Por CÉLIO TURINO

Entre os povos de raiz, indígenas, afro-brasileiros, dos sertões e dos interiores, as mulheres, ao lado dos xamãs, são as protetoras dos valores culturais de seus povos. A garantia da continuidade entre gerações está no fio tecido pelas mulheres, talvez por isso mesmo, exista uma forte tensão narrativa, em que o poder patriarcal tenta cala-las, reprimi-las, amordaça-las, escondendo e apagando feitos, memórias e histórias das mulheres.

Nas tradições dos povos indígenas do Xingu, no princípio as mulheres tocavam a Jacuí, a flauta sagrada. Elas cantavam para toda a aldeia e aos homens cabia escuta-las com reverência.  Certo dia os homens rebelaram-se. Não queriam mais as mulheres no centro da aldeia. Tomaram-lhes as flautas sagradas e desde então as mulheres foram proibidas de tocar a Jacuí. Mas se os homens impediram as mulheres de tocar a flauta, não podiam roubar-lhes a voz da garganta. Com o tempo foram percebendo que seria possível fazer música juntos. Assim, as mulheres cantam.

Essa história foi contada a mim pelo grande líder do povo yawalapíti, cacique Aritana, recentemente falecido por covid. História de mulheres indígenas, também de mulheres negras. Também de todas as mulheres de todas as cores.

De África, Ilu Obá de Min, mãos femininas que tocam o tambor para Xangô. O deus da justiça, dos raios, dos trovões e do fogo. A voz das mulheres empoderadas, expressa pela força do som do tambor, tocado simultaneamente por centenas de mulheres negras na cidade de São Paulo reunidas a partir de um Ponto de Cultura.

Em todos os tempos, povos e lugares tem sido assim, uma voz é amordaçada, subtrai-se uma forma de cantar, retira-se um instrumento musical. Mas o canto, na voz da mulher, é sempre retomado. Seja na voz de Lia de Itamaracá ou das Meninas de Sinhá; ou das quebradeiras de coco de babaçu, das rezadeiras (escutem Zabé da loca), das canções de trabalho na voz das mulheres. Também nas rodas de samba, com Clementina de Jesus e tantas outras mulheres brasileiras.

São as nossas vozes, a voz da alma do povo que se fez Mátria. A voz da mãe acolhedora que a todas e a todos cuida, sejam mulheres, homens ou do gênero que se quiser ser. Mais que filhos da Pátria, os brasileiros e brasileiras são filhos da Mátria. Vamos conhece-las?

Dandara, negra guerreira de Palmares. Ainda menina, desafiou o sistema colonial escravista, se rebela, une-se aos seus. Com Zumbi lidera a resistência no quilombo de Palmares. Estrategista militar, lutava com pés e mãos, ela é a mãe da capoeira. Conhecia o território da Serra da Barriga e sua mata densa, exímia caçadora, Heroína da Mátria. Guerreira sem rosto, preferiu jogar-se no abismo a entregar-se aos escravagistas. Segue na memória das lutadoras pela liberdade, mulheres que não se entregam jamais.

Foram muitas resistências. Sob o mundo da escravidão as mulheres negras padeceram requintes de crueldade, violações de seus corpos, objetificação, separação dos filhos, impedimento dos afetos, da religiosidade, jornadas de trabalho estafantes. Para muitas, a primeira resistência era negar-se à maternidade. Não queriam que seus rebentos nascessem escravos, nem que para isso tivessem que comprometer seu útero com plantas venenosas. Muitas Dandaras. Nas plantações e engenhos, nas Casas Grandes, nas Senzalas e nos quilombos, também nas ruas, no artesanato, no comércio.

Mulheres cuja memória precisa ser resgatada. Cito algumas do tempo da escravização:

Acotirene, a matriarca de Palmares, conselheira dos primeiros quilombolas.

Tereza de Benguela, a rainha do Quilombo do Quarterê, nos sertões do Mato Grosso, o reino da liberdade para negros e indígenas escravizados, alguns caminhavam centenas, milhar de quilômetros, até encontrar abrigo, de indígenas Chiquitanos nas terras da atual Bolívia a negros das Geraes.

Aqualtune, a filha do rei do Congo, guerreira da resistência na África é aprisionada e vendida como escravizada para trabalhar nas plantações de cana de açúcar em Pernambuco, rebela-se novamente e consegue juntar-se aos quilombolas em Palmares, tornando-se esposa de Canga Zumba, conta a história que ela foi avó de Zumbi.

A angolana Zeferina, líder do Quilombo do Urubu, na Bahia, exímia arqueira, atemorizava os capitães do mato.

Maria Crioula, a mucama na cidade de Vassouras que liderou a maior fuga de escravizados no Rio de Janeiro, indo juntar-se a Manuel Congo e seu quilombo. No Quilombo da Mola, atual estado do Tocantins.

Maria Aranha organizou toda a vida local e Tia Simoa que liderou a luta antiescravista no Cariri, Ceará.

Esperança Garcia, escravizada na cidade de Oeiras, no Piauí do século XVIII, aprendeu a escrever com os jesuítas, sendo vítima de maus tratos por seus senhores, redigiu de próprio punho uma carta-petição denunciando seus suplícios, precursora da advocacia, duzentos anos depois, em 2017, foi reconhecida pela OAB como a primeira advogada piauiense.

Luiza Mahin, da rebelião dos búzios, ou Revolta dos Malês, em Salvador, Bahia, mãe de Luiz Gama, mulher independente e destemida.

Maria Firmina dos Reis foi a primeira romancista brasileira, autora de Úrsula, o primeiro romance abolicionista do país, uma mulher negra nascida na província do Maranhão. Foram muitas! É preciso tira-las do apagamento. Mulheres lutadoras afro-brasileiras.

As mulheres negras dão exemplo de perspicácia e tenacidade na luta pela superação da ordem opressora. Desde as Negras de Tabuleiro, que, mesmo escravizadas, conquistavam um tempo para si, via comércio de rua nas cidades do Brasil Colonial e Imperial. Por conta desse trabalho muitas conquistavam a alforria para si e seus filhos. O farto duplo do trabalho, doméstico e fora de casa, seguiu e segue como uma marca até os dias atuais. Mães como esteio de famílias. Heroínas anônimas.

Mulheres que foram semente da moderna brasilidade. Adentrando no século XX:

Hilária Batista de Almeida, a Tia Ciata, em cujo Quintal nasceu o Samba. Tia Ciata era reconhecida e respeitada pelas autoridades do Rio de Janeiro no início do século XX. Morando na Pequena África, no centro da capital do país, sua casa foi o ponto de partida para as rodas de samba e o encontro dos mais diversos artistas que fizeram a história do samba.

Dona Yvonne Lara, a primeira mulher a compor enredo para uma Escola de Samba, abrindo caminho para tantas mulheres. Mas não só. Yvonne Lara foi uma das primeiras mulheres negras a adquirir ensino superior no Brasil, inicialmente como enfermeira, depois como Assistente Social. Trabalhou com outra brasileira ilustre, de quem falarei em outro artigo, Nise da Silveira. Yvonne Lara foi precursora da Saúde Mental e da Terapia Ocupacional, ministrando aulas de música para doentes mentais. Enquanto a médica Nise da Silveira se fundamentava nos estudos de Carl Jung, Yvonne Lara se amparava nos saberes ancestrais transmitidos pelo samba, assim surgiu a terapia ocupacional a partir da arte.

Clementina de Jesus, a voz do Jongo da zona cafeeira do sul do estado do Rio de Janeiro. Filha de parteira, aprendeu cantos em nagô e iorubá, também o sincretismo com o catolicismo, participando de Folias de Reis. Mudando-se para o Rio de Janeiro, foi morar no Morro da Mangueira e trabalhou como doméstica e lavadeira, até ser “descoberta” como grande intérprete e compositora da música afro-brasileira, com sambas, jongos e partido-alto.

Como Clementina, a grande escritora Carolina Maria de Jesus, que permaneceu anônima na favela do Canindé na zona norte da cidade de São Paulo até ser “descoberta” em 1960.  Seu primeiro livro, Quarto de Despejo, foi um assombro, vendendo mais de um milhão de exemplares, sendo traduzido para quatorze idiomas. A voz de uma mulher negra, catadora de papel, favelada, que criava sozinha os seus três filhos. A voz de tantas mulheres brasileiras. “Ah, comigo o mundo vai modificar-se. Não gosto do mundo como ele é” Escreveu a mulher que sabia que “Quem não tem amigo, mas tem um livro tem uma estrada”.

Vivendo na favela e escrevendo sobre a vida na favela, Carolina Maria de Jesus abriu estradas. Assim como Antonieta de Barros, primeira mulher negra a ser eleita deputada estadual no país, em 1934, no estado de Santa Catarina. Educadora e jornalista, dedicou-se a abrir Escolas para oferecer educação de qualidade para as mulheres. Criou jornais e dirigiu revistas. Foi uma das Fundadoras da Frente Brasileira para o Progresso Feminino.

Enquanto Antonieta de Barros abria caminhos na política e na educação, Carolina de Jesus na literatura, Yvonne Lara na saúde mental e na música, Tia Ciata e Clementina de Jesus no samba e no partido alto, Ruth de Souza foi uma das grandes damas da dramaturgia brasileira.

Ruth de Souza foi a primeira artista brasileira a ser indicada para o prêmio de melhor atriz em um festival internacional do cinema, em 1954, por Sinhá Moça, no Festival de Veneza. Apesar do reconhecimento internacional, seguia em papéis secundários na televisão brasileira, até ser a primeira atriz negra a protagonizar uma telenovela, em 1969, pela Rede Globo. Moça de subúrbio carioca, fez parte do Teatro Experimental do Negro, liderado por Abdias do Nascimento. Com seu grupo de teatro, Ruth de Souza fez parte do primeiro grupo de teatro composto por negros a se apresentar no Teatro Municipal do Rio de Janeiro, em 1945. Ruth de Souza, a Senhora Liberdade, abriu as asas sobre nós, conforme samba-enredo da Acadêmicos de Santa Cruz, que a homenageou no carnaval carioca de 2019.

E Laudelina de Campos Melo. Sobre ela escrevo com especial carinho, porque a conheci quando eu, recém formado em história pela Unicamp, fui trabalhar no Museu Histórico de Campinas, teve a honra de ser amigo e aprendiz dessa sábia mulher, que trabalhava como Tabuleira de Acarajé na frente do Museu, no Bosque dos Jequitibás, nos anos 1980. Precursora das lutas sindicais pelos direitos das trabalhadoras domésticas no país, Laudelina foi uma lutadora do povo muito além de sua categoria, uma mestra Griô. Nascida na cidade de Poços de Caldas, MG, desde cedo começou a trabalhar como empregada doméstica. Foi na casa de uma fazenda, na cidade de Mogi Mirim que ela aprendeu a ler com sua patroa, mãe da poeta Hilda Hilst, um dia ainda escreverei sobre essa poeta que tanto admiro. Nos anos 1930 Laudelina se mudou para a cidade portuária de Santos, à época conhecida como a Cidade Vermelha, pela força dos movimentos socais e sindicais. Na clandestinidade filia-se ao Partido Comunista e milita na Frente Negra Brasileira. Em Santos funda a primeira Associação de Empregados Domésticos do Brasil.

“A situação da empregada doméstica era muito ruim. A maioria daquelas antigas empregas trabalhavam por anos e morriam na rua, pedindo esmola. Lá em Santos, a gente andou cuidando, tratou delas até a morte. Era um resíduo da escravidão, porque era tudo descendente de escravo”, disse Laudelina em depoimento para dissertação de mestrado de Elisabete Pinto, na Unicamp.

Por conta de seu engajamento social, Laudelina de Campos Melo foi perseguida e presa diversas vezes. Nunca esmoreceu. Quando da Segunda Guerra Mundial, participou da luta antifascista, alistando-se para trabalhar como auxiliar de guerra. Queria derrotar o Nazifascismo e todo racismo e supremacismo que essas ideologias representavam. Ao final da Ditadura Militar auxilia na Fundação do Sindicato das Empregadas Domésticas em Campinas.

Já idosa, vivia da venda de seus Acarajés, em um ponto no Bosque dos Jequitibás, em Campinas, seus acarajés eram sempre acompanhados de boas histórias e ensinamentos. Morreu em 1991, aos 86 anos de idade.

Somente vinte e dois anos após a morte de Laudelina é que a luta iniciada por ela, nos anos 1930 na cidade de Santos, pôde chegar ao final. E ainda assim, até hoje surgem casos de superexploração e situações análogas à escravidão de trabalhadoras domésticas. Com a PEC das Domésticas, aprovada em 2013, foi assegurando às trabalhadoras domésticas os mesmos direitos e benefícios das demais trabalhadoras profissionais, como jornada de trabalho de 44 horas de trabalho semanal, limite de oito horas diárias, Fundo de Garantia por Tempo de Serviço, repouso semanal remunerado e horas extras. Somente na segunda década do século XXI, e sob protestos das classes dominantes, o Brasil deu fim legal ao último resíduo da escravidão, conforme Laudelina apontava.

Quando da aprovação da lei, a Federação Nacional das Trabalhadoras Domésticas declarou:

“A trajetória de Laudelina foi fundamental para a organização da categoria na busca de direitos. Laudelina também levantou, através de sua atuação sindical, bandeiras contra o preconceito racial e contra a discriminação das mulheres.”     

Foram, e são, muitas lutas. Muitas mulheres. Muitas heroínas. Mulheres negras, anônimas, periféricas, apagadas, sufocadas. Que revivem! A cada história, em cada memória, a cada nova luta, conquista. Também derrotas, que se transformam em vitórias mais adiante. Heroísmos marcados na pele, no sangue, nos sonhos, nos afetos, na luta, no pensamento. Na voz das mulheres negras.

Para finalizar, Lélia D’Almeida Gonzales, antropóloga, filósofa e intelectual. Mulher negra, revolucionária e feminista. De origem pobre, cedo começou a trabalhar como Babá, até se graduar em História e Filosofia, passando a lecionar na rede pública. Seguiu carreira universitária, como professora de antropologia e cultura popular, chegando a diretora do departamento de Sociologia e Política da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Lélia influenciou gerações, no Brasil e no exterior, incluindo a ativista e pensadora norte-americana, Angela Davis. A mim também. Formulou o conceito de Amefricanidade em referência à experiência comum entre homens e mulheres negras no contato com os povos ameríndios, construindo uma identidade étnica de resistência ao colonialismo, realizada na América. Sobre a Amefricanidade como uma categoria político-cultural, Lélia Gonzales escreveu:

“Já na época escravista, ela se manifestava nas revoltas, na elaboração de estratégias de resistência cultural, no desenvolvimento de formas alternativas de organização social livre, cuja expressão concreta se encontra nos quilombos, cimarrones, cumbes, palenques, marronages, moroom societies, espraiadas pelas mais diferentes paragens de todo o continente (…) Reconhecê-las é, em última instância, reconhecer um gigantesco trabalho de dinâmica cultural que não nos leva para o lado do Atlântico, mas que nos traz de lá e nos transforma no que somos hoje: americanos.”

A história das mulheres negras segue por muitas vozes e pensamentos. Aqui contei a história de algumas, há muitas mais. Histórias que, pela força de suas ações e pensamentos, são exemplos de vida. Um Brasil que brotou e brota do ventre negro e ancestral ainda vai florir com toda sua força e formosura.

No próximo artigo escreverei sobre as Feministas no século XIX, começando por Nísia Floresta. Quem quiser escutar essa história, acompanhada de música, poderá ouvir o podcast no canal do Instituto Casa Comum no Spotify: https://open.spotify.com/episode/56mfWrVIWKqpio2gNEUIPt?si=_viIPAesS_-DXUIqbIAhFw&utm_source=whatsapp&nd=1