“Dediquei esse livro a todos os retirantes, a todos os proscritos, a todos os apátridas, refugiados, exilados do mundo porque essa é uma história absolutamente atual. Não é uma história do século 17, é uma história que fala da ignorância, do preconceito e da construção dos discursos de ódio. Infelizmente, nada tão atual hoje quanto uma história do século 17. É inacreditável.”

Assim fala ao TUTAMÉIA o jornalista e escritor Lira Neto, autor de superdetalhada biografia de Getúlio Vargas, comentando sua mais recente produção, “Arrancados da Terra” em que acompanha a trajetória de judeus que, na segunda metade dos anos 1600, foram “perseguidos pela Inquisição na Península Ibérica, refugiaram-se na Holanda, ocuparam o Brasil e fizeram Nova York” –como explica o subtítulo do livro.

A conversa com o autor não ficou restrita à sua nova cria intelectual. Desde muito pesquisador da gente brasileira e dos poderes no país –o livro que o tornou conhecido nacionalmente foi uma biografia do general Humberto de Alencar Castello Branco, primeiro ditador depois do golpe de 1964–, aproveitou seus mergulhos na história nacional para comentar o tempo presente (veja no vídeo acima a entrevista completa e se inscreva no TUTAMÉIA TV).

Foi encontrar, por exemplo, na oligarquia cearense do final do século 19 o único exemplo de poder dirigente que possa ser de longe comparado com a figura que hoje ocupa a presidência do país.

“Se eu tiver de comparar o governo atual com alguma espécie de referência histórica, não vou encontrar nenhum presidente, por mais que tenhamos tido presidentes das mais variadas categorias, estirpes e qualidades; só posso me lembrar dessa oligarquia obtusa, provinciana do Ceará do século 19, que negava a vacina, que negava os cuidados básicos de higiene e perseguia de forma arbitrária as pessoas que pensavam de forma contrária, fossem elas agentes de saúde, jornalistas, gestores públicos.”

Ganhador por quatro vezes do Prêmio Jabuti de Literatura (categoria biografia), o autor esteve frente a frente com aquelas figuras –pelo menos no território da pesquisa: “Meu primeiro livro, “O Poder e a Peste”, lançado no final da década de 1990, é uma biografia de um pioneiro da saúde pública, Rodolfo Teófilo, atuando contra uma epidemia de varíola que matou, naquele momento, um quinto da população da cidade. Ele encarou sozinho desafio de vacinar a população. Além de enfrentar a peste, ele enfrentou o poder, que era uma oligarquia local, regional, cearense, que era negacionista e achava que a vacina não só não resolvia, mas estava sob suspeição. Esse homem criou uma cruzada pessoal e conseguiu construir uma rede de colaboradores dentro da própria sociedade e, em quatro anos de trabalho, ele erradicou a varíola do Ceará, enquanto as províncias vizinhas ainda sofriam números assustadores de morte”.

E prossegue: “Essa é uma história que aconteceu no século 19, lá no meu querido Ceará. É impressionante perceber que estamos no século 21 e ainda estamos submetidos a esse tipo de poder, esse poder anacrônico, esse poder negacionista, esse poder completamente irresponsável e—por que não dizer—esse poder criminoso ao condenar tantos brasileiros à morte”.

IMPRENSA E MILITARES

Sempre escudado em suas investigações históricas, Lira Neto, que hoje mora na cidade do Porto, em Portugal, comenta o papel dos militares no governo Bolsonaro e ao longo da República:

“Há um histórico da interferência das casernas, dos quartéis, no cenário político brasileiro. Fica claro que, desde que os militares voltaram da Guerra do Paraguaia absolutamente reforçados em sua autoimagem e em sua imagem pública, a partir daquele momento, passaram a se arvorar como uma espécie de consciência crítica nacional, como uma espécie de árbitros. Isso desde a Primeira República, que foi uma série de quarteladas em que os militares das mais variadas expressões e correntes ideológicas, ali se colocavam como homens acima do bem e do mal e que tinham como missão restabelecer o que eles chamavam de ordem e de progresso.”

Fala sobre a ação militar –e a interferência dos Estados Unidos—no processo que organizava um golpe redundo no suicídio de Getúlio Vargas. Diz que esse pensamento militar é o mesmo que embasou os golpistas de 1964 e o apoio ao golpe de 2016, contra a presidenta Dilma. E lembra que, em todos esses momentos, o golpismo encontrou apoio e incentivo no que hoje se costuma chamar de grande imprensa ou mídia corporativa.

Ex-ombudsman do jornal “O Povo”, de Fortaleza, ele destaca que, hoje, os grandes jornais fazem críticas às ações de Bolsonaro. Considera, porém, que as estocadas atuais não se assemelham em intensidade aos ataques feitos aos governos democráticos depostos por golpe. O que o leva a perguntar: “Por que os jornais não são mais incisivos, como foram antes? O mercado sustentou, avalizou e apostou nessa situação. Hoje tem uma dificuldade em deixar de avalizar essa situação”.

DISCURSOS DE ÓDIO

Finalmente, voltamos a falar sobre “Arrancados da Terra” e sua terrível atualidade, como diz Lira Neto:

“É absolutamente desconfortável como autor, como pesquisador, perceber que temas que aparentemente são temas históricos, temas do início da Idade Moderna, temas do final da Idade Média, ainda permanecem com essa terrível atualidade. A intolerância contra o diferente, a intolerância religiosa, a intolerância racial, tudo isso se faz de forma tão presente. Por isso acho que o livro “Arrancados da Terra” não é só a história de um grupo de judeus que viveu à deriva tanto tempo, arrancado de sua própria terra em tantas circunstâncias. É um livro que reflete que alguns desses problemas ainda permanecem.”

E conclui: “Boa parte dos discursos de ódio que hoje se manifestam, com muito mais intensidade e velocidade de propagação por causa da força das redes sociais, esses discursos se embasam em argumentos tão antigos, historicamente aparentemente tão ultrapassados. Esses discursos se erguem para diferenciar o eu do outro e para satanizar o outro e para demonizar o outro”.