“Não há democracia com 20 milhões de pessoas que passam fome. Uma democracia de verdade há de passar necessariamente por uma alimentação de verdade. Estamos muito distantes de conseguir isso. Seja pelas deficiências de qualidade na nossa produção, dado o predomínio do agronegócio, seja por questões legais. Existe uma pauta democrática muito ampla em relação à alimentação que começa com a questão da concentração fundiária”.

A avaliação é do sociólogo Carlos Alberto Dória em entrevista ao TUTAMÉIA. Autor de “Formação da Culinária Brasileira” e “A Culinária Caipira na Paulistânia” –reeditados agora pela Editora Fósforo–, ele afirma:

“Com essa estrutura fundiária é muito difícil a convivência entre esses os dois modelos [da agricultura familiar e do agronegócio]. As economias de exportação, às quais o agronegócio se dedica mais e mais, funcionam como enclaves econômicos. São estruturas antagônicas à economia de subsistência, familiar. A fome por terras não cessa. A fome por terras derruba matas, cria conflitos rurais. Enquanto perdurar essa situação, que é essencialmente política, vai se aprofundar o fosso com a agricultura tradicional, de subsistência.

Na entrevista, Dória fala da história da alimentação no Brasil, da importância do milho, da mandioca, do açúcar. Trata do mito da feijoada e da origem do churrasco; de fast food e dos restaurantes a quilo. Debate os malefícios dos ultraprocessados. E aborda temas como agrotóxicos e transgênicos (acompanhe no vídeo acima e se inscreva no TUTAMÉIA TV).

Percorrendo a história da alimentação no país, ele assinada:

“Não tem como esquecer a relação hierárquica entre os portugueses e os negros escravizados e os índios. Evidentemente, a hierarquia da dominação impõe modos de comer. Não existe essa ideia de contribuição do índio, do negro –como se fosse um expediente quase que voluntário. Isso não existe. O que existiu foi uma imposição”.

Sobre a situação atual, ressalta:

“A legislação relativa aos alimentos é totalmente atrelada aos interesses da indústria.  As normas que regem o artesanato são as mesmas do processo industrial. Conheço as queijarias da canastra. É muito difícil para um produtor de queijo artesanal cumprir as regras para laticínios. Porque exige recursos que eles não têm, vigilância, certificações difíceis de serem obtidas. A situação que nós vivemos, de subordinar o pequeno produtor às normas vigentes para a grande indústria, como se fosse normas universais, é um guante no pescoço dos pequenos produtores”.

Ele segue:

“A legislação é calcada não só em modelos da grande indústria, mas também originadas no exterior. Por exemplo, a legislação previne contra a contaminação por uma bactéria muito grave que é a Listeria. É uma bactéria que se propaga com muita facilidade nos climas frios e não nos climas tropicais. Na legislação do queijo artesanal ela está presente, como se fosse um risco iminente, o que não é.

“Esse tipo de subordinação legal à grande indústria é uma das formas principais de desarticulação e desestímulo para uma produção saudável e mais democrática do ponto de vista das propriedades que produzem alimentos. Das várias frentes de luta por um futuro melhor, onde se tenha no mínimo um regime plural de produção, uma é essa da legislação”.