“Espero estar enganado, mas não vejo em parte dos setores progressistas o desejo de reverter o que aconteceu nos governos Temer e Bolsonaro: retomar o que foi privatizado e renacionalizar. Parece que estão mais preocupados em agradar os chamados mercados do que em atender ao interesse da maioria da população. A tendência forte é dizer: ‘O que já foi, foi; paciência, vamos tocar para a frente’. Só que tem um problema. A destruição foi tamanha que não é possível retomar o desenvolvimento do país sem renacionalizar vários desses setores. Não dá para desenvolver o país sem garantia de energia, sem o país ter o controle sobre o petróleo e o gás natural, sem ter o controle sobre as águas. Não dá para desenvolver o país sem investimento em infraestrutura. Vai ter que retomar mais cedo ou mais tarde. Quer as pessoas gostem ou não gostem da ideia”.
A afirmação é do advogado Gilberto Bercovici ao TUTAMÉIA. Professor titular de direito econômico e economia política da Faculdade de Direito da USP, ele ressalta:
“A esquerda tem que entender isso. O tema da soberania nacional, da soberania sobre os recursos estratégicos é um tema chave do Brasil, um país que tem tantas riquezas, tantas potencialidades. Ele vai voltar para o centro do debate político. Se não vier pela esquerda, vai vir pela direita, o que é pior. É o que está acontecendo em alguns lugares da Europa. Esse discurso está sendo retomado por setores conservadores. E a esquerda vai ficar olhando. A esquerda tem que voltar a pensar na questão nacional. Não dá para fingir que ela não existe”.
Bercovici está lançando –com José Augusto Fontoura da Costa, professor de direito do comércio internacional da USP—um livro precioso para o debate dessas questões: “Nacionalização, Necessidade e Possibilidades”. Nesta entrevista (acompanhe a íntegra no vídeo e se inscreva no TUTAMÉIA TV), ele trata dos principais pontos da obra, mostra as aberrações do processo de privatização, aponta seus os danos para o país, faz críticas aos progressistas e conclama à ação:
“Hoje parece que é uma ideia maldita. A gente parece que fala para poucos. Mas, na verdade, é uma necessidade. São setores estratégicos que vão ter que ser, mais cedo ou mais tarde, retomados e renacionalizados. Mas hoje, toda a vez que surge a questão da soberania nacional, vem alguém do setor progressista e fala: ‘Não dá, não tem como, esquece, isso é só confusão’. Aí eu pergunto: se é para fazer a mesma política econômica do Bolsonaro ou do Temer então está se candidatando para quê? Para não mudar, para não reverter, para não reconstruir o país? Por que é candidato? É só arte pela arte, o poder pelo poder? Não faz sentido isso. Tem que haver uma pressão mesmo, dos setores progressistas, da população em geral pela renacionalização, para que isso seja incorporado nos programas eleitorais”.
Segue Bercovici:
“Isso tem que ser dito. Não dá para os candidatos ditos progressistas não tocarem no assunto e fingirem que isso não existe. Tem que falar. Eu vou fazer ou eu não vou fazer. Até para gente saber em quem está votando. Vai revogar a reforma trabalhista? Vai revogar a reforma da previdência? Vai rever a autonomia do Banco Central? Vai reestatizar ou renacionalizar o que foi privatizado? Vai reconstruir a infraestrutura do país? Ou não vai? Não adianta ficar falando só platitudes. ‘Ah, era todo mundo feliz, agora não é mais’. Desculpa, não dá para ficar só nisso”.
O professor da USP coloca o debate da soberania na complexa conjuntura para o ano que vem:
“Realmente, queremos nos livrar do fascismo. É óbvio que, para nos livrarmos desse protofascista, vamos tentar obter um candidato que o vença, independentemente de qualquer coisa. O mais importante é tirar ele. Mas não é só isso. Tem que ter um projeto de país. Tem que pensar em qual vai ser o futuro. Vamos reindustrializar, ou não vamos? Vamos manter o país como sendo uma grande fazenda de soja, uma grande mina de ferro para vender para a China –e tudo bem?”.
Bercovici lembra que os EUA, não importa o partido que esteja no poder, defendem os seus interesses de Estado. O mesmo vale para a China, a Rússia, a Índia. No Brasil, é diferente:
“No Brasil, parece que atender ao interesse do Estado ou ao interesse geral é algo fora de moda, do tempo. Dizem: ‘Para quê? Deixa assim, vamos tocando. Quem sabe um dia resolve’. Não pode ser assim. Um país do tamanho do Brasil não pode se dar ao luxo de não ter o controle de seus setores estratégicos. Tanto eles interessam a todos que estão vindo aqui pegar. Compram a preço de banana. Só nós não nos interessamos. Só nós abrimos mão do controle da energia, do petróleo, da logística, do crédito público”.
SEM GUERRA, A DESTRUIÇÃO DA ECONOMIA
Segue o professor:
“O BNDES foi destruído. Era quem financiava a industrialização do país. Nós abrimos mão de ter um projeto de industrialização. Tínhamos um parque industrial extremamente avançado. Nós fabricávamos de alfinete a satélite. Foi dizimado! Sem ter uma guerra. Acho que é o único país em paz que destruiu sua própria economia. Conseguiu fazer essa proeza. Nem a Argentina, com Menem e o corralito com o [Domingo] Cavallo. Nem a Argentina conseguiu fazer um estrago tão grande! Nem o Chile do Pinochet. O cobre ficou na mão do Estado. O Pinochet era liberal, mas não era bobo”.
Na conversa com TUTAMÉIA, Bercovici lembra das encampações de Leonel Brizola, da nacionalização na Bolívia, dos movimentos de reestatização de serviços em vários países.
“Vivemos num momento de retomada desses ativos e desses bens em muitos lugares. No Brasil, o que acontece, infelizmente, é que há uma série de setores que se beneficiaram da privatização. No mundo jurídico, vários escritórios cresceram com as privatizações. As consultorias econômicas, os bancos e grupos de comunicação se beneficiaram. Tem uma série de interesses que seriam contrariados numa eventual reestatização e renacionalização. A mídia fica batendo nessa tecla: ‘Não pode, não tem como’.
Continua Bercovici:
“Em setores progressistas, há um tipo de argumentação que não faz sentido. Tem gente que diz que não pode renacionalizar porque seria uma quebra de contrato. Em primeiro lugar, a privatização é uma quebra de contrato. Os contratos eram com uma empresa pública, uma empresa estatal e, de repente, mudaram, foram quebrados”.
E mais:
“Mas quem fala isso não sabe o que é um contrato. Contrato é um instrumento dinâmico que regula uma relação patrimonial. Não é uma cláusula pétrea de organização do Estado. Como em qualquer relação patrimonial, ela pode ser modificada ou extinta a qualquer tempo. E vai ser resolvida na esfera patrimonial. Se reestatizar um setor vai ter gritadeira? Vai. Vão espernear, gritar. Mas é só isso. É como uma desapropriação. O governo vai desapropriar aquele bem, vai retomar aquele bem e vai pagar uma indenização”.
Como exemplo, Bercovici rememora o processo recente da YPF argentina. A petroleira, criada em 1922, foi a primeira estatal do setor. Foi privatizada no governo Carlos Menem (1989-1999), tendo a espanhola Repsol como acionista majoritária.
“A Cristina Kirchner reestatizou [em 2012] e a Repsol reclamou, xingou, foi lá no jornal. O Clarín fazia terrorismo, falava em sanções da União Europeia. Não aconteceu nada disso. Foram obrigados a conversar e acertaram a indenização”.
Bercovici acentua:
“A gente tem que sair desse medo que existe em alguns meios progressistas, de achar vamos nacionalizar e então vai baixar aqui o porta-aviões americano, os marines, que vão nos invadir.”
PIRATAS E LEGITIMAÇÃO DA FRAUDE
No livro e na entrevista, Bercovici ressalta o fato de a população não ter sido consultada sobre as privatizações:
“Simplesmente foi se vendendo, dilapidando o patrimônio –e de uma maneira cada vez pior Eu brinco que na época do FHC éramos colonizados pela companhia das índias. Eles vinham aqui saquear, pilhar nossas riquezas, mas tinha uma certa ordem; eles tinham um modelo a seguir”.
“Agora, a partir do Temer e no governo Bolsonaro, são simplesmente piratas que chegam aqui para pilhar o que sobrou do butim. Não tem organização nenhuma. Eles não respeitam nem a legislação de privatização que foi feita na época do FHC. Naquela legislação, pelo menos na aparência, tinha algo mais organizado: a privatização precisava ser feita por um procedimento de concorrência pública, um leilão. Agora, não mais. Eles simplesmente acertam o negócio e vendem. A venda da refinaria Landulpho Alves foi feita sem nenhum procedimento licitatório; simplesmente acertaram com o fundo árabe, por um preço abaixo do estimado pelo mercado, e venderam”.
Bercovici critica a decisão de esquartejar a Petrobras, autorizada pelo STF:
“Vai se esvaziando a empresa, tirando pedaços dela sem nenhum tipo de controle, sem nenhum tipo de limitação. Isso, perdoem os ministros do Supremo, é uma legitimação da fraude. Isso é uma fraude e todo mundo sabe que é uma fraude. Tem uma maioria ali no Supremo que tem uma visão de mundo que não é bem a da Constituição de 1988. E estão reescrevendo a Constituição para torná-la uma constituição liberal. Ela pode ser muitas coisas, mas liberal ela não é”.
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