Caminhando devagarinho, mas com a determinação de sempre, Margarida Genevois avançou pelo asfalto até a entrada da área de visitantes da Penitenciária Feminina de Santana. Com a presidenta de honra da Comissão Arns seguiam outras duas fundadoras do grupo de lutadores pelos direitos humanos, Maria Victoria Benevides e Maria Hermínia Tavares.

Tal como fizeram durante a ditadura militar, as três iam prestar solidariedade a presas políticas.  Ali se encontraram com Janice Ferreira da Silva (Preta Ferreira) e Edinalva Silva Ferreira, lideranças do Movimento Sem Teto do Centro (MSTC). Elas estão em prisão preventiva desde junho, acusadas, sem comprovação, de suposta cobrança indevida de aluguel em prédios ocupados no centro da cidade.

A reportagem de TUTAMÉIA estava lá. Gravamos, depois da visita, breve entrevista, depois transmitida em programa especial (veja o vídeo acima).

Além disso, a professora Maria Victoria fez um vibrante relato do encontro, publicado no blog da Comissão Arns e a seguir reproduzido, na íntegra, com a devida autorização da autora.

Maria Victoria Benevides, Margarida Genevois e Maria Hermínia Tavares (de preto), na saída da Penitenciária Feminina de Santana

ENCONTRO EMOCIONANTE: A LUTA E A DOR DAS PRESAS DO MOVIMENTO SEM TETO

por MARIA VICTORIA DE MESQUITA BENEVIDES

Foi uma tarde memorável, esta última quinta-feira, dia 4 de outubro. No presídio feminino de Santana, em São Paulo, fomos visitar Ednalva Franco e Janice Ferreira (conhecida como Preta), presas há cem dias sem julgamento. Em nome da Comissão Arns, Margarida Genevois, Maria Hermínia Tavares de Almeida e eu estávamos apreensivas: como iríamos encontrá-las, em que poderíamos ajudar, teríamos liberdade para uma conversa franca?

Sabíamos que eram lideranças do Movimento de Trabalhadores sem Teto (do Centro) e a Comissão Arns entendeu que se tratava de um caso pertinente a uma área de nossa atuação, que se refere à “criminalização de movimentos sociais”. Sabíamos que estão bem acompanhadas por advogados (as) vinculados (as) a entidades de defesa dos direitos humanos. Mas não conhecíamos suas lutas, suas dores, suas vidas, suas esperanças.

Fomos encaminhadas a uma sala, em tudo parecida com qualquer sala de repartição pública: mesa grande, cadeiras, escrivaninhas, computadores e dois funcionários, um uniformizado. Elas chegaram um pouco tímidas, mas com brilho nos olhos. Nós três nos apresentamos e as advogadas Ana Paula e Viviam explicaram por que ali estávamos. E as presas falaram livremente, com emoção e firmeza. E fomos, aos poucos, compreendendo a extraordinária força moral dessas duas mulheres!

Ambas se apresentaram como pessoas que já nasceram discriminadas: mulheres de famílias pobres, nordestinas e negras, nesta sociedade patriarcal, machista, racista e marcada pelas mais profundas desigualdades. E conseguiram vencer tantos preconceitos, completaram cursos superiores (o que lhes garante, hoje, a tal “prisão especial”) e consideram a luta uma obrigação social, algo natural, assim como participar de festas religiosas nas comunidades.

Janice, a Preta, de aparência bem muito jovem para seus 35 anos, falou primeiro, com a vivacidade de quem é atriz e cantora, destacando a trajetória familiar, já que tem irmãos militantes e sua mãe é Carmem Ferreira, a grande líder do Movimento, recentemente garantida por um habeas corpus. Ednalva, de 47 anos completados na cadeia, tem o ar sofrido da mãe longe dos três filhos, o menor ainda adolescente. Ambas falaram que a pior dor é não saber o que está acontecendo com os seus queridos (“nossas famílias foram destruídas, vamos ter que reconstruir os laços”), assim como não saber quando serão julgadas, o que as espera.

Durante as falas fiquei observando também a emoção de Margarida, presidente de honra da Comissão. Aos 96 anos, enfrentou uma escada longa e íngreme sem hesitar um segundo. Lembrou às moças suas visitas a presas e presos durante o regime civil-militar, e como recebia os familiares e intermediava notícias – por isso entende bem o que elas sentem e quer ajudar em tudo que for possível. Enviar livros, por exemplo. Elas contaram como é horrível ficar sem ter o que fazer e devoram os livros, às vezes um por dia. O final das tardes tem a hora temida, 17hs, quando são trancadas em cada cela, sem qualquer outro contato, esperando a noite sem sono.

Ednalva contou que começou a militância aos 17 anos, logo tem uma história de 30 anos de lutas. Mostrou as marcas dos tiros de borracha da polícia, durante passeatas e manifestações. Mas em momento algum disse que está cansada da luta; pelo contrário, ela e Preta foram enfáticas ao afirmarem que, ao sair da prisão, continuarão a militância, desta vez juntando o direito a moradia às lutas pelas mulheres presas. O que elas querem é o básico da Declaração Universal de Direitos Humanos e de nossa Constituição: a igualdade na dignidade!

Elas lembraram o trágico fim de Marielle Franco e disseram que o fato de estarem presas talvez as tenha protegido (“a mão de Deus”). E contaram das presas comuns, sem família, sem um movimento forte que as apoie, a não ser elas duas, que se tornaram a “família” das presas abandonadas, que voltarão para as ruas com alta probabilidade de por qualquer coisa retornarem à prisão.

Que bela lição nos deram Preta e Ednalva! Não estão preocupadas só consigo mesmas e seu destino, mas com quem não é “visível” para a sociedade. Falaram que sabem como é importante ser “a voz de quem não tem voz”, o grito de quem não tem advogado nem amigos.

Saímos de lá com a certeza dos deveres que temos por sermos privilegiadas (o que é óbvio) e mais ainda com o compromisso de reforçarmos, na Comissão Arns e seus parceiros, a preocupação com a criminalização dos movimentos sociais e com as condições de vida das mulheres confinadas.

Obrigada, Ednalva e Preta! Vocês não estão sós. Um abraço solidário e … a gente se verá, na luta.