O dramático momento político brasileiro afeta as artes plásticas. O interesse externo pela produção nacional diminui. Internamente, artistas plásticos sofrem retaliação por posições políticas. Apesar de sequestrada pelo mercado, a arte é fundamental.

Assim fala o artista plástico Iran do Espírito Santo em entrevista ao TUTAMÉIA. A conversa trata de sua trajetória profissional, de vida pessoal, de engajamento político. Percorre algumas de suas obras, comenta a ação do mercado financeiro no setor, rememora sua polêmica com a Riachuelo (ele se negou a participar de projeto patrocinado pela empresa, que esteve envolvida em denúncias de trabalho escravo) e aborda até a sua saída do Facebook por conta das manifestações de ódio na rede social.

Escultor, pintor, gravador, desenhista, Iran Nasceu em 1963, em Mococa (SP). “Sempre tive fascínio pelas imagens, por desenhos. Tinha certeza de que queria ser artista. Desenhava compulsivamente”, conta.

Em 81 ele se mudou para São Paulo para estudar arte na Faap. Formado em 1986, foi morar em Londres, onde trabalhou numa agência de design. Foi fazendo sua careira “aos trancos e barrancos”, diz. “Eu fiz Bienal, mas não adiantou nada. Fui representar o Brasil na Bienal de Veneza e, no dia em que cheguei de volta, às cinco horas da manhã, sentei na prancheta para fazer ilustração para uma embalagem de cimento. Tinha que se virar”.

SITUAÇÃO INSUPORTÁVEL

Aos poucos, seu trabalho passou a ser mais reconhecido e exposto no exterior. “Coincidiu com uma época de maior interesse pela arte brasileira, que está diminuindo agora, com o momento político. Isso é um reflexo evidente. Esse baixo astral que a gente está vivendo no país diminui o interesse pelo país. Há uns anos, estávamos com um certo protagonismo. Isso tem a ver com a economia com a política. Antes você falava que era do Brasil, tomo mundo dizia: ‘Uau! É do Brasil!’. Na era Lula principalmente. Agora, estão falando é de artista cubano”, afirma.

E continua: “Soube de colegas que tiveram retaliações reais, de colecionadores que devolveram trabalho por conta da posição política desse artista por meio do facebook. ‘Você está apoiando Lula, então vou devolver o teu trabalho’”.

Iran diz que não é petista. Tem críticas às gestões do PT, como às de outros governos. Mas considera lamentável a polarização de hoje, afirmando que “a direita é muito mais agressiva”. Lembra do caso Marielle. E desabafa:

“Acho insuportável isso. Seria ótimo se as pessoas de direita tivessem abertura para o diálogo. Tenho preferência por artistas com preocupação social. Não suportaria ficar numa situação como a de hoje sem tomar partido”.

NÃO QUIS VIRAR GAROTO-PROPAGANDA DA RIACHUELO

Essa percepção dá o contexto de sua atitude no projeto que o Masp fez com a Riachuelo. Convidado a participar,  diz ter ficado, de início, muito satisfeito com a ideia de reeditar uma inciativa dos anos 1970, reunindo artistas e designers para criar tecidos e peças de roupas.

O entusiasmo tinha uma raiz pessoal. Seu pai vendia tecidos em Mococa; a mãe era costureira. “Ela sustentou a gente com a máquina de costura de pedal”, lembra. A irmã tem uma confecção.

No decorrer do processo, Iran viu que a Riachuelo era o patrocinador. Mais: ela coassinava o projeto com o Masp. Daí, ele pensou: “A gente vai virar garoto-propaganda da Riachuelo, uma empresa que tem complicações trabalhistas, é acusada de trabalho escravo”. Ao mesmo tempo, estouraram os casos do “Queer Museum”, em Porto Alegre, e do MAM, em São Paulo.

“Tudo tem limite. A gente vai lá abraçar o MAM e depois pega o patrocínio de quem tá patrocinando o grupo eu tá atacando o MAM? É esquizofrenia que passa de qualquer limite. Falei com o curador, que foi supercompreensivo, democrático. A estilista também concordou em sair; ela também ficou horrorizada. Outros dois artistas saíram. Já tínhamos recebido o pagamento; devolvemos o dinheiro”.

Iran defende que é preciso fazer uma “negociação com mercado, se não, é ostracismo completo. Mas tudo tem limite”. Sua atitude, conta, recebeu muito mais elogios do que críticas. Depois, acabou aproveitando o trabalho feito e produziu roupas com sua irmã –recuperando um pouco da história da família. “Foi superbacana transformar uma coisa negativa em positiva”.

Roupas concebidas por Iran – foto Divulgação

MERCADO É FACA DE DOIS GUMES

Iran relata que seu trabalho começou a deslanchar após sua primeira exposição em Nova York. “Foi paulatino [o deslanche] e isso foi bom.  Aconteceu tarde na minha vida. Deu tempo para eu experimentar, errar, acertar, não cristalizar num estilo. Muitas vezes o mercado tem isso: exige do artista uma marca registrada. Muitas vezes artistas muito jovens ficam engessados. Não foi o meu caso”.

O mercado, na visão de Iran, é “uma faca de dois gumes. Por um lado, permite realizar trabalhos mais audaciosos, de produção mais cara, que, se não tivesse esse mercado eu não teria como fazer. Eu iria fazer outra coisa. Esse investimento pode ser positivo, mas pode ser também ser negativo, no sentido de ele achatar muita produção artística num sentido comercial. Aquilo que não vende, está fora”.

Essa tendência de expulsar quem está fora do mercado surgiu no Brasil a partir dos anos 1990. “Quem está fora do mercado não existe; é horrível. Tive professores que eram excelentes artistas que não participam do mercado e que mostravam, viajavam. Regina Silveira, por exemplo, não tinha mercado nenhum. Agora, alguém sem mercado não faz nada. Faz coisas alternativas, mas não vai expor em museu, em bienal”.

Isso acontece, segundo ele, porque “existe um conluio muito grande entre mercado e as instituições. Dependência, interdependência, uma relação de toma-lá-dá-cá que é muito chata e muito preocupante”. Na sua análise, apesar de haver muita gente com espírito crítico, muitos não se dão conta da gravidade da questão. Especialmente entre os mais jovens, que “não têm incomodo com o mercado”. Para ele, que enfatiza fazer parte do mercado, é preciso não perder o espírito crítico.

“Playground”, obra de Iran exposta em Nova York

PODER PRIVADO FICOU MUITO GRANDE NAS ARTES

Perguntamos sobre os valores astronômicos que algumas obras de arte atingem no mercado. Fala Iran: “O valor é uma abstração, depende do mercado, de investimentos, coisas licitas e ilícitas que podem estar influenciando nesse mercado. É obscuro, muito especulativo”.

Ela ressalta o poder enorme das galerias: “Algumas são verdadeiras multinacionais poderosíssimas”, afirma, dizendo que o poder privado cresceu muito no setor como um todo.

“Não vejo em nenhum museu que eu visito um artista que não pertença ao mercado”, aponta, relacionando interesses do mercado com a curadoria dos museus.

“Tenho muito problema com feira de arte. As feiras começaram a ocupar o espaço institucional que não deveria ser delas.” Como exemplo, lembra que a maior delas ocupa o prédio da Bienal, no parque Ibirapuera.

A conversa trata de suas obras. Iran vai fazendo comentários sobre algumas delas, sobre o processo criativo, as repercussões colhidas do público. Lembramos do clássico de Ernst Fischer “A Necessidade da Arte” (1959), um dos livros de que mais gostamos e que nos marcou.

A arte, que já foi sequestrada pela igreja no passado, hoje é pelo mercado. Mesmo assim, é cada vez mais necessária.