“O legado de Marx e de Engels não é um repositório de receitas, mas nos dá instrumentos para enfrentar os problemas contemporâneos. O pensamento burguês conservador não pode explicar a crise. É só a análise marxiana que nos permite compreender as raízes profundas da crise. É só com Marx que a gente aprende que a crise não é uma doença, não é uma anomalia. Ela é um elemento constitutivo do capitalismo. Capitalismo é crise. Não vejo como, sem fundamentar na análise teórica de Marx, que você possa ter uma política de enfrentamento radical das implicações dessa pandemia”.
Palavras de José Paulo Netto ao TUTAMÉIA, em entrevista na qual trata das trajetórias e dos legados de Friedrich Engels (1820-1895) e Karl Marx (1818-1883). Engels (foto), cujo bicentenário de nascimento é comemorado neste 28 de novembro, é o tema da biografia de Gustav Mayer, elaborada anos 1930 e lançada agora no país pela Boitempo. Pela mesma editora, José Paulo apresenta sua biografia de Karl Marx, fruto de uma década de trabalho.
Nesta conversa, o professor emérito da Universidade Federal do Rio de Janeiro conta detalhes das vidas dos dois filósofos, mostra como se interligaram no trabalho e no cotidiano de lutas políticas. Discorre sobre o contexto para a elaboração de obras fundamentais, como “Manifesto do Parido Comunista”, “O Capital”, “A Situação da Classe Trabalhadora na Inglaterra”, “A Sagrada Família”, “A Origem da Família, da Propriedade Privada e do Estado” (acompanhe no vídeo acima e se inscreva no TUTAMÉIA TV).
José Paulo fala da “grandeza pessoal e intelectual de Engels”, descrevendo como ele, sendo filho de industrial, contribuiu de forma decisiva para o pensamento revolucionário. “Sem Engels, Marx não produziria “O Capital”, um canhão para bombardear as ideias da burguesia. Engels participou, junto com Marx, de todas as polêmicas políticas e teóricas daqueles anos [segunda metade do século 19]. Comemorar os 200 anos de seu nascimento não é apenas percorrer uma história passada. Não é apenas reverenciar um combatente operário. Foi um ‘comunista de casaca’, mas que ofereceu as armas para a luta operária. Engels não acertou sempre; tem problemas teóricos a sua obra; ele viu com muito otimismo a chegada do socialismo. Mas Engels é um companheiro nosso de jornada hoje”.
Segue o professor:
“A crítica da economia política que Marx realizou, entre o segundo e o terceiro terço do século 19, trata de um capitalismo que não é o capitalismo atual. Mas trata dos mecanismos e dos dinamismos moleculares do capitalismo. Capitalismo é a geração potenciada de riquezas sociais e a reprodução igualmente potenciada de pauperismo que adquire formas diferentes. Capitalismo é crise. A crise não chega de repente –bloblooobrooh! E o capitalismo não vai acabar com a crise não. De crise só sai mais capitalismo, não sai menos. As crises podem criar conjunturas sócio políticas que apontem para alternativas ao capitalismo”.
E qual o legado de Marx? “É que você pode enxugar o gelo que você quiser, mas, ao fim e ao cabo, você acaba com a toalha ensopada na mão. Essa reprodução ampliada da pobreza faz parte da dinâmica do capitalismo. Essa pandemia colocou também em questão de uma maneira muito evidente a nossa relação com a natureza. É sempre bom lembrar uma obviedade: a sociedade não vive sem a natureza. Mas a natureza pode subsistir sem a sociedade. Não podemos ter um trato de pura exploração da natureza. O metabolismo sociedade/natureza não pode ser entregue à lógica do capital. A lógica do capital é destrutiva. Isso pode levar à destruição dos valores civilizacionais. Marx e Engels formularam as bases para aquilo que depois iria ser conhecido como a alternativa da sociedade humana: ou o socialismo ou a barbárie. Estou convencido que essa disjuntiva hoje é real”.
O professor se diz otimista, mas não no curto prazo. “Estou convencido que a alternativa é socialismo ou barbárie. Eu acho que é possível, não é provável, a destruição dos valores civilizacionais”.
Refletindo sobre o momento atual, José Paulo Netto lembra de “Eles Não Usam Black-tie”, peça de Gianfrancesco Guarnieri que foi para as telas em 1981 com a direção de Leon Hirszman. O filme, premiado em vários festivais, conta a história de uma família operária durante uma greve. O pai é um dirigente grevista; o filho está apaixonado, quer casar e é contrário ao movimento. Numa cena em pai e filho conversam numa noite após a chuva, o pai pondera que o filho está errado pois pensa que a vida é uma poça d’água; a vida é um rio; tudo flui.
“O que está horroroso hoje, amanhã pode estar florescente. Depende de nós. Não só de nós. Depende da nossa vontade de transformar o mundo”, afirma o professor.
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