“A concepção de cultura do governo Bolsonaro é totalmente distorcida, errada e obscura. Eles têm uma mistura de aversão e medo em relação à cultura –que é sempre crítica e inventiva. Querem neutralizar. Não vão conseguir. Não é o momento de fazer concessões. É momento de enfrentar esse obscurantismo”.
Palavras do premiado escritor Milton Hatoum ao TUTAMÉIA. Para ele, é preciso não desistir, não esmorecer. “Você se autocensurar e ficar imobilizado e deprimido é a pior coisa. Tem que agir, se possível com humor. Isso vai passar. É questão de tempo e de organização, de mobilização de uma frente democrática, não só de esquerda, mas de democratas”, afirma.
Hatoum está lançando “Pontos de Fuga”, segundo volume de sua trilogia “O Lugar Mais Sombrio”. O romance, ambientado no período da ditadura de militar, segue um grupo de jovens em transformação. Nas superquadras de Brasília, num casarão da Vila Madalena e nos bairros de Paris, personagens buscam saídas para enfrentar aqueles tempos tenebrosos –que seguem ecoando em nossos dias.
O escritor conta que a ideia da obra é muito anterior à ascensão da extrema direita no país. Foi decantando com o tempo, enquanto ele escrevia livros como “Dois Irmãos” (2000) e “Cinzas do Norte”. Calhou de a história ser editada agora pela Companhia das Letras, justo quando o poder está com um admirador dos horrores ditatoriais. “Não calculei publicar nesse momento”, conta.
“O projeto desse governo é destruidor, autoritário, muitas vezes tirânico, não tem nenhum projeto civilizador. Adota medidas ultraliberais que agradam o mercado, os banqueiros, o grande capital. Uma combinação que no Chile foi extrema, com um terrorismo de Estado dos mais abjetos e sanguinários. Aqui eles ensaiam uma posição desse tipo”, afirma.
Hatoum fala das chacinas diárias que ocorrem no país. “Tudo isso foi herdado da ditadura”, declara, lembrando dos esquadrões da morte, das milícias, mecanismos que têm origem naquele tempo. Se no passado os alvos eram militantes pela democracia, hoje “as vítimas são os pobres da periferia”. Para o escritor, “tudo isso torna o pais de fato bárbaro; há poucos traços de civilização”.
Com essa avaliação, pensou em sair do país? “Pensei em algum momento, recebi convites para sair, mas alguma coisa me diz que eu preciso ficar aqui. O contato com as pessoas, as ruas me alimentam também de alguma forma, me estimulam. Meus filhos e minha família estão aqui. Quero mostrar o Brasil para eles. É importante conhecer Brasil. Nesse momento estou bem aqui. Não há porque ir embora”.
O escritor segue: “O país é insuportável para os pobres da periferia. É o inferno. Eles são os expatriados em sua própria pátria, sofrem rotineiramente. Quando a gente pensa no sofrimento dos outros, muita coisa do nosso sofrimento é atenuada, fica quase banal e fútil. Quando me sinto cercado pelo desespero, penso nessas pessoas que passam o dia inteiro tentando sobreviver. Elas têm força e energia”.
MACHADO, GRACILIANO, CONRAD
Hatoum nasceu em 1952, em Manaus. Foi lá que fez suas primeiras importantes leituras: contos de Machado de Assis, romances de Graciliano Ramos, livros de Jorge Amado, Érico Veríssimo. Os textos de Machado foram presente da mãe. Ele lembra da edição encadernada azul, de 1957. Outras obras ele conheceu na escola pública. Bons professores, se recorda. Euclides da Cunha ele leu como um castigo. Aprontaram na classe, e o professor obrigou a turma a fazer o fichamento de “Os Sertões”.
“’Vidas Secas’, ‘Infância’ e os contos de Machado foram fundamentais. Também ‘O Continente’ e ‘Capitães de Areia’”, conta.
Em Manaus, Hatoum foi crooner de uma banda. Fez um jornal com os colegas; seu primeiro texto publicado foi em defesa da educação pública.
Depois, o destino foi Brasília. O objetivo era se preparar para fazer arquitetura. Lá, viu a resistência dos estudantes à ditadura. Na sequência, entrou na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP, onde acabou fazendo contato com grandes mestres da literatura um país e enveredou por novos caminhos.
A arquitetura, trocada pela literatura, ainda está presente nas suas referências. O papel manteiga, por exemplo, ele usa para traçar os esquemas, os planos de seus enredos. Foi assim para escrever a trilogia “O Lugar Mais Sombrio”.
O próprio nome do romance é uma referência ao desenho arquitetônica. “Os pontos de fuga são os lugares do exílio, da paixão, os lugares do amor e do ódio. São também os pontos de fuga da arquitetura, quando você traça uma linha e pontos convergem para suas extremidades”.
Hatoum conta ao TUTAMÉIA que escreve a mão, em cadernos pautados, com caneta –não a Bic. “ Tenho ojeriza por essa caneta!” –propagandeada por Bolsonaro.
É claro, diz ele, que muita coisa vai se modificando no meio do caminho. “Você é levado pelo imprevisível”, afirma. Aí está a beleza de fazer literatura. “A memória que interessa ao narrador é a memória daquilo que foi quase esquecido, a coisa nebulosa. Nesse território nebuloso do passado é que você convoca a imaginação”. E diz:
“O romance contraria todas as nossas esperanças. É um gênero dissidente e veio para perturbar as nossas certezas e as nossas esperanças. Por isso ele só faz perguntas e não responde. A literatura tem a função de colocar problemas”.
Hatoum lembra também da influência das leituras de Joseph Conrad e, especialmente, de Guimarães Rosa. Fala de seus planos, da resistência, do tempo em que se distribuíam panfletos mimeografados contra a ditadura militar.
“Você não se entrega, você faz, mesmo com dificuldades, não capitula. É melhor resposta que se pode dar a toda essa desfaçatez”. Vai buscar em “Grande Sertão: Veredas” uma reflexão sobre o agora:
“Tudo isso lembra um pouco um romance do Guimarães Rosa. Porque tem um personagem importantíssimo que é a encarnação de um mal. É o embate entre deus e o diabo. E o nosso demônio evoca deus o tempo todo! Que é mais uma contradição, um disparate. Como que um grande capeta, ou um capetão, pode evocar o nome de deus para fazer tanta maldade? Jesus! Não se faz isso! É o Hermógenes do “Grande Sertão: Veredas”, que é o romance dos romances da língua portuguesa. O Hermógenes está aí”.
Rodolfo, que bem saber e ouvir esta entrevista. abs elton manganelli