“Com Bolsonaro, a civilização brasileira está indo para o brejo. Esse que é o problema. Estamos perdendo, como Nação, como civilização. E sem civilização você não cria conhecimento, você não se desenvolve. Veja por exemplo a questão dos direitos humanos, veja a questão da cultura. O Brasil está indo para o beleléu. O inimigo maior do medíocre é sempre o sábio, o indivíduo de algum conhecimento. Bolsonaro se rodeou de uma mediocridade absoluta. Até o muito elogiado ministro da economia não passa de um bom especulador, nem economia ele conhece. Ele não é um economista, ele é um especulador.”
A avaliação é do físico Rogério Cezar de Cerqueira Leite, professor emérito da Unicamp e pesquisador emérito do CNPq. Em entrevista ao TUTAMÉIA, ele fala sobre o ataque feito à ciência pelo governo Bolsonaro e por outros governos neoliberais:
“Entre Fernando Henrique e Bolsonaro não há muita diferença em termos de consequências para o país. Os dois não têm a percepção do que o país precisa, como o conhecimento. Os dois têm a mesma indiferença pela produção científica, pelas universidades, pela educação. Nisso eles são muito parecidos. E, para mim, isso basta. O fato de o Fernando Henrique não cometer erros de português não muda muito a nação brasileira.”
Um dos mais renomados cientistas brasileiros, presidente de Honra do Centro Nacional de Pesquisas em Energia e Materiais, que inclui o Laboratório Nacional de Luz Sincrotron, Cerqueira Leite explica assim a sua tese (clique no vídeo acima para ver a entrevista completa e se inscreva no TUTAMÉIA TV):
“Do ponto de vista da ciência, da educação, do processo civilizador, os dois não são muito diferentes. Embora o outro disfarçasse bem. A política econômica dos dois não é diferente. É a mesma coisa, a mesma ideia: um certo conservacionismo de um lado e do outro um neoliberalismo pungente. O Fernando Henrique talvez tenha feito um número muito maior de privatizações de estatais do que o Bolsonaro fez ou tentou fazer. Não há dúvida de que os dois têm semelhanças, o que se esquece. Se esquece porque um é almofadinha, bem arrumadinho, fala bonito, e o outro é um indivíduo primitivo. Mas os dois são muito parecidos.”
ENGARRAFADOR DE VACINAS
Bolsonaro aprofunda o ataque à ciência, na avaliação do professor: “A ciência brasileira não tem sido muito bem tratada, tem faltado recursos, basta dizer que, do FNDCT, que é o principal fundo de apoio à ciência e à tecnologia no Brasil, menos de dez por cento da verba de 2020 foi realmente gasto. O dinheiro foi todo escamoteado e, possivelmente, nunca será liberado. Nós temos hoje uma legislação que permite ao governo solapar o orçamento das universidades, o orçamento das instituições de pesquisas do Brasil. De qualquer maneira, essa é a principal razão para que o Brasil esteja tão atrasado. Basta ver o que aconteceu agora com as vacinas: o Brasil hoje não produz uma única vacina, ele engarrafa vacina. A única coisa que você faz é envasilhar, botar dentro de vidrinhos o material que vem de fora. Isso é uma calamidade científica!”
Cerqueira Leite aponta que políticas iniciadas no governo de Fernando Henrique Cardoso enfraqueceram o país: “O Brasil já foi capaz, nos anos 1990, nos anos 1980, de fazer muito mais do que isso. O país reduziu sua capacidade, a sua tecnologia, a capacidade de produzir e de desenvolver novas tecnologias no setor de fármacos e em outros setores também. Se o Brasil não tivesse aceitado a imposição, principalmente dos Estados Unidos, mas de alguns países europeus também, de aceitar uma legislação que era lesiva ao desenvolvimento tecnológico nacional, que foi a legislação de patentes, que o Brasil assinou durante o governo Fernando Henrique Cardoso, o Brasil certamente estaria hoje muito mais capaz de atuar. Essa legislação impede o Brasil de se desenvolver. Além do mais, o Brasil aceitou mais do que era pedido pelos Estados Unidos, fez concessões que nenhum outro país do mundo aceitou [fazer]. FHC queria dar um presente, iniciar a sua gestão com um gesto para os Estados Unidos de simpatia. Na realidade, foi um gesto de subserviência o que ele fez. E isso não se justifica nem sequer diplomaticamente, porque não há país subserviente que seja respeitado. Isso é uma percepção de diplomacia absolutamente obscena que o Brasil adotou.”
EMPOBRECIMENTO DO PAÍS
Mesmo caminho que segue hoje o governo Bolsonaro, enfraquecendo o país: “Sem capacidade de desenvolver conhecimento, nos dias de hoje, não existe uma nação. As nações hoje só se mantêm se têm uma certa competência tecnológica. Não existe hoje nação capaz de manter sua posição como nação, de ter vontade própria, se não tem conhecimento. O conhecimento é hoje a base do progresso e do bem estar no mundo. Não dá mais para se pensar hoje que é possível ter uma vida pastoril, viver de produção de laranjas, alface e cana de açúcar ou seja lá o que for, se não tiver o conhecimento mesmo nessas áreas. E o Brasil está perdendo esse espaço por causa da incapacidade dos governos. Essa tem sido a história do Brasil durante algum tempo. Houve um momento, digamos, de retomada, durante o governo Lula, mas depois disso o Brasil voltou à estaca zero quanto ao apoio à ciência e à tecnologia”.
De certa forma, avalia Cerqueira Leite, a situação nesse terreno é hoje pior do que durante a ditadura militar: “Havia uma certa atenção à ciência e tecnologia porque eles sabiam que ciência e tecnologia é poder, e o poder militar, a força de um país, depende de ciência e de tecnologia. E o governo militar percebia isso; portanto, não foi tão ruim como está sendo atualmente”.
Ele continua: “Hoje nós temos um milico no poder, mas não é um poder militar. É um poder, digamos paranoico, é um poder muito pouco inteligente e sem sequer competência na estratégica militar. Eu tenho medo de que a continuidade disso leve o Brasil ao buraco do ponto de vista econômico, do ponto de vista social e do bem estar do próprio povo, porque não há como conviver hoje, neste mundo moderno, sem produção de conhecimento”.
APOIO DOS EMPRESÁRIOS
A quem pode interessar essa política, perguntamos a ele. Uma explicação pode estar na questão econômica, afirma Cerqueira Leite:
“A privatização encanta os empresários brasileiros. Eles podem comprar baratinho e ganhar mais dinheiro. A ideia de privatização do Bolsonaro é uma das maneiras de convencer o empresariado a apoiá-lo. É coerente com o sistema dele de obter poder através do dá cá toma lá. Ele faz favores, ganha poder. É um jogo difícil para ele fazer, porque ele não é muito inteligente, mas ele adotou esse sistema e encontrou um grande apoio dos empresários. Tenho a impressão de que os mais inteligentes sabem do perigo que existe, mas estão se arriscando a entrar no bolsonarismo, a tirarem proveito enquanto podem, crescer, mandar o dinheirinho para o exterior, ganhar estabilidade e sustentação e ficar mais rico”.
O reverso da medalha pode ser terrível: “O perigo é o empobrecimento do Brasil a um ponto em que não valha mais a pena. O perigo que existe hoje é ser uma grande desordem, uma grande pobreza, o pessoal indo embora para outros países mais avançados. É o que já está acontecendo com alguns pesquisadores brasileiros. Vamos ter êxodo de inteligência para os Estados Unidos, para a Europa”.
“É PRECISO BRIGAR”
Frente a tudo isso, não é possível ficar indiferente. E o professor, do alto de seus quase noventa anos –faz aniversário em julho–, dá um puxão de orelha nas oposições: “É preciso que os partidos de esquerda deixem de suas posições exclusivistas e egoístas. Têm de pensar nas necessidades nacionais, têm de começar a se entender”.
Faz uma conclamação a seus pares: “É preciso que os intelectuais comecem a se assumir. Tem intelectual que é democrata e que até hoje nunca foi às ruas, nunca usou uma panela sequer. Usar panelas é importante. Não chega. Mas mostra a insatisfação. Quando você se mostra insatisfeito, o seu vizinho percebe. É preciso que comecemos a falar mais diretamente. É preciso que comecemos a nos mostrar, deixarmos clara a nossa posição política, isso é uma necessidade de sobrevivência da democracia”.
E um desafio a todos nós: “Tudo mundo pede paciência. Eu vou pedir ao povo brasileiro para não ter paciência. Para sair por aí brigando. Se você aceitar essa situação, o Brasil está perdido. Vamos brigar. Xingar, pelo menos. Bater panelas, se não tiver outro jeito. Vamos brigar.”
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