“A pandemia aponta tendências contraditórias. Por um lado, reforça a desigualdade. A pandemia acentua problemas não apenas sanitários, mas sociais e econômicos. Quando se diz que estamos todos no mesmo barco, alguns estão na terceira classe e outros têm a primeira salvação. Por outro lado, acho que há uma potencialidade disso tudo, que é a [consciência da] importância dos serviços públicos, a importância do interesse público. E a interligação entre tudo.”

É a reflexão que faz o filósofo e historiador português João Luís Lisboa, catedrático da Universidade Nova de Lisboa, que falou ao TUTAMÉIA sobre o quadro político de Portugal às vésperas da eleição para presidente da República, que acontece neste domingo (24.1). Falou sobre o impacto do agravamento da pandemia ocorrido nas últimas semanas, a posição da esquerda no parlamento, as posições dos diversos partidos políticos e ascensão do partido de extrema direita –que, apesar de relativamente pequeno, é ruidoso.

Claro que Portugal tem ainda as viúvas de Salazar –ditador que por décadas governo o país–, mas há outros combustíveis que alimentam as posições extremistas da direita, na avaliação do estudioso (clique no vídeo acima para ver a entrevista completa e se inscreva no TUTAMÉIA TV). A adesão ao euro e a própria participação do país na União Europeia podem estar nessa lista:

“O euro retirou soberania aos países no campo na política financeira e da política monetária. Os instrumentos criados pela União Europeia em conjunto com o Banco Mundial e FMI para impor políticas que não tinham sido sufragadas pela população portuguesa. Isso é um dos aspectos que, na minha opinião, alimenta a extrema direita, a ideia de que não interessa o que que se vota, não interessa quem se elege porque há coisas que são decididas em outro lugar. Portanto, se não interessa, podemos partir tudo [é o raciocínio deles].”

A derrota de Trump tem impacto sobre essas forças na Europa e no mundo todo, mas isso também precisa ser relativizado: “Trump era o modelo de muitos deles. A derrota limita as expectativas da ação internacional dessas forças, mas não as elimina. Não depende do Trump para que elas continuem”.

Aliás, estava prevista para hoje (sexta, 22.1) uma manifestação com ligações à extrema direita em Lisboa para protestar contra as medidas de defesa contra a pandemia. Ainda que não tivesse notícia do tamanho do evento, o professor não lhe deu muita importância: “Nem sei se ocorreu. Era de donos de restaurante. Dizem que é um protesto contra o sistema. Normalmente, quando se diz contra o sistema é uma parte do sistema que se encontra ali”.

A seguir, alguns dos pontos abordados por Lisboa.

GERINGONÇA

A Geringonça não é uma solução mágica, não é uma solução de esquerda para a governança. Foi uma solução encontrada para se pôr fim a uma política extremamente agressiva, ultraliberal, que estava a ser seguida, sob a direção até da União Europeia, do Banco Mundial, do Fundo Monetário Internacional, que são de certa forma cúmplices nesse desmontar do Estado e desmontar dos serviços públicos.

DIVISÃO NA ESQUERDA

As relações entre as várias forças não são fáceis, mas, em geral, também não são de agressividade mútua. Noto mais agressividade quando vejo coisas do Brasil entre partidos de esquerda do que, neste momento, entre esses partidos. Claro que, na campanha eleitoral, é natural que surja um acirramento.

MUNDO PÓS-PANDEMIA

Há tendências que são contraditórias. Por um lado, a pandemia reforça a desigualdade. A pandemia acentua problemas, que não são apenas sanitários, são sociais e econômicos. Quando se diz que estamos todos no mesmo barco, alguns estão na terceira classe e outros têm a primeira salvação. Isso nota-se em todo o lado em relação às condições de habitação e de acesso à saúde. O ensino à distância e o home office acentuam as desigualdades…

Por outro lado, acho que há uma potencialidade disso tudo, que é a [consciência da] importância dos serviços públicos, a importância do interesse público. E a interligação entre tudo. Também a nível mundial. Não faz sentido um país dizer que quer as vacinas primeiro, porque o vírus não reconhece fronteiras. Se o país ao lado, mais pobre, não tem vacinas e continua a grassar a pandemia, é claro que o país que supostamente está a proteger tem uma ameaça, uma ameaça que não reconhece fronteiras. Não basta construir um muro para as pessoas não entrarem com seus vírus, porque os vírus passarão com as pessoas, com os contatos, a gente está num mundo muito mais inter-relacionado, que a cooperação é importante, em todos os níveis. Não podemos dar de barato que o que importa é o sucesso, que o que importa é a competitividade, que toda a nossa vida, nossa forma de olhar o mundo e a nós próprios têm a ver com ficar à frente dos outros, ter mais sucesso, ser os primeiros.
Essa pandemia mostra que é mais importante para o progresso a cooperação do que a competição.

BRASIL E NEGACIONISMO

Acompanho, como tantos, aquilo que se passa no Brasil, e sofro também com o que se passa no Brasil neste momento em relação à pandemia. Não apenas o que se passa no Brasil, mas nos países onde se negou, onde se nega a ciência a situação piorou, é muito pior do que nos outros. Vivo todos os dias os problemas do Brasil como se fossem nossos, e de fato são nossos, porque não há neste momento problemas que não sejam globais. E grande parte de nossa resposta tem de ser uma resposta também a nível global.