“Estamos em um momento muito difícil. Teremos muitas mortes ainda, infelizmente. Teremos muitas pessoas adoecidas.” O alerta é da médica Maria Maeno, doutora em saúde pública e pesquisadora concursada da Fundação Jorge Duprat Figueiredo de Segurança e Medicina do Trabalho.
Em entrevista ao TUTAMÉIA, ela aponta: “A pandemia é uma grande catástrofe mundial, mas no Brasil adquire cores muito perversas, porque é um país extremamente desigual, e essa desigualdade faz com que os efeitos da doença sejam muito diferenciados em todos os níveis. A maior parte dos idosos atingidos não é da classe mais favorecida economicamente. Na vacinação, o número de brancos é muito maior do que o número de negros. Mesmo as comorbidades, doenças cardiovasculares, doenças metabólicas, doenças pulmonares, são mais frequentes entre as pessoas que não conseguem comer diariamente de uma forma mais saudável ou que não têm as condições de vida de vidas adequadas, além de terem condições de trabalho piores. Todos esses determinantes sociais acabam influenciando grandemente na forma com a população sofre essa grande tragédia”.
Os trabalhadores presenciais, especialmente, são alvos do vírus, explica ela, que considera a covid 19 uma doença relacionada ao mundo do trabalho (clique no vídeo para ver a entrevista completa e se inscreva no TUTAMÉIA TV).
“Há um conjunto de situações que fazem com que o vírus possa ser transmitido de uma forma maior ou menor. Situações de aglomeração são situações privilegiadas para o vírus, e nós sabemos que os locais de trabalho são locais que normalmente são mal ventilados, têm pouca renovação do ar, concentram grande número de pessoas, as pessoas ficam próximas umas das outras. O trabalho presencial é privilegiado para o vírus se disseminar bastante –os casos dos frigoríficos, do teleatendimento, dos jornalistas, dos trabalhadores em transporte são alguns exemplos. Além disso, quando se sai para trabalhar há vários momentos em que o trabalhador infectar e ser infectado, sem falar daquelas pessoas de trabalho informal, que têm que sair porque elas não têm o que comer.”
Por isso, argumenta, deveria “ocorrer uma articulação muito grande, uma agenda que deveria ter sido cumprida” para proteger essa população. Mas nada foi feito.
“Foi uma catástrofe. O governo federal não tinha uma agenda para proteger a população mais vulnerável, portanto dando auxílio emergencial sem aqueles percalços que nós tivemos no ano passado. E agora estamos há quatro meses sem auxílio emergencial! O governo federal deveria ter articulado com as empresas para que não demitissem, mas o desemprego aumentou. Essas pessoas engrossaram o time dos vulneráveis e começam a engrossar aquela turma que precisa sair para ganhar alguma coisa para comer. Toda essa falta de preocupação com a proteção geral das pessoas faz com que haja uma negligência em relação aos mundos do trabalho.”
Ela continua: “O que o governo federal falou? Que não tinha nada a ver com isto. O governo federal que diz não ter nada a ver com isso, quando ele tem a ver com isso, sim, porque a regulação do trabalho não pode ficar, numa época de crise, exclusivamente com o setor privado, entre a empresa e o trabalhador. O poder é desigual entre empregadores e empregados. Portanto tem que ter uma política de proteção”.
Os exemplos do descaso se acumulam, diz a pesquisadora: “Até agosto do ano passado, o Ministério da Saúde na sua ficha de notificação da covid 19 não colocou o campo da ocupação. Até agosto só eram registradas as ocupações de trabalhadores da saúde e pessoal da segurança. A partir de agosto, introduziu-se o campo da ocupação para ser preenchido, mas é facultativo. Então a gente tem um cenário no Brasil em que nem sequer informações sobre os trabalhadores nós temos, e essas informações são fundamentais para que haja um processo de investigação epidemiológica. O poder público deveria ter essas informações para poder atuar. A atuação do poder público foi muito tímida nos locais e nas atividades de trabalho”.
Ela segue: “O que nós vimos foram comportamentos desencontrados do presidente da República, que provocava e provoca aglomerações, fala mal das máscaras, fala mal da ciência, fala mal da vacina. Mesmo eu, que sou leiga na área do direito, posso dizer que as ações feitas pelo governo federal e em muitos estados também, foram ações absolutamente incompatíveis com sinceridade com a qual nós deveríamos enfrentar essa situação”.
A pesquisadora reafirma: “A covid deve ser considerada uma doença relacionada ao trabalho. Há existem elementos do ponto de vista técnico científico que embasam essa relação. E existe uma outra questão também, que é a questão da justiça: os trabalhadores que estão trabalhando presencialmente não estão trabalhando porque querem, eles foram convocados trabalhar. É um trabalho presencial compulsório. Portanto, se nós, sociedade, convocamos os trabalhadores para nos dar aquilo que nós precisamos para sobreviver, é justo que a sociedade também propicie o melhor dos direitos que nós temos, tanto do ponto de vista previdenciário quanto do ponto de vista trabalhista”.
Maeno também comenta a situação do trabalhador que consegue realizar de casa suas atividades funcionais. Diz que é falsa a ideia de que ele tenha situação privilegiada, que não necessite de proteção: “Alega-se que o teletrabalhador é tão livre, mas tão livre, que ele não precisa de nenhuma regulamentação, ele trabalha quando ele quiser. Nós sabemos que não é assim. Não só ele tem exigência dos tempos, ele tem um sistema informatizado que o persegue entre aspas o tempo todo, ele é cobrado para entregar produtos, as metas são crescentes, e tudo isso vai repercutindo negativamente na sua avaliação de desempenho. E existe uma pressão enorme sobre esses trabalhadores, que acabam atravessando a noite, com jornadas prolongadíssimas, de 15 horas, 18 horas.”
Tudo isso se reflete na saúde do profissional: “Ele tem diminuição de sua atividade física, ele tem uma diminuição das suas horas de sono, ele tem um sono mais conturbado, mais agitado, mais ansioso, e são pessoas submetidas a alto grau de pressão por parte do sistema das empresas, sabendo que estão sendo avaliadas o tempo todo, e por qualquer falha eles podem ser demitidos”.
A pesquisadora analisa ainda a situação de diversas categorias profissionais, como os trabalhadores da área de transportes, os que trabalham em plataformas de petróleo, os profissionais da área de saúde, submetidos a estresse imenso. E não deixa de abordar a situação dos professores, condenando a volta às aulas presenciais:
“Estamos num um momento muito bravo da pandemia, e não acabou a pandemia. Mesmo que haja uma estabilização aparente, uma diminuição do número de mortes por um tempo, isso tem que ser observado. Não existe milagre: só existe uma diminuição da transmissibilidade no momento em que você tem uma restrição de circulação de pessoas, e nós tivemos muito poucas restrições de circulação. Então nós devemos ter outros momentos piores do que os que atravessamos agora. Apesar de considerar a escola um local privilegiado para a sociabilidade dos alunos, um local fundamental, não vejo o menor sentido em se discutir hoje o retorno presencial. Não vejo nenhum sentido em se falar nisso pois nós colocaremos o risco não só os professores como os jovens e as famílias dos jovens, colocando em risco toda a comunidade”.
Maeno conta também sobre o trabalho que vem realizando, com outros pesquisadores, o projeto “COVID-19 como doença relacionada ao trabalho”, que tem como objetivos gerais “dar visibilidade às atividades de trabalho como fontes de infecção e adoecimento pelo SARS-CoV-2; e obter informações que ofereçam subsídios para os sindicatos planejarem ações que possam auxiliar na prevenção da doença e minimizar suas consequências clínicas e sociais” (para saber mais e até mesmo participar da pesquisa, CLIQUE AQUI).
Trata-se de uma forma de resistência: “Temos que resgatar a arte de fazer política, mas política no bom sentido. A arte de fazer política é a arte de influenciar. A população tem que mandar no país, o que deve valer é o desejo real da população. Isso não está acontecendo. Acho que isso é um dos grandes nós da nossa democracia, da sociedade brasileira”.
E convida: “Não podemos perder a esperança. A gente tem que exercer o movimento e a capacidade que nos foi dada para lutar para que nós possamos ter saídas coletivas, que é a única forma que a gente tem que sair dessa situação e nos prepararmos para outras situações tão graves quanto a de hoje. Esperamos que, com mudanças estruturais políticas e econômicas no país, a gente tenha um estado forte protetor, cada vez mais protetor da população e particularmente dos mais vulneráveis. A gente tem que lutar, lutar sempre, continuar lutando, porque a vida vai passando, e nós temos que fazer isso desesperadamente, obcecadamente, mas com alegria, com uma certa alegria de poder estar ajudando de alguma maneira mesmo dentro dessa catástrofe”.
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