“A destruição do Bolsa Família significa a decretação da morte para as populações em situação de extrema pobreza. Retornar ao mapa da fome é retornar quase a um genocídio. Hoje mais de 20 milhões de pessoas estão literalmente passando fome. O fim do programa significa que as taxas de mortalidade infantil vão subir. As doenças da desnutrição já começaram. A tragédia está em curso de modo absolutamente duro. É consequência dramática desse processo destrutivo. A destrutividade aqui está sendo a destruição de qualquer limite aos ganhos financeiros. Eles [os bancos] não estão perdendo nada, pelo contrário”.
O diagnóstico é da socióloga Walquiria Leão Rego ao TUTAMÉIA. Professora titular de Ciência Política da Unicamp, ela é autora (com Alessandro Pinzani) de “Vozes do Bolsa Família” (Unesp, 2013), livro que relata o impacto do programa nas regiões mais pobres do Brasil.
Nesta entrevista, ela fala sobre seu trabalho de anos de pesquisa com esses brasileiros, analisa a situação política do país e trata das perspectivas para a eleição do ano que vem (acompanhe a íntegra no vídeo e se inscreva no TUTAMÉIA TV).
“A situação brasileira é trágica em todos os sentidos: é desagregadora, é cruel, destrutiva. A destrutividade é impressionante. É tão alta e alcança tantos níveis da sociedade que ela consegue, como o nazismo conseguiu –pelo menos por um certo tempo–, quase que nos paralisar de horror, de medo. Tudo isso agravado pela negligência, pela atitude criminosa em relação à pandemia. As maiores vítimas de um governo desse tipo são os mais pobres. Eles são os mais vulneráveis e estão perdendo os seus empregos, suas rendas e, sobretudo, no caso da extrema pobreza, acabam de levar um golpe extremamente cruel, que foi a destruição do Bolsa Família”, afirma.
Para escrever “Vozes do Bolsa Família”, Walquiria percorreu, durante os anos de 2006 e 2011, os locais mais pobres do Vale do Jequitinhonha, do sertão de Alagoas, do interior do Maranhão, das favelas de Recife, entre outros tantos lugares. Depois, seguiu voltando e acompanhando as mudanças. Conta ela:
“Com o Bolsa Família, tínhamos reduzido as taxas de mortalidade infantil numa proporção muito alta. Algumas doenças tinham sido praticamente eliminadas, como a tuberculose infantil. A taxa de mortalidade das grávidas também tinha sido reduzida em 70%, 80%. E as doenças derivadas da desnutrição tinham sido praticamente eliminadas. Tinha merenda escolar, programa de alimentos saudáveis, tinha melhorado a qualidade da merenda. Todos esses programas cruzados foram destruídos. Isso significa que, daqui a alguns meses, [vai aumentar] a quantidade de crianças doentes. Já aumentou o número de crianças pedindo esmola”.
A tragédia, relata a socióloga, já vinha se agravando:
“Quando estive no Nordeste, no governo Temer, já comecei a ver meninas nos postos de gasolina. Eu perguntei: ‘E mãe? Não tem Bolsa Família?’. A resposta: ‘Ah… cortou’. As meninas de 10 anos voltaram para as estradas. Essa questão da prostituição infantil tinha sido eliminada pelo Bolsa Família”.
Na conversa, Walquiria fala de como o programa teve um impacto bastante amplo: “O patriarcado e o coronelismo foram bastante balançados”.
Agora, com o fim do Bolsa Família e as incertezas da confusa promessa do Auxílio Brasil, ela avalia que as populações mais vulneráveis vivem dias de ansiedade e medo. “Toda essa incerteza é destruidora. A incerteza e o medo são devastadores”. Baseada no que foi noticiado sobre o Auxílio Brasil, ela diz que o projeto “é uma indecência. Não tem nada a ver com o Bolosa Família”.
Para a socióloga, estamos vivendo nas ruínas do neoliberalismo. “O neoliberalismo destruiu todas as instituições. A Lava Jato foi um movimento absolutamente fascista. Era só ler para saber que aquilo era uma ilegalidade atrás da outra, uma arbitrariedade atrás da outra”, declara, acentuando:
“O papel da mídia foi ensinar o povo brasileiro a não respeitar o Estado de Direito e a não respeitar o devido processo legal. Ele era violado todos os dias e diziam aquilo normalmente. A ilegalidade foi sustentada, difundida e mantida até a história da Operação Spoofing”.
ELEIÇÕES PRESIDENCIAIS
Ao tratar da conjuntura política, ela adverte:
“Eu morro de medo das eleições do ano que vem. Pode haver muita violência e se espalhar muito medo. Acontecer coisas nos comícios. Você pode criar uma demonização do Lula pior do que a que foi feita já nos anos anteriores. Uma demonização que já está acontecendo. Veja o Bolsonaro dizendo numa televisão italiana que o Lula é ligado ao narcotráfico! E a TV Record está dizendo isso”.
Analisando as razões da manutenção de certa popularidade de Bolsonaro, apesar de tudo que acontece no país, Walquiria declara:
“Pegou a construção de que ele é um perseguido pela Globo. Dizem: ‘Coitado, não deixam ele governar; ele é bom, é autentico, é um de nós’. O cara do boteco se reconhece nele porque ele fala errado, fala palavrão. Bolsonaro falou, então é verdade. Não sei quanto isso representa estatisticamente, mas é uma construção”.
Ao TUTAMÉIA, a professora da Unicamp também avalia a força dos pastores neopentecostais e das fake News –vetores que estarão muito presentes no debate eleitoral do ano que vem.
“Vão conseguir controlar as fake News? Não vão. Elas têm várias formas de ser, tem o boato, o murmúrio. Como falavam os espanhóis no século 17, a murmuração é a coisa mais perigosa que existe, porque você não precisa provar nada e vira verdade”.
“A gente tem que ter otimismos, mas temos que estar prontos para construir um discurso com o qual a gente possa fazer frente a calúnias medonhas –que vão vir. Essa de traficante, por exemplo”.
Walquiria também fala sobre a pesquisa que realiza agora, sobre sofrimento social:
“As pessoas precisavam ter morrido desse jeito? Precisava haver 20 milhões de pessoas sem comida? Essa quantidade de mortos e essa quantidade de infectados? Fome, comer lixo? A gente está estudando o quanto que o sofrimento social causado por condições sociais trabalha contra a democracia. Esse indivíduo que não se transforma em sujeito é totalmente vulnerável. E podia ser evitado. E pode ser evitado”.
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