“A democracia, tal como se organizou aqui, tem a sua parafernália simbólica. Basta pensar em Brasília, basta pensar em uma série de práticas a que a gente se acostumou aqui que visibilizam o poder e visibilizam princípios e valores que são fundamentais à sobrevivência da democracia. Ao romper com isso, Bolsonaro sinaliza uma incapacidade, um desprezo profundo pelo cargo. Quando ele fala baixo calão e quando faz um discurso totalmente faccioso, como se ainda tivesse disputando o poder, ele também está em contradição com a função dele, com o papel que ele deveria corporificar porque, uma vez eleito, o presidente da República governa para todos. Há uma contradição entre estar no cargo de presidente e insistir em mostrar que você é o indivíduo Jair Bolsonaro, e não o presidente. Ou seja, a recusa ao papel no centro do poder, em pleno Palácio da Alvorada, empossado.”

São reflexões de Luciana Villas Bôas, professora na UFRJ e mestre pela Universidade de Columbia, falando ao TUTAMÉIA sobre o livro que acaba de lançar, “A República de Chinelos – Bolsonaro e o Desmonte da Representação” em que analisa as relações entre o público e o privado nas ações e nas falas do presidente. O trabalho busca encontrar resposta para a pergunta que é colocado logo nas primeiras páginas do livro publicado pela Editora 34:

“O que o presidente de chinelos no Palácio da Alvorada, filmado na área de serviço, ou fazendo pronunciamentos em baixo calão está ‘representando’? O que está deixando de representar?”

Na entrevista (clique no vídeo acima para acompanhar a íntegra e se inscreva no TUTAMÉIA TV), ela afirma:

“Tanto os chinelos quanto a área de serviço quanto a ineloquência do palavrão são uma recusa a entrar no papel, a vestir o papel da Presidência da República, ou seja, é uma recusa a governar para todos. Uma vez ocupando o cargo, essa função não diz respeito só aos seus seguidores, mas a todos os cidadãos. Então o chinelo, a praça e o palavrão comprometem a comunicabilidade do poder e são, cada um a seu modo, uma aversão à praça, ao visível, ao aberto a todos, no sentido real e imaginário. Portanto, a gente pode pensar que é uma recusa ao que talvez seja a tarefa mais importante da democracia, que é abrir espaços e manter espaços abertos.”

Villas Bôas entende que, longe de significar uma aproximação com o povo, as encenações de Bolsonaro, seja na forma como ele se apresenta, seja nas conversas no chamado “chiqueirinho” em frente ao palácio presidencial, sinalizam exatamente o seu oposto:

“Há um sistemático ataque aos espaços democráticos, à concepção de democracia, ao que é democracia. Essa confusão que o Bolsonaro produz é na verdade uma adesão a práticas que são manipulatórias e que invisibilizam formas de controle nas estruturas de comunicação.”

Para exemplificar isso, a professora lembrando a cena do comício na avenida Paulista, em que Bolsonaro aparece em um vídeo filmado em uma área de serviço: “Ele só quer falar com os iguais. O meio digital é uma faca e queijo para isso: para o embolhamento, para o estilhaçamento do âmbito público, da circulação, da pluralidade. É a recusa à praça não só no sentido real, mas no sentido de tudo o que ela simboliza e que é central a tudo o que a gente imagina como democracia. Não há democracia sem praça, nesse sentido que a gente imagina, do aberto, do plural. Ele corporifica essa ideologia que enxerga no algoritmo a eliminação da democracia, da esfera do público.”

O mesmo vale para as falas de Bolsonaro, sempre em tom violento e eivadas de palavras de baixo calão:

“Faz parte do convívio com as diferenças ter civilidade, e isso se traduz pela linguagem. Eu posso pensar o que quiser em relação às diferenças, mas eu não posso, na rua, no público, fazer disso um vomitório, que é o que acontece com o atual ocupante [da Presidência da República]. Eu tenho de usar um hábito da civilidade, que é o vernáculo coloquial, mais ou menos formal, enfim. Isso é também um traço muito chocante. E isso não se reduz ao palavrão, o palavrão está ligado a muita coisa. Está ligado à possibilidade de você fazer declarações que vão contra princípios os mais fundamentais do Estado de direito sem qualquer sanção. Defender a tortura está ligado a isso.”