“A democracia no Brasil caiu precipício abaixo. Temos mais militares no governo do que tínhamos durante a ditadura militar, temos um governo que é antigoverno, que tem em cada ministério um ministro responsável por destruir o que ele deveria construir, e temos essa rede de fake News que cria universos paralelos e deslegitima, destrói o poder do quarto poder, que é a imprensa. Temos ainda o Supremo, que equilibra algumas coisas, e o Congresso, que continua com seus problemas endêmicos, com um Centrão fisiológico, mas também tem uma oposição que está fazendo um papel muito importante… Então está sendo segurada a fiapos. Não sei até quando.”

Quem fala é Petra Costa, diretora de “Democracia em Vertigem”, que documenta o processo de derrubada da presidenta Dilma Rousseff e o caminho tomado pelo país deste então, até a eleição de Bolsonaro em 2018. O filme, indicado para o Oscar de melhor documentário do ano passado, e o Brasil, as oposições, a cultura e o mundo das fake news foram assuntos tratados na entrevista que a cineasta concedeu ao TUTAMÉIA nesta segunda-feira, 31 de agosto de 2020, quarto aniversário da votação no Senado que consumou o golpe.

“É meio inacreditável que se passaram quatro anos do golpe. A sensação é que a gente está presa naquele mesmo momento, ao mesmo tempo numa espiral vertiginosa. Desde março de 2016, a vertigem não para”, diz a cineasta (clique no vídeo do alto desta página para ver a entrevista completa e se inscreva no TUTAMÉIA TV).

Ela segue: “É a crônica de uma tragédia anunciada. Todos os elementos que me fizeram querer fazer o “Democracia em Vertigem” estavam tão evidentes na primeira manifestação que eu filmei: ali estava o ovo da serpente do bolsonarismo. Aquelas manifestações a favor do impeachment eram muito mais do que a favor do impeachment: eram, muitas vezes, manifestações contra a democracia, a favor de um estado policialesco, contra a política e a favor de prender todos aqueles que pensem contra os manifestantes.”

O que deságua nos dias de hoje: “A pandemia é uma expressão mais extrema disso, que a gente não imaginava, mas que deixa muito claro o projeto de necropolítica desse governo, um governo que não pensa em proteger a vida de nenhum de seus cidadãos; pelo contrário, facilita a morte de seus cidadãos. É o pior pesadelo que eu poderia imaginar, mas que já estava presente naquela manifestação, que se construiu no golpe que teve seu fecho final no dia 31 de agosto.”

É preciso acordar logo e agir para sair desse pesadelo, diz ela: “O mais urgente continua sendo, apesar das dificuldades que a pandemia impõe, o engajamento popular. Tentar construir uma oposição nas ruas, quando for possível, e trabalho de base. A esquerda era muito boa nisso, nos anos 1980, que era um período semelhantemente tenebroso ao atual, enfim, todas as possibilidades estão aí para construir esse trabalho de base. Falta um ímpeto. Acho que muitas pessoas acordam na época da eleição. A gente precisa acordar um pouco antes e fazer esse trabalho. Falta gente falando com a população, tentando criar diálogo. Espero que, quando a pandemia acabe, muitos sintam e tenham a ação de fazer isso, um trabalho de base vasto.”

Afinal, não dá para esperar um messias salvador: “A sobrevivência da democracia agora vai depender de cada um de nós. Embora os tempos incitem à paralisia, a gente precisa lutar contra essa paralisia e fazer o que está ao nosso alcance para preservar o que resta de nossa democracia e tentar criar novos sonhos para ela”, conclui Petra Costa.

Leia a seguir alguns outros pontos comentados pela cineasta na entrevista.

FAKES NEWS E MÍDIAS SOCIAIS

“Houve durante três ou quatro anos uma campanha tão grande contra a classe política e contra a política em geral, por parte dos meios de comunicação que hoje em dia os políticos estão muito deslegitimados. Também por uma campanha de fake News e de um uso muito estratégico que ele fez do Whats App e das mídias sociais, esses meios de comunicação que estão transmitindo os fatos relativos ao que Bolsonaro não tem feito em relação à pandemia têm menos credibilidade do que tinham antes.

“Os bolsonaristas acreditam que qualquer coisa que saia em qualquer meio de comunicação minimamente é fake News, o que é uma estratégia muito eficiente de desinformação, aliado a essa campanha de desinformação que não para desde a campanha dele.

“No âmbito das mídias sociais, os bolsonaristas criaram uma narrativa própria, que se dissemina muito rapidamente. Já mudou o DNA da sociedade, do eixo que o apoia. Os apoiadores de Bolsonaro, em 2012, provavelmente assistiam ao Jornal Nacional e acreditavam em tudo que estava sendo falado. Hoje eles não acreditam em nada. Talvez eles lessem a Folha de S. Paulo e acreditassem; hoje eles chamam de Foice de São Paulo. Mudou a forma deles de perceber e de gerir cultura. Eles acreditam muito mais no que eles recebem nas linhas de transmissão do Whats App do que no que é publicado nos jornais.

“A gente vive nessa realidade paralela, mundos que não se comunicam. Furar essa bolha é um desafio enorme, não só no Brasil, mas internacionalmente, porque o mundo inteiro está vivendo esse fenômeno, as com sequências nefastas que as redes sociais tem tido nas democracias. Eles criaram um monstro que eles não querem assassinar porque ele dá lucro.”

ELITE SUICIDA

“Acredito que, se for entrevistar os acionistas dessas empresas prejudicadas na Lava Jato, acredito que eles estejam a favor do Bolsonaro ou do Moro até hoje, por uma aliança de classe acima dos próprios interesses específicos, quase num ímpeto suicida.

“A nossa elite tem muito disso, desse ímpeto suicida, de ser a favor de manter seus interesses de classe menos que isso signifique ter menos riqueza. Por um pensamento pequeno. É uma elite que prefere ter um empregado a preço mínimo do que ter um possível comprador do seu produto.  Há um instinto que acaba sendo suicida. Ela acha que está se preservando, mas é no curto prazo.”

PROJETO EM ANDAMENTO

“A gente está fazendo um projeto chamado “Distopia”, que é sobre esse momento atual. A gente tem convidado quem quiser participar para mandar vídeos dos registros individuais dessa pandemia, que a gente vai licenciar –o que foram usados no documentário final.

“Ainda está em fase inicial, mas a princípio é um documentário que explora esse momento atual de crise política, e tem focado muito não no centro do poder, como foi “Democracia em Vertigem”, mas mais nas periferias e como elas têm sobrevivido na falta do Estado. Começou a ser feito durante a pandemia, mas não vai se restringir a ela.”

ADENDO ESPECIAL

TUTAMÉIA publica a seguir a íntegra do discurso da presidenta Dilma Rousseff pronunciado depois da votação no Senado que consumou o golpe contra a democracia no Brasil, em 31 de agosto de 2016.

“Ao cumprimentar o ex-Presidente Luís Inácio Lula da Silva, cumprimento todos os senadoras e senadores, deputadas e deputados, presidentes de partido, as lideranças dos movimentos sociais. Mulheres e homens de meu País.

Hoje, o Senado Federal tomou uma decisão que entra para a história das grandes injustiças. Os senadores que votaram pelo impeachment escolheram rasgar a Constituição Federal. Decidiram pela interrupção do mandato de uma Presidenta que não cometeu crime de responsabilidade. Condenaram uma inocente e consumaram um golpe parlamentar.

Com a aprovação do meu afastamento definitivo, políticos que buscam desesperadamente escapar do braço da Justiça tomarão o poder unidos aos derrotados nas últimas quatro eleições. Não ascendem ao governo pelo voto direto, como eu e Lula fizemos em 2002, 2006, 2010 e 2014. Apropriam-se do poder por meio de um golpe de Estado.

É o segundo golpe de estado que enfrento na vida. O primeiro, o golpe militar, apoiado na truculência das armas, da repressão e da tortura, me atingiu quando era uma jovem militante. O segundo, o golpe parlamentar desfechado hoje por meio de uma farsa jurídica, me derruba do cargo para o qual fui eleita pelo povo.

É uma inequívoca eleição indireta, em que 61 senadores substituem a vontade expressa por 54,5 milhões de votos. É uma fraude, contra a qual ainda vamos recorrer em todas as instâncias possíveis.

Causa espanto que a maior ação contra a corrupção da nossa história, propiciada por ações desenvolvidas e leis criadas a partir de 2003 e aprofundadas em meu governo, leve justamente ao poder um grupo de corruptos investigados.

O projeto nacional progressista, inclusivo e democrático que represento está sendo interrompido por uma poderosa força conservadora e reacionária, com o apoio de uma imprensa facciosa e venal. Vão capturar as instituições do Estado para colocá-las a serviço do mais radical liberalismo econômico e do retrocesso social.

Acabam de derrubar a primeira mulher presidenta do Brasil, sem que haja qualquer justificativa constitucional para este impeachment.

Mas o golpe não foi cometido apenas contra mim e contra o meu partido. Isto foi apenas o começo. O golpe vai atingir indistintamente qualquer organização política progressista e democrática.

O golpe é contra os movimentos sociais e sindicais e contra os que lutam por direitos em todas as suas acepções: direito ao trabalho e à proteção de leis trabalhistas; direito a uma aposentadoria justa; direito à moradia e à terra; direito à educação, à saúde e à cultura; direito aos jovens de protagonizarem sua história; direitos dos negros, dos indígenas, da população LGBT, das mulheres; direito de se manifestar sem ser reprimido.

O golpe é contra o povo e contra a Nação. O golpe é misógino. O golpe é homofóbico. O golpe é racista. É a imposição da cultura da intolerância, do preconceito, da violência.
Peço às brasileiras e aos brasileiros que me ouçam. Falo aos mais de 54 milhões que votaram em mim em 2014. Falo aos 110 milhões que avalizaram a eleição direta como forma de escolha dos presidentes.

Falo principalmente aos brasileiros que, durante meu governo, superaram a miséria, realizaram o sonho da casa própria, começaram a receber atendimento médico, entraram na universidade e deixaram de ser invisíveis aos olhos da Nação, passando a ter direitos que sempre lhes foram negados.

A descrença e a mágoa que nos atingem em momentos como esse são péssimas conselheiras. Não desistam da luta.

Ouçam bem: eles pensam que nos venceram, mas estão enganados. Sei que todos vamos lutar. Haverá contra eles a mais firme, incansável e enérgica oposição que um governo golpista pode sofrer.

Quando o Presidente Lula foi eleito pela primeira vez, em 2003, chegamos ao governo cantando juntos que ninguém devia ter medo de ser feliz. Por mais de 13 anos, realizamos com sucesso um projeto que promoveu a maior inclusão social e redução de desigualdades da história de nosso País.

Esta história não acaba assim. Estou certa que a interrupção deste processo pelo golpe de estado não é definitiva. Nós voltaremos. Voltaremos para continuar nossa jornada rumo a um Brasil em que o povo é soberano.

Espero que saibamos nos unir em defesa de causas comuns a todos os progressistas, independentemente de filiação partidária ou posição política. Proponho que lutemos, todos juntos, contra o retrocesso, contra a agenda conservadora, contra a extinção de direitos, pela soberania nacional e pelo restabelecimento pleno da democracia.

Saio da Presidência como entrei: sem ter incorrido em qualquer ato ilícito; sem ter traído qualquer de meus compromissos; com dignidade e carregando no peito o mesmo amor e admiração pelas brasileiras e brasileiros e a mesma vontade de continuar lutando pelo Brasil.

Eu vivi a minha verdade. Dei o melhor de minha capacidade. Não fugi de minhas responsabilidades. Me emocionei com o sofrimento humano, me comovi na luta contra a miséria e a fome, combati a desigualdade.

Travei bons combates. Perdi alguns, venci muitos e, neste momento, me inspiro em Darcy Ribeiro para dizer: não gostaria de estar no lugar dos que se julgam vencedores. A história será implacável com eles.

Às mulheres brasileiras, que me cobriram de flores e de carinho, peço que acreditem que vocês podem. As futuras gerações de brasileiras saberão que, na primeira vez que uma mulher assumiu a Presidência do Brasil, a machismo e a misoginia mostraram suas feias faces. Abrimos um caminho de mão única em direção à igualdade de gênero. Nada nos fará recuar.

Neste momento, não direi adeus a vocês. Tenho certeza de que posso dizer “até daqui a pouco”.

Encerro compartilhando com vocês um belíssimo alento do poeta russo Maiakovski:

“Não estamos alegres, é certo,
Mas também por que razão haveríamos de ficar tristes?
O mar da história é agitado
As ameaças e as guerras, haveremos de atravessá-las,
Rompê-las ao meio,
Cortando-as como uma quilha corta.”

Um carinhoso abraço a todo povo brasileiro, que compartilha comigo a crença na democracia e o sonho da justiça.”