Amarrado a um poste de ferro no convés do encouraçado “Minas Gerais”, com as costas nuas, o marinheiro Marcelino Rodrigues de Menezes era espancado sem parar, condenado a 250 chibatadas por supostamente ter agredido um oficial do navio. O castigo prosseguiu mesmo depois de o jovem desmaiar.

Foi a gota d`água para a marujada. A rebelião contra os castigos físicos na Marinha Brasileira, marcada para eclodir em 25 de novembro de 1910, começou naquela noite mesmo, três dias antes da data marcada.

Nós, marinheiros, cidadãos brasileiros e republicanos, não podemos mais suportar a escravidão na Marinha brasileira“, proclamam os revoltosos, que dominaram seis navios, incluindo o “Minas” e o também encouraçado “São Paulo”, considerados dos mais poderosos do mundo naquela época.

No comando estava um negro de 30 anos, alto e magro, gaúcho de Encruzilhada do Sul: João Cândido Felisberto, que entrou para a história com o apelido de Almirante Negro.

“Eu tive o poder na organização da conspiração e tive o poder determinado pelos comitês para assumir a direção da revolução com todos os poderes. (…) A organização da revolta, nós… eu dispunha de todos os poderes, como dispus dentro da revolta de todos os poderes do Brasil. Parei o Brasil. Durante seis dias parei o Brasil, eu mandava na…era o Minas Gerais e o São Paulo. Era quem determinava”, disse o próprio João Cândido em entrevista ao historiador Hélio Silva realizada para o ciclo de História Contemporânea do Museu da Imagem e do Som do Rio de Janeiro, a 29 de março de 1968.

Era o líder de uma revolta que já vinha sendo organizada havia dois anos. Os objetivos eram claros, como mostra o manifesto dos marinheiros enviado ao presidente Hermes da Fonseca:

Rio de Janeiro, 22 de novembro de 1910.

Ilmo. e Exmo. Sr. presidente da República Brasileira,

Cumpre-nos, comunicar a V.Excia. como Chefe da Nação Brasileira:

“Nós, marinheiros, cidadãos brasileiros e republicanos, não podendo mais suportar a escravidão na Marinha Brasileira, a falta de proteção que a Pátria nos dá; e até então não nos chegou; rompemos o negro véu, que nos cobria aos olhos do patriótico e enganado povo.

Achando-se todos os navios em nosso poder, tendo a seu bordo prisioneiros todos os Oficiais, os quais têm sido os causadores da Marinha Brasileira não ser grandiosa, porque durante vinte anos de República ainda não foi bastante para tratar-nos como cidadãos fardados em defesa da Pátria, mandamos esta honrada mensagem para que V. Excia. faça os Marinheiros Brasileiros possuirmos os direitos sagrados que as leis da República nos facilitam, acabando com a desordem e nos dando outros gozos que venham engrandecer a Marinha Brasileira; bem assim como: retirar os oficiais incompetentes e indignos de servir a Nação Brasileira. Reformar o Código Imoral e Vergonhoso que nos rege, a fim de que desapareça a chibata, o bolo, e outros castigos semelhantes; aumentar o soldo pelos últimos planos do ilustre Senador José Carlos de Carvalho, educar os marinheiros que não tem competência para vestir a orgulhosa farda, mandar por em vigor a tabela de serviço diário, que a acompanha.

Tem V.Excia. o prazo de 12 horas, para mandar-nos a resposta satisfatória, sob pena de ver a Pátria aniquilada.

Bordo do Encouraçado São Paulo, em 22 de novembro de 1910. Nota: Não poderá ser interrompida a ida e volta do mensageiro. – Marinheiros.”.

As negociações duraram mais de doze horas. No dia 27, a revolta terminou, depois de o presidente ter prometido acabar com os castigos, e o senador ter votado uma anistia aos revoltosos.

Promessas quebradas sem o menor constrangimento: no dia seguinte, 28 de novembro, o governo promulgou decreto permitindo a expulsão de marinheiros que representassem risco. “O senador Rui Barbosa subiu à tribuna e condenou tal posição, dizendo ser aquele um aviltante desrespeito ao decreto de anistia”, registra Álvaro Pereira do nascimento em texto sobre o centenário da Revolta da Chibata (confira o texto completo CLICANDO AQUI).

O artigo prossegue contando os eventos de dezembro de 1910:
“A situação chegou ao limite. Marinheiros eram presos em terra e levados à polícia ou aos quartéis do Exército. Pequenos bilhetes aos antigos líderes da revolta possivelmente foram interceptados pelos oficiais. E a pergunta era direta: “João Cândido, a revolta continua?” Na noite de 9 de dezembro de 1910, o movimento no navio de guerra Rio Grande do Sul deu os primeiros sinais de que algo estava para acontecer. Antes que aqueles movimentos desusados se tornassem uma revolta, seus oficiais decidiram fugir. E mais tarde o cabo Piaba retomou o movimento no Batalhão Naval da Ilha das Cobras. Novamente gritos foram ouvidos e o estampido dos tiros ecoou pela cidade.

Canhões do exército foram espalhados pelo litoral e começaram a bombardear a ilha, que respondia com os armamentos disponíveis – muito próximos aos do Exército. Como alvo fixo e sem capacidade de deslocamento, os amotinados renderam-se às forças do governo. Começava aí a tortura de todos os envolvidos.

As prisões da cidade, civis e militares, ficaram abarrotadas de marinheiros, tanto com os revoltados de novembro como os de dezembro. Foi decretado o estado de sítio, fechando-se o Congresso e suspendendo direitos. Durante um mês o governo teve toda a liberdade de perseguir, extraditar e deportar qualquer um.

Na noite de Natal, o paquete Satélite transformou-se num tipo de navio negreiro: mais de cem marinheiros, e mais aproximadamente cento e cinquenta detentos e detentas da Casa de Detenção, foram postos no navio em direção ao Acre para serem oferecidos e oferecidas como mão de obra nos seringais e na construção da Ferrovia Madeira-Mamoré28. Alguns marinheiros foram fuzilados a bordo por suspeita de tramarem um levante a bordo.

João Cândido e mais dezessete marinheiros foram amontoados numa estreita cela da Ilha das Cobras, por onde a luz e o ar tinham dificuldade de penetrar. Naquela noite, o comandante do Batalhão Naval levou consigo a chave da cela, enquanto soldados jogavam cal diluída por baixo do portão a fim de desinfetar o lugar. Quando a água evaporou, a cal transformou-se novamente em pó, penetrando as narinas dos marinheiros, que gritavam para que a porta fosse aberta. Aos poucos, segundo João Cândido, os gritos foram sendo silenciados, e dezesseis deles morreram asfixiados. Covardemente, o médico registrou “insolação” como causa mortis. Sobraram somente o líder da revolta e mais um marinheiro.

João Cândido ainda permaneceu preso por dois anos, incomunicável, tomando-o grave depressão. Foi internado no hospital psiquiátrico, por ouvir os gritos dos seus falecidos colegas e ter visões. Retornou ao presídio até ser liberto e desligado da Marinha. Desde então, a Marinha procura esconder a trajetória do Almirante Negro, hoje aqui lembrado na GALERIA TUTAMÉIA DE HERÓIS DA LIBERDADE,  com ilustrações do artista gráfico Fernando Carvall.

 

A MARUJADA NÃO ESQUECE

Apesar dos esforços da Marinha, a história de João Cândido seguiu viva. Em 1934, saiu “A Revolta de João Cândido”, de  Benedito Paulo; no mesmo ano, a rebelião foi tema de uma série de artigos do jornalista Aparício Torelly, o Barão de Itararé.

O movimento comunista, ao longo dos anos, lembrou os feitos do Almirante Negro e dos marinheiros que lutaram pela liberdade. Mas sua história só se tornou mais conhecida mesmo depois que, em 1958, o jornalista Edmar Morel publicou “A Revolta da Chibata”- um clássico sobre o assunto, revisado pelo próprio João Cândido.

O herói, até então vivendo no ostracismo, João Cândido passou a ser convidado para diversas atividades e recebeu muitas homenagens no Rio de Janeiro e no Rio Grande do Sul.

Entre os marinheiros, a história de sua luta era contada com reverência, tida como inspiração. João Cândido era sempre lembrado como líder de um movimento que libertou gerações de marinheiros de humilhações como a punição de chibata. Em 1963, foram à casa do velho líder, na atual Baixada Fluminense, levar um bolo no dia de seu aniversário. E, às vésperas do golpe de 1964, a marujada buscou a presença de Cândido como uma espécie de avalista da luta que então se desenrolava, também por liberdade.

É o que nos conta o ex-marinheiro ÉLIO FERREIRA REGO, que também participou do MAR (Movimento de Ação Revolucionária), grupo formado em grande parte por ex-soldados e ex-marinheiros que resistiram ao golpe e, mais tarde, participaram do enfrentamento à ditadura militar.

Elinho concedeu entrevista ao TUTAMÉIA durante visita que fez ao Brasil em janeiro de 2018 –ele hoje vive na Finlândia. Falou de sua trajetória de luta e chorou ao lembrar do apoio do Almirante Negro à luta dos marinheiros.

A seguir, trechos do depoimento de ELINHO, que também pode ser acompanhado no vídeo no alto desta página.

“Saiu uma notícia em “O Globo”, dizendo que o Ministério da Marinha tinha dissolvido a Associação. Mentira! Nós já tínhamos feito grandes manifestações, os marinheiros, fardados, gritando nossa palavra de ordem: União dos marinheiros, soldados, estudantes, operários e camponeses!

Estava fervendo mesmo!

Então, nessa situação, “O Globo” saiu mais uma vez com a notícia esquisita de que o Ministério da Marinha tinha fechado a associação.

Como responder? Acabamos resolvendo que o Anselmo [Cabo Anselmo], iria falar na rádio Mayrink Veiga. E não deu outra: foi decretada a prisão dele, e ele teve de cair na clandestinidade.

Daí a gente se reuniu no Sindicato dos Metalúrgicos, e tinha muita gente mesmo. Estava lotado o prédio, todo mundo fardado. E aí tinha de fazer mesmo, aí não tinha jeito. O velho marinheiro que fez a Revolta da Chibata, o João Cândido, o pessoal foi busca-lo para ele participar da nossa assembleia. E foi bonito.

A gente chamava ele de Almirante Negro. E outra coisa, camaradas: tem coisas com que a história não desaparece. Por exemplo: na Marinha era proibido falar de João Cândido, não se falava. Mas a marujada falava.

Na Associação dos Marinheiros, uma das palavras de estímulo era: O João Cândido conseguiu em 1910, por que nós não vamos conseguir agora?

Ele foi convidado. E até falou, o pobrezinho do João Cândido, que já estava com 83 anos, ele disse que, quando chegou à casa dele aquela marujada… Primeiro, já tinham ido um monte na casa dele no dia do aniversário dele (24 de junho). Ele disse que, quando viu aquela gente fardada, ele pensou que tinham ido lá para prender ele.

“Vão me prender mais uma vez! Pôxa, eu não tô metido nisso!!”

Então ele ficou muito alegre, porque ele viu que a história não tinha esquecido ele.

Nesse dia, dessa festa, o pessoal foi buscá-lo.

Foi lindo!.

Quando eu me lembro, dá vontade de chorar.

Quando ele chegou, formou-se assim uma fila de fuzileiros e uma fila de marinheiros, e um cabo lá na frente. Quando ele foi chegando, o cabo gritou: “Em continência!” e todo mundo bateu continência. Aí João Cândido tirou o chapéu, já bem velhinho… Foi bonito.

Quando foi anunciado: “Acaba de chegar nosso Almirante Negro”, foi aquela explosão, uma explosão.

Ele não falou muitas coisas. Ele não esperava aquilo. Foi levado nos braços dos marinheiros, assim, pelo ar.

Botaram ele como presidente do ato, ele agradeceu, disse que estava surpreso.

Para ele, foi uma coisa, pois ele viu que a história não o esqueceu. O ato dele foi em 1910, e isso já era 1964, e a história não tinha esquecido.”

ANISTIA COM LULA

Se era verdade que os lutadores populares não tinham esquecido o Almirante Negro, mais verdade ainda é que a Marinha fazia de tudo para que ele não fosse lembrado.

Só em 2008, trinta e nove anos depois da morte de João Cândido, é que a Marinha tornou públicos documentos sobre a passagem do herói na Armada. Reportagem publicada na “Folha de S. Paulo” em março daquele ano informa: “A Marinha liberou, após 97 anos, documentos referentes ao marinheiro de 1ª classe João Cândido Felisberto (1880-1969), o “almirante negro”, líder da Revolta da Chibata, e ajudou a localizar sua ficha no Arquivo Nacional. Os documentos agora tornados públicos só haviam sido consultados por oficiais e historiadores da Marinha e usados para corroborar a versão oficial do episódio que acabou com os castigos corporais nos navios de guerra. A liberação é um fato novo. Durante todo este tempo, os pesquisadores e os filhos de João Cândido esbarraram em negativas da Marinha, que jamais aceitou a elevação dos revoltosos à condição de heróis. O próprio João Cândido nunca conseguiu ter acesso à documentação. Em depoimento no MIS do Rio em 1968, ele reclamou: “… os [arquivos] da Marinha são negativos, João Cândido nunca existiu na Marinha”. O documento mais importante é a ficha funcional. João Cândido entrou para a Marinha como grumete em 10 de dezembro de 1895, chegou a ser promovido a cabo, mas depois foi rebaixado. Nos 15 anos em que permaneceu na Armada, ele foi castigado em nove ocasiões com prisões que variaram de dois a quatro dias em celas solitárias “a pão e água” e duas vezes com o rebaixamento de cabo para marinheiro.”

Em maio de 2008, o então presidente Lula sancionou lei concedendo anistia post-mortem ao Almirante Negro e demais participantes da Revolta da Chibata. Em novembro daquele, o presidente participou de solenidade reinaugurando no Rio de Janeiro estátua em homenagem a João Cândido (foto acima).

Apesar dos ventos democráticos de então, a Marinha não engoliu as celebrações da figura, então celebrada em prosa e verso (“O Mestre-sala dos Mares”, celebrizada na voz de Elis Regina, é um dos exemplos). Para a Armada, a Revolta da Chibata foi “uma rebelião ilegal, sem qualquer amparo moral ou legítimo”, segundo texto do Centro de Comunicação Social da Marinha, divulgado pelo “Folha” em 2008.

Diz também: “A despeito dos fatos que motivaram aquela crise, o movimento não pode ser considerado como “ato de bravura” ou de “caráter humanitário”. Vidas foram sacrificadas, material da Fazenda foi danificado, a integridade da capital foi ameaçada”. E conclui: “Quaisquer que tenham sido as intenções do sr. João Cândido Felisberto e dos demais amotinados que o apoiaram, fazendo uso do ideal do resgate da dignidade humana, a MB não reconhece heroísmo nas ações daquele movimento. Os estudos oficiais e fidedignos sobre o tema sequer certificam o verdadeiro mentor da revolta”.

LIÇÕES DE JOÃO CÂNDIDO

A anistia, porém, não pode ser comemorada por uma das maiores defensoras da memória de João Cândido. Sua filha, Zeelândia Cândido, morreu em 2006. Em uma de suas últimas entrevistas, falou sobre o legado do pai, os ensinamentos do Almirante Negro:

“Ele deixou para a família a noção de que este mundo era desigual e isto ele sentiu na pele com a Revolta da Chibata. Ele dizia na comunidade de marinheiros que não deviam se rebaixar e se humilhar. E isso ele passou para todos os filhos também. Eu aprendi e fui à luta, participo nas associações de moradores, no movimento negro e de mulheres. Parada eu não fico.

A lição que meu pai deixou é que, se a gente tem um ideal, e não se sente bem com uma situação e se puder reverter essa situação, que não devemos esperar pelos outros, temos que arregaçar as mangas e lutar para mudar. Com luta ou com diálogo, vamos nós mesmos tomando as rédeas do nosso destino, porque abaixo de Deus nós temos esta condição. Não podemos esperar que a solução dos nossos problemas venha só de cima.”