“Dostoiévski era muito um cara da publicística. Foi também muito um jornalista, sempre muito envolvido nas questões de seu tempo. Ler Dostoiévski ajuda a entender a Rússia de seu tempo, e conhecendo a Rússia de seu tempo a gente mergulha melhor no legado de Dostoiévski.” Assim fala o jornalista e escritor Irineu Franco Perpétuo, tradutor especializado em literatura russa, em entrevista ao TUTAMÉIA dias antes do bicentenário do autor de “Crime e Castigo” e “Os Irmãos Karamázov”, nascido em Moscou em onze de novembro de 1821.

“Os livros de Dostoiévski talvez sejam as melhores reportagens sobre essa Rússia que está se modificando rapidamente. Essa Rússia que, em 1812, expulsou Napoleão e botou suas tropas lá em Paris, numa logística mais impressionante até do que chegar a Berlim em 1945. E aí se descobriu como ator fundamental na história europeia, mas suas classes ilustradas viram que o país estava em grande descompasso com relação à Europa.”

O jornalista segue (clique no vídeo para acompanhar a entrevista completa e se inscreva no TUTAMÉIA TV):

“Mesmo para aquela época, a Rússia vai ser um país atrasado politicamente até 1917, porque vai ser sempre um país autocrático. Nenhum czar russo jurou uma Constituição, era um país sempre sob um poder absoluto e, até os quarenta anos de idade de Dostoiévski, um país sob regime servil. Então esse país agrário, atrasado, que começa a tentar correr atrás para diminuir esse atraso, especialmente na idade adulta de Dostoiévski, especialmente quando tem a derrota humilhante na Guerra da Criméia, final da década de 1850.”

O país então se move: “Essa é a grande caída de ficha da sociedade russa, que estava muito arrogante por ter derrotado napoleão em 1812, não se modernizou e aí chegou a década de 1850. Com a derrota humilhante, cai a ficha na sociedade russa de que algo precisaria acontecer. E o monarca que decretou a guerra, o monarca que mandou Dostoiévski para a Sibéria, Nicolau 1º, morre”.

Sob nova direção, agora com Alexandre 2º, começam reformas importantes na sociedade, vividas também na literatura de Dostoiévski, conta Perpétuo:

“O primeiro grande romance de Dostoiévski é ‘Crime e Castigo’, de 1866. Claro que ele tem outras obras anteriores muito boas, mas ‘Crime e Castigo’ vem muito na esteira de todas essas modificações na sociedade russa. Não só a abolição da servidão, em 1861, que foi um terremoto, obviamente, mas também as reformas no Judiciário, que nos explicam todas as ações de tribunais em “Crime e Castigo”, também em “Os Irmãos Karamázov”. O Dostoiévski era fascinado por esse universo, que ele já tinha visto na Europa, mas na Rússia, na época dele era novidade. Antes da reforma do judiciário em 1864, não tinha nem advogado na Rússia!”

O poder, as leis, a política, até então, estavam nas mãos do czar, que usava de todos os recursos de repressão e censura para manter tudo como estava:

“Toda a literatura russa que a gente lê foi escrita sob censura –só mais recente que não. Na época de Dostoiévski tinha, sim, muita censura, e não tinha a sociedade civil. Só depois de 1905 que o czar concede que tenha algum parlamento, a Duma, e que tenha partido político. Antes disso, não podia ter partido política.”

A produção literária aparece como uma via de escape desses grilhões, aponta Perpétuo:

“Naquela sociedade, em que os grandes debates são interditados, a literatura vira uma outra coisa, vira algo maior, porque ela acaba carreando todos os grandes debates da sociedade civil, que não tinha outra esfera para debater. Por isso os grandes romances, não só de Dostoiévski, Tolstói também e outros autores, são literatura, claro, de altíssimo nível, mas têm política, têm sociologia, têm filosofia, têm religião. No caso de Dostoiévski, ele fica discutindo até questões de administração agrícola, porque era o único lugar que tinha para discutir.”

Até o formato de chegada ao público dessas obras dava a elas mais contemporaneidade: “Essa literatura, antes de sair em livro, saía serializada, em revistas, que eram o meio mais importante de difusão cultural. Tinha essa coisa, então, de estar em contato com o noticiário do dia a dia, de ter de prender o leitor. Então aquela discussão literária que se dá não era só uma discussão literária, era também uma discussão dos grandes temas do país, uma coisa muito visceral.  Acho que foi isso que capturou o público naquela época e captura a gente até hoje: a literatura russa tem toda essa visceralidade porque o que estava em jogo era muito mais do que simplesmente ‘literatura’”.