“Para os povos originários do Brasil, não houve um momento mais perigoso do que esse. Porque o que aí está é uma política pensada, estruturada e introduzida dentro do governo, utilizando a máquina governamental para uma política contrária aos povos indígenas. A Funai hoje é uma coisa ridícula, absolutamente contrária aos povos indígenas. Não demarca mais terra porque o chefe maior não quer. Essa política é a pior, porque ela ocupou o espaço governamental, o espaço que era para a defesa dos povos indígenas foi ocupado. A Funai se porta hoje de forma contrária aos interesses dos índios. Essa é a época pior. Essa política é extremamente perigosa contra os povos que nos devíamos respeitar e auxiliar”.
A avaliação é do indigenista Sydney Possuelo, 81, ao TUTAMÉIA. Ex-presidente da Funai (1991-1993), ele é um dos maiores especialistas em indígenas isolados. Construiu sua história de vida fazendo dezenas de expedições para o interior mais remoto do país e conhecendo em profundidade o cotidiano dos povos originários.
No último dia 17 de março, Possuelo devolveu ao Estado brasileiro da Justiça a medalha do mérito indigenista que recebeu há 35 anos. Foi um protesto contra o fato de Bolsonaro ter recebido a mesma comenda. Ele conta:
“Fiquei absolutamente estarrecido, boquiaberto. Como você pode entregar para o algoz e transformá-lo em herói, em um homem que defende os povos indígenas? Que coisa absurda! Havia recebido a minha medalha há 35 anos. Ela fazia parte de uma coleção de várias outras medalhas que eu tenho, da Inglaterra, da Espanha, da França, sul-americanas. Eu tinha por essa medalha uma estima muito maior. Fiquei pasmo quando soube que o senhor Bolsonaro havia recebido. Parece que essa medalha começou a se desfazer. Na imagem que eu faço, a medalha estava se derretendo, derreteu, perdeu a razão de ser. Como que você vai dar para o algoz essa medalha? Não pode! É uma ofensa direta aos povos indígenas. É uma ofensa terrível. É uma falta de respeito aos princípios que estão escritos na própria medalha, na lei que criou essa medalha. Ele outorgou a medalha a si mesmo! São coisas que estavam absolutamente ao revés das questões éticas, da moralidade, da decência. Isso me revoltou. Eu falei: já não posso mais ficar com essa medalha, pois ela não tem mais o peso e o valor que tinha quando estava intacta. Esse foi o motivo que me fez devolver. Acho que nós temos sentimentos. Há certas coisas que um ser humano não pode levar para casa. Temos que ter uma certa moralidade, uma certa posição no mundo. Eu não poderia ficar mais com aquela medalha”.
Nesta entrevista, ele fala de sua trajetória, iniciada aos dezesseis anos em busca de aventura, indo e voltando vezes sem conta à casa da família Villas-Bôas em São Paulo até ser recebido por um dos irmãos pioneiros do indigenismo no Brasil.
Responsável pelo contato com sete etnias de povos indígenas isolados e atuante em inúmeros processos de demarcação ao longo de décadas, Possuelo lembra na entrevista algumas das experiências que vivenciou nos contatos com os índios. Trata também da evolução das políticas do Estado em relação aos povos indígenas, do avanço do agronegócio, da mineração e das madeireiras sobre os territórios; e expressa sua indignação sobre o processo atual (acompanhe a íntegra da conversa no vídeo e se inscreva no TUTAMÉIA TV).
“Hoje, em 2022, nós deveríamos ter mais princípios éticos. Parece que está tudo ruindo dentro desse país, em todo o governo, no executivo, no legislativo, no judiciário. Na própria sociedade. Nós, como povo, estamos metidos nessa falta de ética também”, desabafa.
“Apesar desses 522 anos de história, nós permanecemos até hoje em um eterno confronto entre o homem branco e o índio. Antigamente, o confronto era basicamente físico. Arco e flecha contra arcabuz. Isso ficou na história, mas desenvolvemos uma forma talvez tão agressiva ou pior que o bacamarte. Que é essa forma de estrangular as sociedades indígenas através da diminuição permanente dos seus territórios. As fazendas vão chegando, as estradas vão pressionando, as hidrelétricas então cada vez mais no território onde eles habitavam”.
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