“Bolsonaro está destruindo as bases do Estado desenvolvimentista. Está destruindo as condições básicas para o Brasil ser capaz de dar um salto, de ser um país desenvolvido. Ele está condenando o Brasil a uma situação de subdesenvolvimento.”

É a análise que faz a presidenta Dilma Rousseff em entrevista ao TUTAMÉIA. Ao longo de quase uma hora, em nossos estúdios caseiros, ela condenou a incivilidade de Bolsonaro em relação à memória dos mortos e desaparecidos durante a ditadura militar, protestou contra a normalização do discurso fascista, da violência e do entreguismo, apontou os interesses norte-americanos aliados ao bolsonarismo, afirmou que só novas eleições trazem de volta a democracia ao Brasil e conclamou à criação de uma frente anti-Bolsonaro.

“É preciso formar uma frente que pare Bolsonaro. É preciso que todas as pessoas de bem desse país se unam para conter essa onda que está claramente tentando levar o Brasil para o perigoso caminho do autoritarismo. Mas não o autoritarismo qualquer. Um autoritarismo neofascista, com tudo o que ele tem de bárbaro, com tudo o que ele tem de violento, com tudo que ele tem de odiento. É isso que está em questão.”

Para Dilma, o governo Bolsonaro quer “criar aqui um mundo sem lei e sem regra, um mundo cão. Esse processo tem o interesse de grandes grupos internacionais e tem, no caso da geopolítica, um processo de enquadramento do Brasil, de “reenquadrar” o Brasil.”

Isso porque, diz ela, o Brasil vinha, nos governos petistas, tendo uma posição de independência, explicitada na política externa ativa e altiva. “Tínhamos saído da velha e tradicional subordinação aos Estados Unidos. Só que agora, além de ser subordinação mais ou menos discreta, virou uma submissão. Ele presta continência à bandeira [norte-americana]”.

O que a leva a afirmar que, no cerne da política bolsonaristatem interesses americanos. E o Bolsonaro se aliou a eles”.

Dilma disse que o governo Bolsonaro tem duas faces, a neoliberal e a neofascista. “Essas duas caras, a cara neoliberal e a cara neofascista, estão inteiramente ligadas, são que nem irmãos xifópagos. E são de fato ligadas pela cabeça. Pela mesma consciência.”

Afirmou estar “perplexa” com a falta de reação das Forças Armadas à destruição em curso. E disse que a corrente militar nacionalista “é forte e tem tradição no Brasil. Acho que essa parte está adormecida, que ela ressurge. Porque o desastre é imenso. E alguns dos desastres não têm retorno”.

Também falou sobre a Vaza Jato: “Tem de questionar o julgamento, sim! Tem de questionar a legalidade do julgamento, a sua lisura e a sua base real! Tem de questionar! Pedir a anulação! Tem de soltar o Lula. O Lula está preso indevidamente. Não tem mais de onde discutir que ele não está preso indevidamente”.

ACOMPANHE, A SEGUIR, A ÍNTEGRA DA ENTREVISTA DE DILMA ROUSSEF AO TUTAMÉIA.

TUTAMÉIA – Qual sua avaliação dos ataques de Bolsonaro à memória de Fernando Santa Cruz?

DILMA – Esse último ataque entre os muitos que ele vem fazendo contra o Brasil e os brasileiros e brasileiras, esse último mostra de fato o caráter profundamente fascista do nosso capitão. Que, em tom de ameaça, em tom de chiste também, abre uma das piores páginas da história do Brasil que é essa tentativa feita por ele e por alguns de normalizar a ditadura militar. No caso do Fernando Santa Cruz, ele passa uma linha, que é de um comportamento civilizado e humano. E insinua uma certa cumplicidade dele com os assassinatos e os desaparecimentos durante o período da ditadura militar e sobretudo o que ocorreu com o Santa Cruz. Tenta primeiro uma desmoralização. Dizer que ele teria sido justiçado por seus companheiros o que é uma solene mentira. É mais do que uma mentira, é uma vilania. É uma vilania porque ele morreu sob a custódia do Estado brasileiro. Ele morreu estando preso em dependências do Exército brasileiro, das Forças Armadas do país. Que tiveram na Comissão da Verdade isso bastante esclarecido não só por depoimentos de pessoas que participaram do desaparecimento dele e de seu companheiro Collier. Os cadáveres foram queimados. Essa é uma página que o Brasil tinha de honrar o morto e o desaparecido, e não ter um presidente da República um pouco se vangloriando disso, um pouco se tornando de forma tácita cúmplice desse processo. É um momento de grande manifestação de incivilidade.

Isso não é algo extemporâneo por parte do presidente Bolsonaro. É intrínseco à sua característica mais profunda. Porque esse governo tem uma dupla face que expressa também a sua composição.

De um lado ele tem a face neoliberal, que tenta e está progressivamente implantando no país um processo de ferimento da soberania nacional, vendendo a Embraer, abrindo o território brasileiro pela primeira vez ao controle de uma outra potência, no caso os Estados Unidos na base de Alcântara no norte do país, e tornando a Petrobrás objeto de uma venda absurda como fizeram com a Embraer, tirando de nós aquilo que nós lutamos e conquistamos, que a gente terá a nossa própria tecnologia. Tanto no caso da Embraer como no da Petrobras.

Tem, então, esse lado neoliberal. Que torna a fome uma nova realidade no país. Nós tínhamos tirado o país do mapa da fome em 2014, um mapa que a ONU constrói. Que considera que um país saiu do mapa da fome quando ele tem menos de 5% da sua população em situação de fragilidade alimentar. O Brasil tinha menos. E nós conseguimos, então, atingir esse marco para atingir o restante, que era acabar radicalmente com a fome. O que acontece de 2014 em diante? O Brasil volta a passos largos para o mapa da fome, apesar de o presidente dizer que não tem fome.

Todas essas reformas neoliberais, que é uma das faces do governo, convivem com a outra face que é neofascista. A face da violência, do ódio, que combate as mulheres. Porque combater as mulheres e garantir que as mulheres não tenham direitos para eles é precondição para homenagear as famílias. Quando as famílias são homenageadas quando elas têm acesso à casa própria, quando uma mãe e um pai não vão ver o seu filho ser privado da escolaridade e transformaram a moralização numa forma de fazer política, desrespeitando o próximo.

Mas não é só isso. O que eles estão fazendo com o meio ambiente, com os indígenas desse país. A recente morte de uma liderança indígena no norte do país é um exemplo do que acontece quando você desmonta a fiscalização, quando você desmonta a proteção ambiental e social e transforma esse país num espaço sem lei, sem regra, e permite que cresça a violência porque se incentiva a violência, o uso de armas.

Essa duplicidade, essas duas caras, a cara neoliberal e a cara neofascista estão inteiramente ligadas, são que nem irmãos xifópagos. E são de fato ligadas pela cabeça. Pela mesma consciência. Aqui nesse país foi necessário um impeachment sem crime de responsabilidade, uma farsa, um golpe, foi necessária uma perseguição política ao presidente Lula tirando ele não só da vida civil ao condená-lo e puni-lo indevidamente mas impedindo que ele participasse do processo eleitoral.

Ao mesmo tempo, destruiu todos os partidos do centro à direita. Pelo menos de forma a acabar com o potencial de cada um. Veja o PSDB, que só consegue menos de dois dígitos acho que foi 4%, a mesma coisa com o PMDB. Eles destroem a política no Brasil tentando destruir o PT. A ironia maior é que nessa eleição o único partido que sobrevive é o PT. Que faz 45% dos votos, 47 milhões de votos.

Todo esse processo com essa dupla cara tem uma contradição interna. O mercado, segmentos partidários antigamente democratas que viraram golpistas e apoiaram esse processo todo, todos eles acreditavam que podiam moderar o Bolsonaro, que ele era moderável. Esqueceram que a história demonstra que o fascismo não tem o chip da moderação, não tem a condição de ser civilizado, porque é intrínseco a ele, é intrínseco à forma pela qual ele constrói a sua dominância com base na violência.

A violência é uma arma. A violência serve para várias coisas. Serve para barrar o crescimento do adversário político. Serve para afirmar uma certa ideologia. Serve também para atemorizar a população. Essa parte do mercado, da mídia tradicional, que foi uma grande responsável pela criação do ambiente pró-golpe. Só que eles abriram a caixa de Pandora e de dentro da caixa de Pandora saiu um monstro incontrolável. Eles achavam que domesticariam. Eles não domesticam. Eles podem querer fazer uma omelete, que são as reformas neoliberais, sem quebrar os ovos. Os ovos, nesse momento atual, é a política neofascista. Eles não conseguirão. Para executar a reforma neoliberal, eles precisam do Bolsonaro.

Então é uma ilusão supor que não aja essa contradição e que eles viverão nela. Tentam escapar dela. Por exemplo ao dizer que quem aprovou e viabilizou a reforma da previdência foi o presidente da câmara, Rodrigo Maia. É óbvio que o presidente da Câmara Rodrigo Maia teve o seu papel, articulou politicamente. Mas quem cria o meio ambiente propício para apoiar uma reforma da previdência, uma venda da Petrobras e da Embraer, uma abertura de base em Alcântara para o controle americano é o governo Bolsonaro.

Da mesma forma, eles precisam dele para o prosseguimento desse processo que é a desoneração tributária. Eles querem manter a situação de desoneração tributária dos ganhos de capital. Querem aprofundar a desregulamentação do trabalho mais do que está. Eu soube que eles agora estão acabando com todas as NRs, que regulamentavam o trabalho nas condições mais extremas quanto à sua segurança, quanto às condições de saúde do trabalhador. Enfim. Eles têm no Bolsonaro a condição para fazer isso. Mas sobretudo –e aí é que importa entender—é a base de sustentação política que são o conjunto daqueles que são mobilizados.

TUTAMÉIA – Mas há alguma resistência, como mostra a reação às ofensas feitas contra a memória de Fernando Santa Cruz.

DILMA – Essa é a parte boa. Tem a reação cada vez maior da sociedade. E do outro lado há a tentativa de abafar essa reação.  Ela fica muito forte e você vê um banqueiro indo a público e dando uma entrevista e dizendo que de fato é um comportamento não adequado, mas que não compromete a aprovação das reformas.

TUTAMÉIA –Cândido Bracher [Itaú] falou isso.

DILMA – Isso. A mesma coisa você vê com variantes entre os partidos do chamado Centrão. Você vê esse processo sendo sistematicamente operado. Cada vez que há uma radicalização do Bolsonaro que cria uma animosidade grande na sociedade tem um abafa-abafa. Fruto dessa dupla cara. Portanto eu acho que o nosso papel é sempre intervir no sentido de mostrar que esta é uma questão inaceitável. Que aqueles que abafam, que aqueles que aceitam. na prática estão, mesmo com o silêncio, eles estão assegurando que se repita, que se reproduza, que se reitere.

TUTAMÉIA –É a banalização do mal.

DILMA – É para lá de certa essa afirmação da banalização do mal que foi feita pela Hannah Arendt [1906-1975]. Você pode chamar de normalização. É normalizar os atos. É excessivo. Ou seja, você gradua. ‘É polêmico’. Você meio que passa uma espécie de borracha que tenta borrar claramente do que se trata. Isso não só nessa questão.

Numa questão também de outro lado muito importante que é chamar –não é dele diretamente, mas é do governo dele—falar que ele tirava o dinheiro porque as universidades essas universidades faziam balbúrdia. De outro lado dizer que os “paraíbas”, considerando preconceito em relação aos nordestinos que, aliás, tinha na minha eleição. Quando eu fui eleita pela segunda vez, eles diziam que a culpa era dos nordestinos que tinham me elegido.

Todos esses processos. O processo de dizer que pode fechar o Supremo com um cabo e dois soldados. O processo que diz que a ditadura militar é algo que não prendeu, não matou, não torturou. A revisão da história e o incentivo a matar. Pode matar. O que faltou foi matar 30 mil. Tudo isso é um processo crescente de banalização. De normalização.

Para mim a palavra mais forte é normalizar. É tornar normal. Tornar isso a forma privilegiada de vivenciar a neofascismo.

O que nós temos que perceber é que a mídia tradicional, a Globo News, dando nome aos bois, a mídia tradicional e partes do mercado, como é o caso da entrevista do próprio presidente do Itaú. A fala e até o comportamento silencioso e omisso de segmentos do judiciário. Tudo isso torna essa realidade, permite que essas iniciativas criem raízes.

O nosso papel –e foi muito importante a ação da OAB, da Comissão Arns, todas as reações da sociedade civil– é desenraizar isso. É mostrar que a gente não concorda. Que isso não pode ser assim. Que não é assim. Que isso é um crime. Que isso é um atentado contra o país.

Outra coisa que ele tenta normalizar –essa tentativa é extremamente complexa– são as relações externas subordinadas não ao interesse nacional. Mas uma visão ideológica de uma divisão do mundo inadmissível. Primeiro com seu guru Olavo de Carvalho, mas não só com ele. Sobretudo pelo fato de que fazem continência para a bandeira americana e israelense e submetem a política proposta pelo governo americano sobretudo o governo Trump. Isso está claro quando ele indica seu filho embaixador nos Estados Unidos.

Isso não é normal. Não é normal mudar a embaixada para Jerusalém. Não é normal ceder a base de Alcântara para um país que não transfere tecnologia, que são os EUA.  Se transferisse tecnologia e negociasse uma transferência, você poderia discutir. O que que é importante na base de Alcântara? Lá é o lugar privilegiado na linha do Equador para lançar satélites. É isso que aquela base permite. E além disso o lançamento de foguetes. Então negociar uma parceria estratégica com outros países está na pauta. Não pode ser assim: entregar a Embraer! Nós financiamos um avião de carga a jato. O Hércules é um avião turbo hélice. Nós fizemos um avião a jato chamado KC 390, que tem capacidade maior do que a do Hércules de transportar equipamentos militares ou civis. Grandes equipamentos. E é um ativo estratégico do país, desenvolvido com nossa tecnologia. Estão entregando!

TUTAMEIA – Essa posição de subserviência sem paralelo do governo Bolsonaro aos EUA. permite dizer que Bolsonaro é uma marionete dos EUA?

DILMA – Acho que não. Geralmente o fascismo foi nacionalista. Por isso que eu chamo neofascista. Porque a influência do pensamento neoliberal no Brasil em todas as áreas desde os articulistas. A capacidade de cooptação que eles tiveram com jornalistas, com os chamados fazedores de opinião, os influenciadores. Eles capturaram esse pensamento. A globalização sob a hegemonia americana é defendida abertamente por toda a mídia tradicional. É defendida pelo mercado abertamente. Tem aquela visão que se aplica para nós o que não se aplica para os EUA. Os EUA jamais propõem um nível de austericídio que é proposto aqui. Há uma dupla influência aqui. É uma influência da direita americana, quando ela fala do tal marxismo cultural, do politicamente correto, que era a ideologia do chamado Tea Party. Essa parte da ideologia é interessante porque ela é antiglobalizante. Essa raiz influencia o nosso chanceler. Mas, ao mesmo tempo, tem uma outra visão que é essa influência dos neoliberais. Ao que tudo indica segmentos militares que até então tinham um forte componente nacionalista. Vamos lembrar com todas as críticas democráticas e de direitos humanos do governo Geisel, ele foi um presidente que respeitou a soberania nacional. Se tinha toda essa tradição.

TUTAMÉIA – A Petrobras foi criada com apoio dos militares.

DILMA – Não só a Petrobras.  A Eletrobras, a própria Embraer. O Centro Tecnológico da Aeronáutica, o CTA. Sem o CTA você não teria a Embraer. Acho que essa corrente militar que é forte e tem tradição no Brasil deve estar adormecida.

TUTAMÉIA—Como é que se coaduna…

DILMA – Não sei. Eu fico perplexa. Porque nós fizemos uma política nacional de defesa dando à defesa um papel estratégico porque a gente sabia que a projeção nacional do Brasil precisava de uma política externa altiva e ativa. E precisa de uma afirmação de política nacional de defesa. Porque a área de defesa é estratégica quando se olha a questão de criação de tecnologia e de fortalecimento. O próprio CTA e a Embraer e a compra dos Gripens. Outro dia me perguntaram porque tinha que comprar jato de última geração. Tem que comprar porque os nossos Mirages não dão conta mais do recado; eles têm quase 50 anos. Tinha que ter o FX, que tem capacidade de proteger os nossos recursos naturais, as nossas riquezas. Nós demos essa força. Criamos uma política de criar os submarinos, inclusive nuclear, de trazer para cá o Gripen, de criar expertise na área cibernética, de vender tanques etc. Enfim, eu não sei.

Acho que essa parte está adormecida, que ela ressurge. Porque o desastre é imenso.  E alguns dos desastres não têm retorno. Exemplo: vender a BR Distribuidora. Venderam na Bolsa, venderam as ações. Só que, junto com as ações, venderam o controle. O controle vale mais do que as ações. Eles venderam a Embraer por um preço que é ridículo.

É como o caso da fundação Lava Jato. O que eles, os Estados Unidos, passaram o tempo inteiro querendo? É público e notório, depois do Snowden, que eles usaram a National Security Agency, a NSA, para obter dados da Petrobras. Eles queriam saber como era o Pré-Sal. Até então a imprensa brasileira e a Globo em especial diziam que o Pré-Sal era uma invenção do PT.

Os EUA sabiam que essa invenção do PT era valiosíssima então tratavam de nos espionar. No caso específico da fundação Lava Jato, o que eles trocaram? Eles trocaram 2,5 bilhões, que é muito dinheiro para a Lava Jato e para os procuradores tais como o sr. Dallagnol que não tinha o direito de fazer o acordo e se apropriar do dinheiro. Isso é um aspecto. Mas tem outro aspecto que a imprensa esconde. Em troca desses dois bilhões e meio, o que deram? Deram aceso ao conhecimento de informações da Petrobras. Sistemáticas.

TUTAMÉIA – Isso é crime.

DILMA – É crime de lesa-pátria. Os 2,5 bilhões são, como dizem os próprios americanos, amendoins, peanuts. Ou seja, é muito dinheiro para a Lava Jato e pouco dinheiro para dar acesso aos segredos. Então se vive numa situação no Brasil em que o que é grave é que têm coisas que estão sendo feitas como a venda da BR Distribuidora, como a venda das ações da Embraer dando controle acionário também que foi feito por um preço ridículo. Mas não é só o preço. É que não poderia dar a venda porque é nossa geração tecnológica que está ali. Na Petrobras, eles estão fatiando a sétima maior empresa de petróleo do mundo. Usando, como sempre usaram, a mentira. Porque diziam que a Petrobras estava quebrada. Uma empresa que tem caixa que nunca foi menos de 13 bilhões, entre 13 e 26 bilhões nesse período, nunca está quebrada. Temos de fato aqui no Brasil nesse processo todo indícios fortes da presença de interesses americanos nesse processo. Nessa articulação, eles foram uma espécie de aliados. E ainda são. O Bolsonaro não só se espelha no Trump, mas utiliza os mecanismos que levaram ao fortalecimento de Trump. Por exemplo o Steve Bannon. Está passando um documentário interessante na televisão na Netflix sobre a privacidade invadida. Que mostra a influência desse processo que é a riqueza controlando os mecanismos de manipulação eleitoral. Simplificando: o que fizeram aqui no Brasil com o Whats App na eleição do Fernando Haddad.

Ao mesmo tempo, uma coisa que acho importante que a gente pense no que fala o Bannon. É que não basta você assumir o controle político. Você tem que destruir. Tem que destruir o que existe para construir algo de novo. Bolsonaro fala a mesma coisa.

O que é destruir o que existe? É primeiro destruir o Estado Nacional no seu aspecto desenvolvimentista. Tirar, cortar as mãos e, de preferência, os braços para que ele não possa se recuperar. Tirar-lhe a possibilidade de construir redes de proteção social, desregulamentar o trabalho, desregulamentar o meio ambiente, desregulamentar a proteção de indígenas no Brasil. Criar aqui um mundo sem lei e sem regra, um mundo cão. Esse processo tem o interesse de grandes grupos internacionais e tem, no caso da geopolítica, um processo de enquadramento do Brasil, de “reenquadrar” o Brasil. O Brasil estava “desenquadrado”. Porque ele foi para os Brics. O Brasil teve uma política de dar importância à América Latina. Ele fala mal da América Latina e ele se dirige aos EUA. O Brasil deu uma importância à África. Primeira coisa: eles estão cada vez mais reduzindo a nossa representação na África. O Brasil teve uma política de respeito a todos os países, mas de não atrelamento. Fomos sempre dos fóruns multilaterais, independentes e contra a guerra. Contra, por exemplo, o cerco à Venezuela. Fomos contra isso e seremos sempre. Porque essa é uma questão que está na base da atuação brasileira no mundo.

TUTAMÉIA – A autodeterminação.

DILMA – É. A autodeterminação dos outros povos para eles dizerem como é que eles querem que seja a vida deles. Esse processo é algo que nós precisamos saber: o que nós fazíamos precisava ser reenquadrado. Reenquadrado porque nós tínhamos saído da velha e tradicional subordinação aos Estados Unidos. Só que agora além de ser subordinação mais ou menos discreta virou uma submissão. Ele presta continência à bandeira [norte-americana].

TUTAMÉIA- No cerne da política desse governo, então..

DILMA – Tem interesses americanos. E o Bolsonaro se aliou a eles.

TUTAMEIA – Bolsonaro trabalho no rumo da destruição do estado nacional?

DILMA – Não é que ele vai destruir o Estado, ele quer colocar um outro estado, liberal, mínimo. Ele está destruindo as bases do estado desenvolvimentista. Ele está destruindo isso. Está destruindo as condições básicas para o Brasil ser capaz de dar um salto, de ser um país desenvolvido. Ele está condenando o Brasil a uma situação de subdesenvolvimento.

Exportador de commodities. Vai até ter algumas indústrias, mas perde as armas. Ele está desarmando o Brasil.

Depois da Petrobrás, vai vir a Eletrobras. Depois da Eletrobras, vêm os bancos, o Banco do Brasil e a Caixa. Ou tudo concomitante.

[Sobre os bancos]. Uns lucros monumentais feitos pelos bancos neste trimestre. Se não me engano, foram R$ 7 BILHÕES, o que vai totalizar no ano, se projetado nos 12 meses, 28 bilhões de reais, num quadro de crise como está o Brasil, de desemprego… Qual a justificativa para essa política de demissão generalizada, qual a justificativa?

A justificativa é poder reduzir completamente o controle mínimo que existia, o controle social sobre essas atividades, inclusive tirando poder dos sindicatos.

Acho que houve uma aliança, aliança entre todos os segmentos, uma aliança completa: mercado –veja Paulo Guedes–, Lava Jato –veja Moro, a Lava jato foi estruturante para construir o clima para gerar toda essa situação–, alguns segmentos militares e esse setor mais próximo [de Bolsonaro], que eu chamo de neofascista, miliciano.

Todos esses setores se articularam com um outro, que é a direita norte-americana e suas diferentes representações, inclusive o próprio presidente. Isso não sou eu quem está dizendo, são eles que falam, mostram, que evidenciam.

É intrínseco desse processo a presença desses atores.

TUTAMÉIA – Como ficam as instituições? Elas resistem?

DILMA – Depende delas. Você pode perceber que há um desastre. Mas, se você não fizer nada, ele só se aprofunda, só se aprofunda.

Que há uma crise, principalmente do judiciário brasileiro, e uma crise grave, porque foi o fundamento do judiciário –e todo o cimento que representa a Justiça em qualquer sociedade.

Você pode ser diferente, você pode ter desigualdades, mas não é admissível desigualdade perante a lei. Todos são iguais perante a lei. É o que fundamenta –alguns até chamam de a ilusão da Justiça-, mas essa ilusão é um elemento intrínseco de uma sociedade ocidental, capitalista, como a que nós vivemos.

Essa igualdade perante a lei, ela tem por base uma Justiça imparcial. Essa é a primeira condição. Daí porque ela é sempre mostrada vendada, o símbolo da Justiça que traz a venda e a balança, o equilíbrio e a não identificação de ninguém, o julgamento que deve ser imparcial, que não olha quem é quem.

Esse processo foi comprometido pela Vaza Jato.

A Vaza Jato mostrou três coisas principais em relação ao que fizeram com Lula. Primeira coisa: a Vaza Jato mostra que a Lava Jato tem um conteúdo político. Qual o conteúdo político da Lava Jato, onde ele está expresso? Ele está expresso nas interferências do juiz e dos procuradores visando impedir que o presidente Lula fale. Fale, dê entrevistas. Explicitamente dizem que, se ele der entrevista, ele pode influenciar a eleição. Eles dizem isso.

Mostram dois pesos e duas medidas no tratamento político. Ah, vamos indiciar o Instituto do Fernando Henrique Cardoso porque é igual ao do Lula. Não, não vamos, nós não podemos melindrar nossos aliados. Esse é o segundo nível de interferência.

Terceiro nível de interferência política: a clara decisão, em relação ao Lula, de acelerar o processo.

Essas três coisas a Vaza Jato deixa claro em relação à interferência política.

DOIS: o fato de que o Juiz funciona como acusador, o fato de que o juiz não tem a menor imparcialidade. Ele indica testemunhas, ele veta procurador –a procuradora Laura tesler, se não me engano.

TRÊS: ele interfere nas fases da investigação.

A terceira coisa que eu acho extremamente grave –há várias outras, eu estou só falando de algumas–, e que eu acho que vão comprometer profundamente o Judiciário, e o ministro Gilmar mendes tem toda razão, é o fato de que as instâncias superiores… Sempre foi alegado de que o julgamento foi revisto pelas instâncias superiores. Alguns vazamentos da Vaza Jato deixam claro, fica claro, perfeitamente claro que o tribunal TRTF4 (de Porto Alegre) teve uma conduta também enviesada.

Todos esses componentes criam um problema sério, por causa do papel de cimento de qualquer sociedade que tem a Justiça, o sistema judiciário. Ele é fundamental. A partir do momento em que fica claro que um adversário político, ex-presidente da República, inocente, foi tratado como culpado e encarcerado até hoje …

Tudo se passa como se fosse necessária alguma coisa a mais do que isso, a mais do que já foi revelado. Eu não sei o que mais é necessário!

Acrescentar a tudo isso mais alguma coisa não é necessária. Ter-se-ia de ter tomado providências.

TUTAMÉIA – Que tipo de providência?

DILMA – Uai! Primeira providência: tem de questionar o julgamento, sim! Tem de questionar a legalidade do julgamento, a sua lisura e a sua base real! Tem de questionar! Pedir a anulação!

Dois: tem de soltar o Lula. O Lula está preso indevidamente. Não tem mais de onde discutir que ele não está preso indevidamente.

Nós já sabíamos disso. Nós já sabíamos, pela forma com que eles praticaram todos os atos, se sabia disso. Mas agora está escandalosamente escancarado.

Você tem uma situação em que um juiz que, além disso, depois de fazer tudo isso, é nomeado ministro da Justiça. Me perdoe, mas isso passa de todos os limites.

TUTAMÉIA – A eleição deve ser anulada?

DILMA – Tem de anular. A eleição está prá lá de questionada. Eles não têm o menor pudor. Eles deram um ministério para quem viabilizou a eleição dele. Sabe-se perfeitamente que foi usada e manipulada no caso do Whats App. Agora, se se tem força para isso, se isso resultará em algo prático, eu não sei. Eu só acho que os elementos para isso estão claros. Se vão anular? Não acredito. A correlação de forças não favorece isso.

O próprio Lula tem dito que há cinco forças contra ele. Estão contra ele o presidente da República, o ministro da Justiça, uma parte dos militares, uma parte do Judiciário, e a quinta eu esqueci, mas não precisa, não é?

 

TUTAMÉIA – Agora, dentro da oposição nas últimas semanas surgiram ideias de impeachment, anulação da chapa, Fora Bolsonaro.

DILMA – A anulação é uma coisa e o impeachment é outra. Anulação da chapa significa novas eleições. Impeachment, primeiro que acho que não tem força política para o impeachment, mas para quem? Para botar quem? Ser substituído por quem?

TUTAMEIA – Qual o caminho que a oposição tem que ter?

DILMA – Eu acho que o único caminho que a posição tem de ter é acentuar essa divergência, mostrar que não é possível, para se fazer as reformas neoliberais, compactuar, ser cúmplice desse processo de neofascistização, e que é necessário, sim, um novo processo de eleições nesse país.

Se ele vai ocorrer ou se ele não vai, não sei. Agora, acho que está claríssimo isso, que é a única forma do país voltar a ser democrático. Porque o resto não é, não vai voltar a ser democrático coisíssima nenhuma. É mais do mesmo.

TUTAMEIA – É preciso parar Bolsonaro.

DILMA – É. É preciso mais do que isso. É preciso formar uma frente que pare Bolsonaro. É preciso que todas as pessoas de bem desse país se unam para conter essa onda que está claramente tentando levar o Brasil para o perigoso caminho do autoritarismo. Mas não o autoritarismo qualquer. Um autoritarismo neofascista, com tudo o que ele tem de bárbaro, com tudo o que ele tem de violento, com tudo que ele tem de odiento. É isso que está em questão.

Então, parar isso não é simplesmente achar que o processo do Bolsonaro é um excesso. Não é só um excesso. Ele tem o excesso, mas debaixo do excesso tem o fundamento de desigualdade, violência e desprezo pela vida das pessoas que o neoliberalismo engendra em todos os países.

TUTAMEIA – A política da morte.

DILMA – Então, eu não vejo, eu não sei por que não se pode discutir se há um governo legítimo. Eu não vejo como havendo um governo legítimo tendo obtido votos, mas eu não acho que seja caso de impeachment. Ou discute-se o processo eleitoral, ou então nós vamos fingir que não houve golpe, que não houve law fare, que não houve esse processo de normalização crescente, que é característico do fascismo, da violência.

TUTAMEIA – Quais as chances dessa frente? Muito se fala dessa frente.

DILMA – Eu vou lhe falar, eu não acho que nós estamos numa situação de resolução disso em curto prazo. Eu acho que estamos numa situação de construção. A construção de uma, não de uma corrida de 100 metros, nós vamos correr uma, na verdade nós vamos correr uma maratona. Nesse processo eu acho que nós vamos construir os instrumentos.

TUTAMÉIA – Qual o seu papel nesse processo?

DILMA – Não acho que as pessoas têm assim papel já pré-datado, sabe? Depende muito de como for o processo, de como eu me comportar também. Eu pretendo resistir. Pretendo participar. Sobretudo, pretendo entender. Porque só a gente entendendo a gente consegue transformar. A gente tem de ficar fazendo isso que nós estamos fazendo aqui também. Faz parte do processo. Eu acho muito importante, como lá no passado nós compartilhamos algumas coisas, movimento de bairros na Fracab [Federação Riograndense de Associações Comunitárias e Moradores de Bairros]. Assim como nós tivemos toda uma trajetória, nós vamos ter de ter a nova trajetória.

Nós temos de voltar às bases. Eu só acredito quando tiver uma movimentação no mundo do trabalho, no mundo da cultura, no mundo, sabe, das atividades sociais entre as diferentes organizações. Não é só partido político. Acho que partido político tem sua importância, mas eu acho que ou tem uma mobilização desses diferentes segmentos com uma porção de atores, ou você não consegue modificar essa situação.

A história demonstra que você só resiste a avanços de estados de exceção fascista com o povo na rua, ou o povo se organizando, melhor dito. O povo se manifestando nas suas pautas. Eu acho muito importante articular as duas pautas nossas. A pauta de luta contra as reformas neoliberais, e a pauta de luta contra as propostas neofascistas. Que unam mulher, religião, LGBT e negro e que una também a perda de emprego. A perda de soberania nacional, a entrega do Brasil por nada.

TUTAMÉIA – Encaminhando para o final, qual sua mensagem para os brasileiros?

DILMA – Olha a minha mensagem depois de tudo isso que nós conversamos eu acho que é o seguinte: nós temos de resistir.

Além de resistir, nós vamos ter de reconstruir todos os nossos instrumentos de luta. Nós temos de ser capazes de articular, como eu disse, em todas as esferas: no mundo do trabalho, da produção também. Os empresários estão matando a galinha dos ovos de ouro. Eu acho que nós temos de construir uma resistência de todos os brasileiros, de todas as brasileiras de bem. Aqueles que de fato são de bem, que defendem a soberania desse país, que defendem o direito da população desse país, que defendem o país e que defendem a democracia. Porque isso tudo está em questão, uma coisa muito forte. Está em questão a democracia no Brasil. Eu acho que se isso não tiver essa resistência nossa, se isso não tiver essa nossa luta, essa busca por uma alteração da realidade, nós teremos aqui no Brasil um estado de exceção. Por isso companheiros, como a gente dizia antes, vamos à luta!