Gritos de “Fora Bolsonaro!” marcaram o início da celebração do Dia de Clarice, homenagem realizada em Paris na data do aniversário do nascimento da grande escritora brasileira nascida na Ucrânia. Também teve leitura de contos, poesia e performances artísticas na comemoração no Espace des Femmes – Antoinette Fouque, área de eventos da Éditions des Femmes-Antoinette Fouque, que edita a obra da autora em francês.
A politização do evento é mais do que justificada, avalia a ensaísta Izabella Borges, que traduziu “A Mulher Que Matou os Peixes”, título infanto-juvenil de Clarice Lispector, um dos lançamentos feitos na comemoração –o outro foi “Correspondência” (em francês, “Correspondance” e “La femme qui a tué les poissons”):
“Lendo Clarice, quando a gente lê Clarice, a gente sente na pele esse exílio cultural, intelectual, no qual a gente é obrigado a viver diante dessa monstruosidade que está sendo o poder nas mãos de gente tão incapaz, tão necrófila”, afirma ela sobre a situação.
Em entrevista ao TUTAMÉIA logo depois do lançamento, na última sexta-feira, 10 de dezembro, quando Lispector faria 101 anos, a premiada tradutora comentou o trabalho de levar o texto clariceano para o francês:
“Clarice Lispector é um universo. Fico muito contente de ter traduzido, muito honrada, muito contente por estar tão próxima assim da obra de alguém que me iluminou, esse clarão Clarice que me iluminou já na adolescência, principalmente com “A Hora da Estrela”, que eu li bastante jovem, e depois o resto da obra.”
E segue (clique no vídeo para acompanhar a entrevista completa e se inscreva no TUTAMÉIA TV):
“Traduzir Clarice Lispector, eu tive até tremores. Foram dois contos infanto-juvenis. Eu fico sempre muito atenta. Fico sonhando com as histórias, leio e releio, fico tentando ver como elas me impactam, como é que eu sinto. O tradutor mergulha entre as linhas para ver o que está no fundo, o que está atrás. Não foi fácil, nunca é fácil traduzir. Um desafio danado. Para mim, a tradução tem todo um processo de vida, não são só palavras.”
Sobre o outro título, “Correspondance”, ela diz: “A editora teve acesso a inúmeras cartas inéditas, retraduziu e publicou a totalidade, acredito que temos a totalidade da correspondência de Clarice, que é de uma força incrível, porque é absolutamente fabuloso como Clarice Lispector consegue passar do cotidiano, da imagem de mãe com os filhos, o que ela comeu, de como trabalha, de quanto ganha, do que veste, a uma correspondência afetuosa com as irmãs e com os amigos, a uma consciência da escrita, do trabalho dela, da importância de cada vírgula, de cada ponto, de cada palavra que ela utiliza. [Há] um certo sofrimento também, essa dedicação absolutamente exclusiva, essa vida dedicada à escrita, essa vida dedicada à escrita da alma humana, de como Clarice diz, sabe, entende que a realidade é bem mais do que os atos, acontecimentos, mas é também o que esses atos e acontecimentos causam na vida humana, e de que forma ela expõe essa realidade dos sentimentos, dos acontecimentos em cima da coisa humana”.
O que talvez explique o interesse internacional sobre a obra de Clarice Lispector, que é a escritora brasileira mais traduzida –é possível encontrar seus livros em mais de trinta idiomas. Borges comenta:
“Por que Clarice é tão traduzida no mundo inteiro? Porque ela é uma imensa escritora. Como é que a gente pode reunir numa mesma pessoa, numa mesma obra, ficção, filosofia, antropologia, poesia? Isso é Clarice Lispector. Os editores, os tradutores são sempre muito atentos a obras únicas, como é a da Clarice Lispector, uma obra enorme para uma mulher que faleceu com 57 anos, morreu um dia antes de completar 57 anos. Os editores, os tradutores estão sempre muito atentos a obras únicas, que possam carregar em si um universalismo filosófico, que permite ao leitor descobrir em si novos universos, perceber uma certa completude, indo na direção da abertura de novos universos dentro de si próprio, que ele não conhecia. Isso, para mim, é Clarice Lispector.”
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