Conheci o Aquiles assim, ao vivo, de carne e osso e uma noite lá pela segunda metade da década de 1970, no meio da ditadura militar.

Não sabia direito quem era ele, não conseguia identifica-lo lá de longe, no palco montado em um ginásio de esportes em Porto Alegre.

Era Chico, o Buarque, quem brilhava. Os outros eram o MPB-4, Ruy, Aquiles, Miltinho, Magro, pareciam a nós, do público, uma mesma pessoa, uma conjuminância de vozes.

Naquela noite, o som deles foi obrigado a falar mais alto. No meio do show, que acompanhávamos tanto pelo prazer musical quanto pelo tanto de revolta e de protesto que significava, no meio do show a luz apagou, os alto-falantes se calaram, os microfones murcharam.

A memória me falha, mas uma lembrança esquálida, talvez recriada, reconstruída, me diz que, na hora azada do apagão –golpe?, trapaça dos esbirros da ditadura?–, eles cantavam “Pesadelo”, um hino à resistência: “Você corta um verso, eu escrevo outro (…) de repente, olha eu de novo, perturbando a paz, exigindo troco…”

Cantamos todos, nas arquibancadas nós, os artistas no palco, nossos pulmões iluminando o ginásio até que novamente se fizesse a luz. O MPB4 se transformou ali, para o adolescente que eu era, em voz mítica de protesto e de esperança.

Para mim, Aquiles só saiu do palco e entrou na vida real quarenta anos mais tarde, quando 2016 mal começava a nascer. Naquele janeiro, completavam-se quarenta anos do assassinato do operário metalúrgico Manoel Fiel Filho nas câmaras de tortura da ditadura militar.

Corredor que sou, decidi homenagear a memória de Manoel com quarenta corridas por percursos que lembrassem sua trajetória e a luta pela democracia. A primeira jornada partiu da sede do Sindicato dos Metalúrgicos de São Paulo.

Quase sem esperar sequer ouvir uma resposta, convidei Aquiles para participar. E ele apareceu no dia e na hora, engrossando a turma do protesto, da luta pelo direito à memória, à verdade e à justiça.

Desde então, voltamos a nos falar algumas vezes. Fiz entrevistas com ele (a foto do alto foi feita por mim na casa dele, na zona sul de São Paulo), como a que você pode ler CLICANDO AQUI. Aliás, aqui no TUTAMÉIA também tem conversas com o MPB4 (CLIQUE AQUI).

Passei a acompanhar os trabalhos não musicais de Aquiles, que já há bastante tempo vem se dedicando também à escrita, produzindo colunas políticas e de opinião sobre a vida quotidiana. Nos últimos anos, afinou sua mira e aprumou o rumo de seus escritos, concentrando o trabalho na produção de resenhas de CDs.

Semana após semana, escreve sobre a arte de colegas músicas, e suas crônicas são publicadas em veículos pelo Brasil afora. Agora, chegam ao TUTAMÉIA, que, com muita satisfação, passa a publicar a Coluna do Aquiles, com a devida autorização do autor, a quem agradecemos.

Antes de lhe entregar o texto de Aquiles, segue uma breve entrevista com o artista:

TUTAMÉIA – Quando você descobriu que gostava de escrever, escrevia bem e queria mandar suas ideias para o público?

AQUILES – Eu já passava dos 50 anos quando saquei que uma chama acendeu na minha cachola. Comecei a escrever. Logo veio a vontade de que mais gente lesse o que eu escrevia. Foi um tempo em que escrevi crônicas e atualidades políticas. A essa altura, alguns jornais já publicavam o que eu escrevia. Mas foi de uns quinze anos para cá que eu descobri que poderia fazer alguma coisa que, de fato, fosse importante para mim e para os músicos, de quem passei a resenhar seus CDs recém-lançados. Isso tem me dado muita satisfação, pois me dedico a essa atividade com o mesmo empenho que me dou ao MPB4.

TUTAMÉIA – Você já tinha uma coluna de política/opinião antes da atual. Como era, o que era e por que/quando morreu?

AQUILES – Pois é. Como sou muito crítico com as coisas que faço, logo percebi que o que eu escrevia estava mais para a seção de cartas do leitor do que de uma coluna que era escrita a partir de fatos noticiados pelos jornais impressos. Deixei de lado.

TUTAMÉIA – Você tem outros planos para seus escritos? Livro?

AQUILES – Em 2003 lancei um livro (“O Gogó de Aquiles” – Editora Girafa) com textos publicados em minha coluna da, digamos, primeira fase do meu escrever. Nele eu revi um pouco da minha trajetória, desde a infância até o MPB4, cuja trajetória está fortemente ligada à minha vida — quando o MPB4 se tornou profissional em 1965, eu tinha 17 anos.

Mas o meu sonho recorrente é imaginar que algum dia a minha coluna fosse publicada num dos jornalões: Folha de S. Paulo, Estadão ou Globo. Só que seria legal que esse desejo se concretizasse rápido — afinal, não tenho mais “todo o tempo do mundo”, pelo contrário. Hehehe.

Sonho com o tempo em que a coluna abrangeria um maior universo de leitores. Coluna na qual eu privilegio os independentes, a música instrumental e os veteranos, aos quais a não se costuma dar grandes espaços. Os leitores de um desses três jornalões passariam a ter acesso à produção dos que fazem a música popular brasileira (ainda) ser a melhor do mundo, graças à sua diversidade.

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Dito isso, segue agora a primeira COLUNA DO AQUILES aqui no TUTAMÉIA.

A ETERNA ARACY DE ALMEIDA

Por Aquiles Rique Reis, vocalista do MPB4

Hoje conversaremos sobre o CD “Aracy de Almeida – A Rainha dos Parangolés” (Acari Records), uma sincera homenagem prestada pelo cantor Marcos Sacramento e pelo violonista Luiz Flavio Alcofra a Aracy de Almeida.

O álbum é fruto de um projeto encomendado pelo SESC Belenzinho a Hermínio Bello de Carvalho em 2014 – um espetáculo comemorativo do centenário de nascimento de sua grande amiga Aracy de Almeida –, evento que ele roteirizou e dirigiu.

Lembro: o Teatro Opinião, no final de 1965, tenta lançar Brasil Pede Passagem, logo proibida pela censura. Para substituí-la, foi criado o show musical Samba Pede Passagem.

Junto com Aracy de Almeida, Ismael Silva, Baden Powell, Regional do Canhoto (cavaquinho), Dino (violão de 7 cordas), Meira (violão) e Gílson de Freitas (pandeiro), Carlos Poyares (flauta), o Conjunto Samba Autêntico (Tiana, Edgar Barbosa, Bilú, Hélio Cabral, Sidoca e João Laurindo), o Grupo Mensagem (Soninha Ferreira, Sidney Miller, Paulo Thiago, Luis Carlos Sá e Marco Antônio) e o Grupo Partido Alto (Padeirinho, Jorge Zagaia, Leléu da Mangueira e Bidi), lá estava o MPB4.

Convivendo com esses monstros, o que muito me honrava e ampliava meus horizontes musicais, conheci Hermínio Bello de Carvalho – desde então, admiro-o muito.

Emocionado, convido-os a dividir comigo a magia de um CD que joga luz sobre Aracy de Almeida, a “Arquiduquesa do Encantado” (como Hermínio carinhosamente também a chama), uma das maiores cantoras brasileiras.

Admiro Marcos Sacramento por incorporar a alma de Aracy. Grande cantor que é, suas divisões rítmicas atestam o respeito pela cantora que sempre primou pelo jeito esperto de “dividir” os sambas. Encarnar o espirito libertário do cantar de Aracy de Almeida faz dele um ainda melhor cantor.

Admiro Luiz Flavio Alcofra e seu violão, de som límpido e virtuoso, com o qual brilha nas dezoito músicas escolhidas a dedo do repertório de Aracy. Aprecio, e muito, seus bordões, seus fraseados, suas harmonias. Todo sentimento, todo reverência, tudo vem de seus dedos no violão.

Dentre outras músicas, admiro os dois pela interpretação emocionada de “Triste Cuíca” (Noel Rosa e Hervé Cordovil), “O Orvalho Vem Caindo” (Noel e Kid Pepe), “Engomadinho” (Pedro Caetano e Claudionor Cruz) e “Adeus, Adeus” (Noel, Ismael Silva e Francisco Alves). Também por “Filosofia” (Noel e André Filho), “Camisa Amarela” (Ari Barroso) e “Louco – Ela é seu mundo” (Wilson Batista e Henrique de Almeida), cujas divisões de Sacramento não só Aracy aplaudiria como dividiria de maneira parecida, e, por fim, pelos comoventes “Último Desejo” (Vadico e Noel) e “Tem Pena de Mim (Hervé Cordovil). Em todas ouve-se o desejo de demonstrar o que Hermínio lhes pediu: tocar a grandeza de Aracy de Almeida.

Ouvindo a linda homenagem prestada a ela por Hermínio, Marcos e Luiz, sinto um imenso carinho por eles.

E a todos os que aqui citei, desde os que já se foram até os que ainda hoje fazem da música seu ofício, o meu respeito.