Ele não está apenas escrevendo uma melodia virtuosística para um cantor brilhar; aquilo tem um profundo sentido dramático. Mesmo nas óperas do Verdi em que a história é a mais absurda, se contada em prosa, na hora de assistir à ópera você fica preso ali, porque o Verdi está muito convencido da verdade daqueles personagens, e ele imbui a sua música dessa verdade. Então tem a melodia, tem a sofisticação orquestral que ele vai adquirindo ao longo da carreira e tem esse profundo senso do drama, esse domínio incrível do senso dramático. Isso é uma coisa que está nele desde o começo, esse sentido absoluto do drama, esse Hitchcock do século 19”.
UNIFICAÇÃO ITALIANA
Talvez isso não bastasse para conquistar de forma tão profunda o público da época e para se manter presente e permanente pelos séculos à frente. O que aconteceu, no entender do estudioso, é que Verdi foi capaz de captar e traduzir o espírito de seu tempo, o Risorgimento, período em que a Itália, até então uma coleção de pequenos Estados quase sempre sob domínio estrangeiro, luta para se afirmar como nação unificada.
“Risorgimento e Verdi são duas palavras que não dá para separar. Ele ajudou muito, e não dá para entender o Verdi sem entender esse contexto histórico da Itália, no qual ele soube ser esse artista antena da raça, soube ser a tradução das aspirações do lugar. Era tipo quando Vandré escreveu “Disparada”, mas Verdi escreveu um monte de “Disparada”. É como é a Violeta Parra para o Chile, sei lá. Alguém que estava no momento certo e soube traduzir aquilo em sons”.
“Essa Itália, no século 19, sob domínio estrangeiro, estava sempre sob censura. Às vezes não só pelo domínio estrangeiro, havia muita censura de costumes, muita censura moral, muita censura religiosa, do clero –havia uma tensão forte do Verdi com o clero o tempo todo. Então ele tinha de fazer aquilo que os russos chamavam de linguagem esopiana –ou seja, a coisa da fábula, ele tinha de traduzir de um outro jeito, já que não podia falar abertamente o que estava acontecendo.”
E faz isso com sua ópera, com sua arte, com sua arquitetura musical, explica Irineu Franco perpetuo:
“Verdi estreia com uma ópera chamada “Oberto”, que faz muito sucesso, aí ele faz “Un Giorno di Regno”, o único fracasso da vida dele, uma comédia. E a terceira se chama “Nabucco”, que estreou em 1842. É a história bíblica do cativeiro dos judeus na Babilônia. Essa ópera tem um momento que é o coro dos escravos judeus. Se chama “Va, Pensiero” –“Vá, pensamento, nas asas douradas…” É o momento em que Verdi parece aqueles diretores de cinema manipuladores: “Chora agora…” Ele está chamando para aquela catarse coletiva, o acompanhamento é simples, o coro é quase uníssono, convidando a gente a acender o isqueirinho e cantar junto… Quando ele fez isso, todo mundo na plateia, obviamente, entendeu aquilo como uma metáfora da Itália sob domínio estrangeiro. Virou um clássico instantâneo. Verdi depois compôs muitas outras óperas, várias de mais sucesso do que “Nabucco”, mas essa popularidade do “Nabucco”, com essa qualidade catártica para a Itália, ficou. Virou meio que um hino nacional da Itália, informal, é algo que pega…”
Seu engajamento político conquista o país: “A partir daí, a gente marca o estouro do Verdi em popularidade, a consolidação dele como um grande nome italiano. Ele depois vai fazer várias óperas em que deliberadamente ele vai mexer, vai sacudir com o patriotismo italiano –“Macbeth”, por exemplo, tem um coro chamado “Patria Oppressa”, Pátria oprimida, não preciso dizer mais nada. Várias das óperas que ele faz nesse período em que a Itália está aspirando à unificação têm uma mensagem mais ou menos cifrada sobre isso. Foi um compositor engajado nessa causa”.
Tanto que, nos anos imediatamente anteriores à unificação, o nome Verdi virou consigna cifrada escrita em muros pelo país: “A ligação era tão grande que havia um movimento para que o rei Vittorio Emmanuele fosse o rei da Itália unificada. A ligação era tão grande que pessoas escreviam Viva Verdi, que significava Vittorio Emmanuele re d’Italia. O nome dele já se prestava a ser a sigla da liberação italiana”.
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