“A sociedade está muito anestesiada. Está anestesiada pelas mortes, pela falta de oportunidade de fazer rituais de luto. Como dizem os ianomâmis, se não soubermos fazer rituais da morte, nós não saberemos fazer rituais da vida. É preciso saber lidar com o luto. E também estamos vivendo essa tragédia na qual as pessoas que acreditam em boa informação não podem se dar ao luxo de sair numa passeata. Só quando estivermos todos vacinados, o que pelo jeito vai demorar muito. Isso gera uma situação muito ruim. Quantos manifestos nós já fizemos? Quantos pedidos de impeachment já chegaram na Câmara? E nenhum foi em frente. Quantos panelaços nós já fizemos? E que não chegam nos bairros dessas pessoas que votam em Jair Bolsonaro. A sociedade está preocupantemente anestesiada, muito parada”.

A avaliação é da antropóloga e historiadora Lilia Schwarcz ao TUTAMÉIA. Com Flávio Gomes e Jaime Lauriano, ela está lançando “Enciclopédia Negra”, livro que reúne, em 417 verbetes, perfis de 550 personalidades negras brasileiras. Nesta entrevista ela fala da concepção dessa obra e de seus outros livros recentes: “A Bailarina da Morte” (2020), com Heloísa Starling, sobre a gripe espanhola que atingiu o Brasil há pouco mais de cem anos, e “Sobre o Autoritarismo Brasileiro” (2019).

“Eu penso que cidadania é uma franquia da democracia. Cada um pratica. Eu fico todo o dia postando, colocando coisa no canal, desmentindo as fake news do presidente. Está na hora de cada um praticar a sua cidadania, de reagir do lugar em que estiver. Faz bem. Eu escrevo para não adoecer. Escrevo para aprender e para não adoecer. Sugiro que as pessoas façam isso porque fará muito bem para saúde mental de todos nós”, declara (acompanhe a íntegra no vídeo e se inscreva no TUTAMÉIA TV).

“Temos tal retrocesso político combinado a um período tão distópico… Nem nos melhores filmes de ficção nós conseguiríamos imaginar que ficaríamos tanto tempo nessa situação, sem saber o final da história. Quem sabe não vem aí uma geração que possa lutar por um outro projeto político, sobretudo mais inclusivo. O Brasil foi o último país a abolir a escravidão e pratica um racismo estrutural e institucional dos mais graves. Uma perversão, um racismo que se pretende invisível porque naturaliza a diferença. Quero torcer que essas gerações que venham por aí vão poder, a partir de outras bases, reagir a essa imensa erosão na nossa democracia nesse momento de emergência sanitária”, diz.

Na conversa, entra o comentário de um internauta, Luís Alberto Pereira:

“Sou professor de história em Uberlândia. Na sala de aula virtual eu nunca falei tanto de racismo. As ações de Bolsonaro têm um efeito rebote”.

Lilia responde:

“Efeito rebote é o que nós queremos! Ele faz esse combinado de expressões tão misóginas, tão racistas que ele está permitindo que essas novas gerações detestem qualquer projeto desse tipo. Esse efeito rebote é o que todos nós queremos ver. Eu concordo com o professor. Nós temos sido muito mais desafiados nas alas de aula. Não vamos ter democracia enquanto formos tão racistas. Esse período tem ensinado para a gente, como o professor chama atenção, que não basta dizer que nós não somos racistas. Como diz Angela Davis e Djamila Ribeiro, é preciso ser antirracista. É preciso fazer ações práticas. A minha tem sido o “Dicionário da Escravidão e Liberdade”, o “Sobre o Autoritarismo” e a “Enciclopédia Negra”. Vamos fazer uma operação bumerangue. O que bate na gente volta”.

ESTAMOS VIVENDO UMA INVOLUÇÃO

Professora da USP e da Universidade de Princeton (EUA), Lilia fala sobre a mortandade em curso no Brasil:

“A quantidade de mortes é resultado de um governo genocida, que anima aglomerações, de presidente que se nega a usar máscara, que faz propaganda de tratamento precoce que não existe. Estudei com Heloísa Starling, num livro chamado “A Bailarina da Morte”, a chegada da gripe espanhola em 1918. Posso garantir para vocês que estamos vivendo uma involução”.

Ela segue:

“Naquele contexto, a primeira reação dos governos foi de negação: esse é um pais tropical, nada vai chegar. Mas a segunda reação não foi de negacionismo como existe agora. Também em 1918, alguns farmacêuticos espertos começaram a vender sal de quinino ou cloroquinina. Só que em 1918, nenhuma autoridade política vendeu oficialmente um produto que serve para a malária, mas que não serve nem para gripe espanhola nem tampouco para a covid 19”.

Outra comparação:

“Também involuímos na nossa solidariedade. Em 1918, as igrejas não só fecharam as portas como resolveram abri-las para criar hospitais de campanha. Clubes particulares esportivos fizeram a mesma coisa. Nós vivemos agora, em 2021, no último feriado da Páscoa, as igrejas fazendo uma imensa pressão para poderem abrir –e nós temos os resultados dessas aglomerações”.

DAR VIDA À MORTE

Ao TUTAMÉIA, a historiadora fala das figuras que compõem a “Enciclopédia Negra”: conhecidos e desconhecidos do grande público, mulheres, homens, LGBTQI+. Cientistas, escritores, trabalhadores, líderes rebeldes, esportistas, cantores, artistas, médicos, engenheiros.

Estão lá histórias de Adhemar Ferreira da Silva, Lélia Gonzales, Carlos Marighella, Clementina de Jesus, Zumbi, Caetana, Lima Barreto, Marielle Franco, Zé Keti, Anastácia, Juliano Moreira, Dandara. João Cândido, Rosa –que, em 1870, atravessou a fronteira na altura de Uruguaiana (RS). Fugiu com os filhos Eugênio, Francisco, Fláubio, Domingos e “um ainda de peito” para libertá-los da escravidão.

O último nome incluído no trabalho foi o de João Alberto Silveira Freitas, assassinado no supermercado Carrefour de Porto Alegre, em 19 de novembro de 2020, véspera do Dia da Consciência Negra.

“São personagens desde o século 16 até o século 21, pessoas que já faleceram. A ideia da Enciclopédia é dar vida à morte. Lidar com memórias, com destinos que foram silenciados, esquecidos pela nossa historiografia ainda tão colonial, tão banca, tão europeia e tão masculina. Um dos objetivos é justamente mexer com a imaginação dos brasileiros”.