“Lamarca, se estivesse aqui hoje, ia ter uma contribuição muito grande para enfrentar esse momento que estamos vivendo. Um sujeito destemido, convicto, honesto, com capacidade de liderança. Eu gostaria de tê-lo aqui entre nós para poder enfrentar essa tristeza que a gente enfrenta hoje. Lamarca é um símbolo contra essa gente. Ele é um símbolo e apontou para gente o caminho de como se deveria enfrentar essa turma que hoje faz essas barbaridades aqui no país. Esse ódio [da extrema direita] é pelo símbolo que ele representa. Ele é o oposto totalmente dessa turma que está aí. O fascismo é assim. Na mente deles, não existem as palavras compaixão, amor. Só existe a ideia de impor, de explorar as pessoas, de matar. Lamarca é um símbolo que eles vão ter que engolir porque um dia nós vamos resgatar essa memória com mais força. A gente vai poder lembrar de Lamarca, de Zequinha e dos outros companheiros como os verdadeiros heróis que foram, e não esses falsos heróis que hoje nos oprimem e posam de heróis”.

É o que afirma João Lopes Salgado ao TUTAMÉIA. Liderança do movimento estudantil, militar, dirigente do MR8, ele esteve com Carlos Lamarca no sertão da Bahia em 1971. Lá, debateu com o guerrilheiro a conjuntura mundial, os rumos para uma revolução no Brasil, a teoria do marxismo-leninismo, a importância do trabalho político com as massas populares.

Um dos líderes do sequestro do embaixador dos Estados Unidos no Brasil, em 1969, Salgado se recorda das conversas no acampamento na mata, pouco antes de se iniciar o cerco militar que resultou no assassinato de Lamarca e de Zequinha Barreto há 50 anos, em 17 de setembro de 1971. Fala também da sua trajetória e faz um balanço da luta armada contra a ditadura militar (acompanhe a íntegra no vídeo e se inscreva no TUTAMÉIA TV).

A seguir, alguns trechos da entrevista:

CAMPO, SEMINÁRIO, QUARTEL E FACULDADE

Sou filho de pequenos camponeses lá do interior de Minas Gerais, de uma cidade pequeninha chamada Abre Campo. Ficamos na roça até os 14 anos, passei uns tempos no Seminário de Mariana, onde aprendi algumas coisas. Lá já existia uma semente que começava a jogar luz sobre a questão política. Alguns padres, um foi assassinado, outros foram presos e torturados. Fiz meus estudos secundários lá em Mariana e depois fui para o Rio, porque a gente era de uma família muito pobre e não tinha condições de continuar no interior. No fundo, já alimentava um sonho muito grande de fazer medicina.

Para poder ter recursos para entrar na faculdade de Medicina, fiz concurso para a escola de especialistas da aeronáutica; sai sargento. Depois, como sargento, fiz vestibular para a faculdade de medicina e cursei medicina até o terceiro ano.

Em 1964, eu era sargento e acompanhei bem de perto e participava do movimento dos sargentos que apoiavam o movimento nacionalista do presidente João Goulart.

Quando eu entrei na faculdade havia uma ebulição muito grande no movimento dos estudantes e aquilo ampliou os meus horizontes. Comecei a participar do movimento dos estudantes, acabei sendo eleito para presidente do diretório acadêmico da faculdade.

Nesse período, já comecei a militância na Dissidência Comunista da Guanabara, que depois se transformou em MR8 para homenagear o comandante Che Guevara.

No MR8 participei de algumas ações. Tínhamos uma linha política que unia a ideia do movimento de massas, movimento popular com o movimento da vanguarda, que a vanguarda e os movimentos populares teriam que andar juntos. Depois, como dirigente do MR8, eu fui encarregado de desenvolver o trabalho político no campo. Assim é que eu fui para a Bahia. Primeiro fui para um trabalho político no Estado do Rio de Janeiro. Na Bahia, o Zequinha Barreto, líder operário importante do movimento em Osasco, já tinha lá uma base de um movimento, ele e o seu irmão Olderico. O capitão Lamarca decidiu ingressar no MR8 e eu os recebi lá em Buriti Cristalino, em Brotas de Macaúbas.

NACIONALISMO, ANTI-IMPERIALISMO

Em 64 eu comecei a entender que era possível não ter tanta injustiça no mundo. Foi como se um horizonte se abrisse. Havia um movimento popular muito grande, que falava que tínhamos que transformar. Tinha um conteúdo muito nacionalista, nacionalismo de esquerda, muito contra o imperialismo. Isso me fascinou. Tive companheiros que foram presos, alguns mortos em Brasília. Dois pelos menos foram desaparecidos e nunca mais se achou. Ninguém noticiou. O movimento de 64 já me alertou; foi a primeira abertura da formação da minha consciência política.

O movimento estudantil era muito intenso. Na faculdade tinha uma tradição de luta. Aí é que a consciência realmente se abriu. As pessoas tinham mais clareza, da luta dos trabalhadores, contra a ditadura.

Quando das prisões no Congresso de Ibiúna, fizemos um movimento muito intenso. A polícia chegou atirando e acabaram assassinando um colega nosso, com um tiro na cabeça, o Luiz Paulo Cruz Nunes, e feriram sete estudantes.

LUTA ARMADA E SEQUESTRO

A Dissidência estava optando pela luta armada. A gente achava que era necessário construir uma opção revolucionária armada, porque já não existiam mais formas de ganhar alguma conquista pelos meios legais.

Eu tinha um certo treinamento militar. A organização me requisitou para compor o primeiro grupo armado da organização. Entrei complemente na clandestinidade. Era 69 e, até 72, continuei na clandestinidade.

No sequestro do embaixador dos EUA, fui o subcomandante. Não gosto dessas autocriticas retroativas que alguns fazem. O balanço que eu faço é muito positivo. A gente conseguiu denunciar com o manifesto pedindo a libertação dos companheiros. As denúncias que foram feitas foram muito sérias, de tortura, de exploração do povo, de falta de liberdade. A ação cumpriu o seu papel do ponto de vista político: fazer uma denúncia grave da situação daquele momento no Brasil. Cumpriu o papel político de mostrar que havia gente, que havia movimentos revolucionários que não aceitavam mais conviver naquela situação _e conseguimos libertar os presos políticos. Do ponto de vista militar, ela foi muito bem realizada. Era o primeiro sequestro de um embaixador, sobretudo o embaixador do país mais imperialista e opressor do mundo naquele momento e hoje ainda.

LAMARCA E O MR8

A aproximação do capitão Lamarca com o MR8 foi através da frente. Entre o sequestro do embaixador alemão [junho de 1070] e do suíço [dezembro de 1970], depois do sequestro do embaixador suíço sobretudo, montou-se uma frente das organizações revolucionárias. Estavam a ALN, o MR8, o PCBR, o MRT. Em função das discussões que a nossa direção levava lá, Lamarca foi se interessando pela linha política da nossa organização.

O MR8 acabou sendo caudatário de uma boa parte da militância que já não concordava mais com o vanguardismo puro, que dava pouca importância ao movimento popular, à organização dos trabalhadores da cidade e do campo. Nossa linha política era muito clara a esse respeito: a revolução teria que ser armada, mas essa revolução só seria possível e viável com a participação dos trabalhadores da cidade e do campo. O movimento operário era a nossa base da revolução. Isso acabou interessando alguns militantes que estavam em outras organizações e que já não concordavam com a visão puramente vanguardista.

Lamarca, em cima disso, pediu para discutir mais profundamente a nossa linha. Veio para a organização. Tivemos algumas reuniões. Eu fui chamado da Bahia para conversar com ele e com a Iara. Passamos dois ou três dias conversando sobre a nossa visão de trabalho de campo e sobre a possibilidade de ele se engajar nesse trabalho de campo. O que interessou.

Ele foi para a Bahia um pouco precipitadamente porque as condições logísticas das organizações naquele momento eram muito precárias. Eles corriam muito risco no Rio. Decidimos, mesmo sem ter plenas condições, levá-lo para lá. O problema não era lá. O problema foi a forma como ele foi levado para lá, que acabou deixando rastro. Foi por onde a ditadura, a repressão acabou chegando lá. Como diz o Olderico [Barreto], se não é esse caminho que a gente foi obrigado a levar por contingências, por falta de logística para abrigá-lo no Rio, o Lamarca poderia estar escondido até hoje lá.

REVOLUÇÃO SOCIALISTA

Nosso trabalho lá era de acumulação, não de deflagração da frente guerrilheira. Um trabalho que pudesse formar muitos grupos político-militares, regulares e irregulares. Era a ideia do Vietnã, ou seja, formar grupos regulares. De dia, você era uma pessoa normal; de noite, você ia fazer as ações revolucionárias que precisasse fazer.

Essa discussão levava em conta a necessidade de uma certa autocrítica naquele momento, em função do vanguardismo que estava sendo praticado. Também se discutia como iríamos conseguir fazer essa relação dos grupos guerrilheiros táticos para a construção da futura coluna guerrilheira.

A gente achava que estávamos no momento da revolução socialista, não de libertação nacional.

A gente ficava no mato. Lamarca passava o tempo lendo e a gente conversava. Tinha horas de discussão organizada sobre a conjuntura brasileira, a conjuntura internacional, a revolução ano país, discussões teóricas sobre leninismo, sobre os erros da nossa organização. Não havia tédio. Ele falava muito da família, dos filhos, uma imensa paixão pelos filhos. Ele tirava um tempo grande para escrever.

VISÃO APROFUNDADA

Salgado conta que Lamarca, nessas conversas, era refratário à ideia de sair do país, apesar da conjuntura adversa. Diz que ele afirmava: “Entre sair e fazer a revolução, eu vou fazer a revolução”. Segue Salgado:

Lamarca defendia a construção do homem novo, de endurecer sem perder a ternura. Essa ideia de não ser um militante duro. Aprendi com ele esse aspecto. O militante revolucionário tem que ser uma pessoa normal, com capacidade de fazer a revolução, mas sem perder as emoções, ter uma ligação com a vida normal.

Para ele, era impossível fazer a revolução sem a participação popular. A gente tinha um papel de vanguarda. Mas enquanto essa mobilização da cidade e do campo não acontecesse, essa revolução não sairia.

O Lamarca que eu conheci era um Lamarca dominando bastante a teoria política e a teoria marxista leninista. Inicialmente eu fazia uma ideia que ele seria uma pessoa muito ligada às questões militares, muito competente na estratégia, na visão tática militar. Mas eu conheci um revolucionário mais polido do ponto de vista teórico, com uma visão bastante aprofundada. Ele já tinha muitos conhecimentos. Eu aprendi muito com ele. Tinha uma capacidade, que muitos de nós não tínhamos, que era usar essa teoria na aplicação prática. Ele tinha isso com muito mais clareza do que os outros militantes.

Essa ideia de não ser um militante duro. Aprendi com ele nesse aspecto. O militante revolucionário tem que ser uma pessoa normal, com capacidade de fazer a revolução, mas sem perder as emoções, ter uma ligação com a vida normal.

NOTÍCIA DA MORTE

Salgado conta em detalhes como foi o debate em torno de sair ou não da região, assim que começaram a chegar sinais de que a repressão poderia ter descoberto o local onde estavam. Ele relata que inicialmente defendeu a saída, o que seria orientação da organização em casos semelhantes –e que ele próprio achava mais correto a ser feito. No entanto, foi rechaçado por Lamarca e, com o grupo, acabou aceitando a permanência na região.

Quando algum tempo depois soube, pelo noticiário, da morte dos companheiros, ficou com uma imensa tristeza. “Eu fui para o quarto e fiquei curtindo a minha tristeza e a minha sensação de ter cometido um erro ao não ter determinado que eles saíssem, todos eles. Eu era o comandante da área. Esse é um pesar que eu vou levar até a morte”.

LUTA ARMADA

Acho que a gente fez o certo. As pessoas se esquecem e muitos não sabem o que foi aquele momento. As pessoas ficam tentando tergiversar.  Todas as formas de organização e de manifestação democráticas naquele momento estavam fechadas. Não tinha nenhuma possibilidade. Você não podia encontrar uma pessoa no bar e falar de política. Não tinha sindicato ativo. Era perseguição em todos os níveis. Não tinha liberdade para nada. Eu tenho que raciocinar hoje com a situação que era da época. Não nos restava outra alternativa.

Eu era jovem, vinha de uma família pobre, sabia o que que era passar dificuldade. Vivi um momento de 64 onde tivemos a possibilidade de avançar, que foi cortada pelo golpe militar. Era o que nós devíamos ter feito naquele momento mesmo. Em termos de decisão de luta naquele momento, eu não abro mão de nada não”.

RESGATE DO BUSTO DE LAMARCA

Antes de começarmos a entrevista com Salgado, falamos sobre uma ação realizada horas antes, no Vale do Ribeira (SP): a recolocação do busto de Lamarca em seu devido lugar –quatro anos depois de ter sido vandalizado por um secretário do governo do Estado de São Paulo.

O evento foi organizado por diversos grupos políticos e movimentos sociais, que lançaram o seguinte relato:

QUATRO ANOS APÓS SER RETIRADO ILEGALMENTE POR RICARDO SALLES, MOVIMENTOS SOCIAIS LANÇAM NOVO BUSTO EM HOMENAGEM À PASSAGEM DE CARLOS LAMARCA PELO VALE DO RIBEIRA

Nesta sexta-feira, 17 de setembro, diversos movimentos sociais do Vale do Ribeira e do litoral paulista, intelectuais, parlamentares e organizações realizaram uma homenagem em memória de Carlos Lamarca, capitão do Exército Brasileiro assassinado por agentes da ditadura em 17 de setembro de 1971 no interior da Bahia.

O ato de entrega do novo busto foi realizado no Parque do Rio Turvo no município de Cajati, mesmo local onde estava a homenagem original inaugurada em 2012. A instalação foi uma decisão do Conselho do Parque, integrado por membros do poder público e da comunidade, além de ter seguido todos os trâmites administrativos e públicos. Estiveram presentes no ato representantes dos movimentos e os deputados Glauber Braga (PSOL), Samia Bomfim (PSOL), Carlos Giannazi (PSOL) e José Américo (PT).

No ano de 2017, durante visita ao local, Ricardo Salles, ex-ministro de Bolsonaro e à época secretário de meio ambiente do governo Geraldo Alckmin (PSDB), ordenou que o comandante da PM Ambiental, de forma ilegal, retirasse a estátua, em descompasso com os procedimentos públicos e administrativos. Mandou retirar também um painel que narrava a passagem de Lamarca e outros dezoito guerrilheiros por aquela região em 1970, onde estabeleceram um campo de treinamento.

A atitude arbitrária de retirada dos patrimônios do Parque gerou revolta e deu início a um movimento pela recolocação do busto, que nunca mais foi encontrado. Salles é alvo de medidas judiciais, mas a situação nunca foi resolvida e o busto original nunca foi recolocado e seu paradeiro é desconhecido.

Tendo em vista a importância de lembrar a luta do povo brasileiro contra a ditadura, a sociedade civil organizada em diversos movimentos sociais, partidos e organizações uniram-se para produzir um novo busto, de modo a reparar a injustiça cometida contra a memória da luta do povo brasileiro por justiça, direitos e liberdade.

Os movimentos sociais envolvidos na reconstrução do busto acreditam que a memória da luta contra a ditadura e lembrando os muitos significados da passagem do Lamarca e de toda a VPR pelo Vale do Ribeira é de fundamental importância, especialmente no momento histórico atual, marcado por um governo militarizado e autoritário, pelo saque ao patrimônio do povo, pela retirada de direitos e pelos constantes insultos de um presidente da República que homenageia torturadores, assassinos, e ataca os lutadores da liberdade e do povo que, como Carlos Lamarca, dedicaram suas vidas tentando construir uma nova sociedade, combatendo a ditadura e os exploradores do povo.

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