“O atual Chefe do Governo Federal foi eleito com grande apoio norte-americano, sobretudo financeiro e de propaganda pelas chamadas redes sociais. Sem isso, Bolsonaro continuaria a ser ignorado por 99% do eleitorado nacional. Agora que os ianques conseguiram de nós tudo o que queriam e que sua preocupação atual é com as eleições presidenciais de novembro próximo, eles viraram as costas para o Brasil de Bolsonaro”.
Essa é a avaliação que faz o jurista Fábio Konder Comparato, 83, ao analisar a situação do Brasil nesta crise econômica e sanitária. Em entrevista realizada por e-mail, ele diz ao TUTAMÉIA que a enorme desigualdade social no Brasil torna o país “incapaz de enfrentar com êxito os desastres que a pandemia do coronavírus está provocando em todo o planeta”.
Professor emérito da USP, Comparato dá nota baixa à democracia existente no país: “Dentro de nossas fronteiras, sempre prevaleceu a vontade dos senhores de mando e riqueza”, afirma ele, que comenta também a recente demissão do ex-ministro Sérgio Moro e o desempenho do Supremo Tribunal Federal.
Leia a seguir a íntegra da entrevista
TUTAMÉIA – Qual a sua avaliação sobre a situação que estamos vivendo?
FÁBIO KONDER COMPARATO — Como é fartamente sabido, o Brasil é um dos países de maior desigualdade social do mundo. Tal situação nos torna incapazes de enfrentar com êxito os desastres que a pandemia do coronavírus está provocando em todo o planeta. Para se ter uma ideia aproximada dos males que essa desigualdade vai aprofundar em nossa sociedade, limito-me a lembrar uma única deficiência. Temos investido uma média anual de R$ 10 bilhões em obras de saneamento básico. Ora, esse valor representa menos da metade do previsto para que o País tenha, até 2023, uma rede de cobertura nacional de água e esgoto, conforme prevê o Plano Nacional de Saneamento Básico. Metade de nossa população, ou seja, o equivalente a 100 milhões de pessoas, não tem nenhum acesso à coleta de esgoto.
TUTAMÉIA – O Estado Democrático de Direito e a democracia funcionam no Brasil?
FÁBIO KONDER COMPARATO — Tenho dito e repetido que o sistema jurídico no Brasil sempre teve duas faces: a oficial e a real. Desde que nos tornamos independentes de Portugal, a nossa classe dominante fez questão de que o nosso país aparecesse como em tudo igual às nações ditas civilizadas; ou seja, como um país no qual todos são iguais perante a Lei. Dentro de nossas fronteiras, contudo, sempre prevaleceu a vontade dos senhores de mando e riqueza. O mesmo sucedeu com a Democracia: na visão da gente ilustrada, a soberania ou poder supremo deveria pertencer ao povo brasileiro. Essa concepção idealística sempre voltou à cena, quando saímos de um regime autoritário, adotando uma nova Constituição, como sucedeu em 1934, em 1946 e sobretudo em 1988, com a chamada Constituição Cidadã. Infelizmente, porém, esse idealismo jamais chegou a penetrar na cabeça do “povão.” Nem na das mal chamadas elites. Para o “povão”, o que mais importa não é, e nunca foi, o direito de eleger os governantes, mas sim a possibilidade de obter emprego (ainda que mal remunerado), serviço médico e aposentadoria. Como é fácil imaginar, quando viermos a sair da atual pandemia –e certamente, demoraremos um bom tempo para derrotar o coronavírus– é bem possível que o povo brasileiro adira em massa ao primeiro líder político autocrático ou ditatorial, que conseguir dar ao povo emprego, serviço médico e aposentadoria.
TUTAMÉIA – O Brasil assiste a cada dia uma escalada do presidente da República contra as instituições. Onde isso vai parar? Vai parar?
FÁBIO KONDER COMPARATO — Precisamos nos dar conta de que o atual Chefe do Governo Federal foi eleito com grande apoio norte-americano, sobretudo financeiro e de propaganda pelas chamadas redes sociais, com os recursos dos robôs e dos impulsos em massa. Sem isso, Bolsonaro continuaria a ser ignorado por 99% do eleitorado nacional. O recrudescimento da dominação imperial ianque em nosso país fez parte de um vasto programa político e econômico, iniciado em 2007 em razão de um fato de importância extraordinária: a maior descoberta de campos de petróleo de todos os tempos, feita pela equipe técnica da Petrobras, após 30 anos de pesquisas na camada do pré-sal do litoral brasileiro. Um ano após essa descoberta, foram furtados da Petrobras 4 laptops e 2 HDs com informações sigilosas sobre a bacia de Santos, em cujas profundezas localiza-se uma parte da camada do pré-sal.
Com a derrubada do governo de Dilma Rousseff por meio de um golpe de Estado em 2016, os norte-americanos avançaram mais uma etapa em sua intrusão imperialista em nosso país, conseguindo que o Congresso Nacional aprovasse a Lei nº 13.365, de 2016, cujo projeto fora apresentado por um “amiguinho” dos Estados Unidos, o senador José Serra. Essa lei revogou a obrigatoriedade da participação da Petrobras na exploração da camada de petróleo do pré-sal, estabelecida pela Lei nº 12.351, de 2010, sancionada pelo presidente Lula. O governo federal anunciou então a realização de leilões com a participação de empresas estrangeiras, em 21 campos de óleo e gás, sendo que boa parte desses poços estão localizados nas três bacias de maior produção: Campos, Santos e Espírito Santo.
Outro benefício de grande importância concedido a países estrangeiros, especialmente aos Estados Unidos, é o projeto de privatização da Eletrobrás, a maior empresa geradora de energia elétrica da América Latina.
Pois bem, agora que os ianques conseguiram de nós tudo o que queriam, e que sua preocupação atual é com as eleições presidenciais de novembro próximo, eles viraram as costas para o Brasil de Bolsonaro. Quem tomará doravante as grandes decisões políticas e econômicas por aqui é o grupo militar, que controla 8 dos 22 ministérios e ocupa “apenas” 1.349 cargos no Executivo. Alguém, porventura, acha que eles voltarão mansinhos para a caserna ao término do atual governo?
TUTAMÉIA — Quais são os caminhos para tirar Bolsonaro do poder? A saída está no impeachment?
FÁBIO KONDER COMPARATO — Penso que tal indagação deve ser feita a Mourão e cia. Em todo o caso, não tenham dúvida: os militares só sairão do poder quando quiserem.
TUTAMÉIA – Como está a reação da sociedade em relação às ações do governo Bolsonaro?
FÁBIO KONDER COMPARATO — Segundo as estatísticas (não-oficiais), ele conta atualmente com um pouco menos de 30% do eleitorado. Quanto aos 70% restantes, infelizmente muitos ainda permanecem esperando que a pandemia do coronavírus seja debelada, para poderem voltar ao que lhes interessa: futebol, samba, negócios e valor do dólar.
TUTAMÉIA – O sr. sempre apontou a presença norte-americana no golpe de 2016 e identificou o papel de Sérgio Moro nesse processo. Qual o significado da queda de Moro e quais devem ser os seus desdobramentos? Sérgio Moro deixou de ser importante na ligação entre os Estados Unidos e esse grupo que está no poder?
FÁBIO KONDER COMPARATO — Essa indagação é, de fato, importante. Sérgio Moro foi considerado pela revista Fortune, em março de 2016, uma das 50 personalidades, tidas como líderes mundiais; foi o único brasileiro incluído nessa lista. No mês seguinte, Moro foi designado pela revista Time uma das cem pessoas mais influentes do mundo. Ao que parece, no entanto, ele já não goza do mesmo prestígio no país de Tio Sam. Não obstante, agora que ele está fora do baralho no Brasil, eu o aconselharia a se mudar para os EUA. Em nosso país, com a saída de Moro, os únicos que continuarão a mandar serão os militares. O novo Ministro da Justiça é um devoto do Presidente, a quem chamou de Profeta e a quem bate continência.
TUTAMÉIA — O Supremo tem decidido contra ações da Presidência, como nos casos da PF e de diplomatas da Venezuela, o que tem provocado opiniões divergentes no meio jurídico. Qual sua visão? Foram acertadas essas decisões?
FÁBIO KONDER COMPARATO — Nos últimos anos, o STF tem mantido a dignidade no exercício de suas funções constitucionais, em agudo contraste com o tribunal que, em 2010, julgou aceitável a autoanistia decretada pelos dirigentes do regime militar, que trucidou centenas de opositores já presos e torturou milhares de pessoas. Não é essa, porém, como se sabe, a opinião do atual chefe de Estado que, ao votar na Câmara dos Deputados pelo impeachment de Dilma Rousseff em 2016, fez questão de homenagear o maior torturador e assassino do regime militar, o Coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra.
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O professor Fábio Konder Comparato foi um dos primeiros entrevistados de TUTAMÉIA. Participou de um “Papo na Cozinha” conosco em janeiro de 2018 –CLIQUE AQUI para ler a reportagem e assistir à entrevista.
Ainda em 2018, durante a campanha eleitoral, novamente tivemos a satisfação de falar com ele, dessa vez por e-mail. O resultado da conversa você encontra CLICANDO AQUI.
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