“O cerco de Paris leva a um caso extremo de fome. E as mulheres se rebelam. Elas se rebelam muito fortemente contra a Terceira República. Quando é determinado que os canhões de Paris deveriam ser tomados pelas tropas de Versalhes, Louise Michel é uma das que dão o sinal de que as tropas estão vindo, e essas mulheres rapidamente se colocam na rua. Se colocam diante dos soldados, numa tentativa de proteger aqueles equipamentos, que eram considerados da população. Eles não queriam ficar desarmados. Diante dessas mulheres e dos canhões, por mais que os generais dessem ordem de fogo!, os soldados não atiraram. E acabaram aderindo à Comuna de Paris. Temos a figura feminina como muito importante. Elas vão às ruas, tomam os espaços em frente aos canhões, algumas inclusive com suas crianças, afirmando: ‘Paris vai resistir. Nossa cidade não será tomada’!”
Assim a historiadora Samantha Lodi descreve os acontecimentos da manhã de dia 18 de março de 1871, quando é deflagrado o movimento que ficou conhecido na história como a Comuna de Paris. Lodi e a também historiadora Samanta Colhado Mendes participaram de programa especial de TUTAMÉIA dedicado a lembrar a participação das mulheres naquela insurreição e debater o seu legado para a história, para os homens e as mulheres de hoje.
Mestre em história, professora na rede municipal de ensino de São Paulo Mendes e tutora em cursos de graduação e pós-graduação no Claretiano – Centro Universitário, Mendes aponta que a presença feminina nas lutas é uma constante nos momentos mais dramáticos:
“Naquele momento, em que a população da França passava por um contexto de guerra, em que as mulheres eram extremamente afetadas. As mulheres trabalhadoras sempre estiveram nas ruas e, quando há questões sanitárias, de fome, de guerra, são as mulheres trabalhadoras as primeiras afetadas, nos seus salários, nas condições de trabalho, no sustento de suas famílias, no cuidado de suas crianças. Elas são, sim, protagonistas tanto nos momentos que antecedem a Comuna quanto no seu desenrolar e na sua resistência final. Mesmo as que são presas e desterradas não diminuem a resistência”.
Ao longo da entrevista (clique no vídeo acima para ver o programa completo e se inscreva no TUTAMÉIA TV), as duas historiadoras lembram histórias de personagens femininas que se destacaram nas barricadas, como a própria Louise Michel, e ainda combatentes como André Léo e Nathalie Lemel.
Lembram que as mulheres pegaram em armas, não se sujeitando ao tradicional papel que lhes costuma ser reservado nos combates, de enfermeiras, atendentes de saúde –funções que também assumiram. Participam dos debates sobre medidas que o comando revolucionário e conquistam direitos que até então lhes eram negados, como diz Samantha Lodi: “As mulheres não eram reconhecidas enquanto sujeitos portadores de direito. A mulher pertencia ao pai, a um parente ou ao marido. Ela não fazia parte dessa sociedade, ela não conseguia chegar de fato às escolas, ter acesso ao mesmo currículo. Essas mudanças foram acontecendo.”
A Comuna durou apenas 72 dias, mas estabeleceu marcas profundas no que se refere à conquistas femininas. Além de estabelecer a separação entre a igreja e o estado e a educação laicas –que tiveram repercussões gerais nos direitos das mulheres–, a Comuna também organizou escolas especiais para as mulheres, como cursos profissionalizantes. O direito ao divórcio e o reconhecimento da união livre também foram afirmados, entre outras conquistas.
O que leva Samanta Colhado Mendes a afirmar: “Observo a Comuna de Paris como um referencial para todas as lutas populares em todo o período subsequente até os nossos dias. O primeiro ponto é observar como inúmeras tendências que hoje poderíamos denominar como progressistas –ali havia republicanos, blanquistas, anarquistas, comunistas, socialistas de várias tendências–, essas pessoas se reuniram, apesar das diferenças, em prol de questões que estavam muito ligadas às classes populares: igualdade salarial, igual de direitos, direito à educação laica, distribuição de renda, cuidados sociais, alimentação social. Essas são todas questões colocadas pela Comuna e ainda são tão necessárias nos nossos dias. Essas tendências reunidas, apesar de suas diferenças, conseguiram romper naquele momento com um governo que propunha que aquela população fosse subjugada tanto por um inimigo externo quanto interno. Esse é o grande ensinamento para as lutas dos trabalhadores ao longo de todos os períodos posteriores.”
Ao que Samantha Lodi, que é professora de história e integrante do Coletivo de Mulheres Maria Lacerda de Moura, agrega: “O legado das mulheres da Comuna é deixar uma força na resistência, na luta por seus direitos e pela construção de um novo mundo, que é fundamental. O que elas inspiram é nesse sentido. Temos hoje uma série de lutas diárias enquanto mulheres, vimos uma piora no quadro de violência doméstica, de feminicídio neste momento de pandemia. E as mulheres são as que mais estão preocupadas com essa situação de fome –o nossos país novamente tem fome. Isso não está acontecendo só em grandes cidades, estou aqui no interior de São Paulo e já me deparei com essa situação, que vem junto com todo esse processo de precarização do trabalho. Enquanto mulheres, eu acho que é resistir, é não perder a esperança, é continuar fazendo um trabalho de conscientização, um trabalho forte com outras mulheres”.
E Mendes completa:
“Não havia, na Comuna, um processo planejado de como as coisas se dariam, não há um projeto exato de como as coisas se davam, mas sim uma aprendizagem cotidiana da luta, dos métodos de luta, de organização. Os debates auto-organizados, a autonomia da classe trabalhadora para discutir os melhores métodos de existir e de resistir àquele contexto, para colocar sua posição. Acho que tudo isso é essencial para a gente luta nos nossos dias. Começamos falando do que estamos vivendo, o resultado da pandemia. A comuna é, sim referencial para lutarmos contra questões desse tipo. Para a luta das mulheres, é um grande ensinamento também de auto-organização feminina dentro de lutas que poderiam nem sempre comportar a questão feminina, afirmando que a questão de classe resolveria tudo. Não! Elas dizem: precisamos resolver também a questão dos salários iguais. É uma referência de luta até hoje. Nós somos porque essas mulheres foram”.
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