“MANDA que com baraço e pregão seja conduzido pelas ruas públicas ao lugar da forca e nela morra morte natural para sempre, e que depois de morto lhe seja cortada a cabeça e levada a Vila Rica, aonde em lugar mais público dela será pregada, em um poste alto até que o tempo a consuma, e o seu corpo será dividido em quatro quartos, e pregado em postes pelo caminho de Minas no sítio da Varginha e das Cebolas, aonde o Réu teve as suas infames práticas, e os mais nos sítios de maiores povoações até que o tempo também os consuma; declaram o Réu infame, e seus filhos e netos tendo-os, e os seus bens aplicam para o Fisco e a Câmara Real, e a casa em que vivia em Vila Rica será arrasada e salgada, para que nunca mais no chão se edifique.”
O alvo de tanta virulência e brutalidade era JOAQUIM JOSÉ DA SILVA XAVIER, o homem por todos conhecido como TIRADENTES. Seu crime foi se insurgir contra a injustiça e a violência do Estado, sonhando então com liberdade para sua terra e, em tempos de Brasil Colônia –tempos a que o governo de hoje parece querer fazer voltar–, desejar a construção da República.
“Um radical entre moderados, um franco entre dissimulados, ele defendia – publicamente e em qualquer lugar (de bordéis a residências de ricos mercadores) – uma revolução que tornasse Minas Gerais independente de Portugal. ”Era pena”, dizia o alferes, ”que uns países tão ricos como estes –as Minas Gerais– estivessem reduzidos à maior miséria, só porque a Europa, como esponja, lhe estivesse chupando toda a substância”” –assim o herói é descrito pelo jornalista e pesquisador Lucas Figueiredo no livro “Boa Ventura! A corrida do ouro no Brasil (1697-1810)”.
Tiradentes foi enforcado na cidade do Rio de Janeiro no dia 21 de abril de 1792.
Neste Domingo de Páscoa, 21 de abril como aquele de 227 anos atrás, TUTAMÉIA rende sua homenagem ao desabrido alferes. Com ele iniciamos a GALERIA TUTAMÉIA DE HERÓIS DA LIBERDADE, que será sempre ilustrada pela pena alegre do artista gráfico FERNANDO CARVALL, que nos acompanha nesta celebração.
A importância de Tiradentes é por todos conhecida. Talvez nem todos, porém, tenham conhecimento de como foi o processo judicial que culminou com a morte e o esquartejamento daquele combatente da liberdade.
Em entrevista ao TUTAMÉIA (clique AQUI para ver a reportagem) na época do lançamento de seu livro “O TIRADENTES”, Lucas Figueiredo esclareceu:
“Foi um projeto judicial absolutamente de cartas marcadas. Quando o processo é aberto, já se sabe qual é a sentença da rainha de Portugal. Quando a rainha abre o processo, três anos antes de sair a sentença, ela já sabe o que ela quer fazer. Enquanto o processo corre no Rio, com muitas preocupações formais, a rainha escreve uma carta para o juiz dizendo: ‘Olha, a sentença é essa aqui’. Não só o processo judicial é completamente de cartas marcadas, como a investigação é completamente manipulada. Eles não queriam que aquele movimento, que era de ideias, fosse visto dentro da colônia e para as nações estrangeiras como um grande movimento. Então, tentam diminuir a importância daquele movimento”.
As infames práticas do Império contra a Colônia ressoam nos dias de hoje, em que o maior líder popular da história do país está na cadeia, vítima de processo manipulado. Sem citar o nome de Lula, o pesquisador afirma:
“A gente não pode comparar as épocas, mas tem ecos que são muito perturbadores para a gente ignorar” (o vídeo com a entrevista completa está no alto da página).
Pesquisas como a desenvolvida por Figueiredo desencavam dados e detalhes que nos ajudam a conhecer mais sobre o personagem. Talvez porém, a alma do combatente só seja mesmo captada pelos poetas. Por isso, encerramos este texto com o trecho em que CECÍLIA MEIRELES (1901-1964) nos apresenta o alferes no épico “Romanceiro da Inconfidência”.
ROMANCE XXVII OU DO ANIMOSO ALFERES
Pelo Monte Claro,
pela selva agreste
que março, de roxo,
místico enfloresce,
cavalga, cavalga
o animoso Alferes.
Não há planta obscura
que por ali medre
de que desconheça
virtude que encerre,
-ele, o curandeiro
de chagas e febres,
o hábil Tiradentes,
o animoso Alferes.
Por aqui, descansa;
ali, se despede,
que por toda parte
o povo o conhece.
Adeuses e adeuses,
sinceros e alegres:
a amigos, mulatas,
cativos e chefes,
coronéis, doutores,
padres e almocreves…
Adeuses e adeuses,
-que rápido segue,
a mover os rios,
a botar moinhos
e barcos a frete,
lá longe, lá longe,
o animoso Alferes.
A bússola mira.
Toma para leste.
Dez dias de marcha
até que atravesse
campinas e montes
que com os olhos mede:
tão verdes… tão longos…
(E ninguém percebe
como é necessário
que terra tão fértil,
tão bela e tão rica
por si se governe!)
Águas de ouro puro
seu cavalo bebe.
Entre sede e espuma,
os diamantes fervem…
(A terra tão rica
e – ó almas inertes! –
o povo tão pobre…
Ninguém que proteste!
Se fossem como ele,
a alto sonho entregue!)
Suspiram as aves.
A tarde escurece.
(Voltará fidalgo,
livre de reveses,
com tantos cruzados…)
Discute. Reflete.
Brinda aos novos tempos!
Soldados, mulheres,
estalajadeiros,
-a todos diverte.
(Por todos trabalha,
a todos promete
sossego e ventura
o animoso Alferes.)
No rancho descansa.
Deita-se. Adormece.
Penosa, a jornada,
mas o sono, leve:
qualquer sopro acorda
o animoso Alferes.
Deus, no céu revolto,
seu destino escreve.
Embaixo, na terra,
ninguém o protege:
é o talpídeo, o louco,
-o animoso Alferes.
Mas, dourado e roxo,
o campo alvorece.
Desmancham-se as brumas
nos prados celestes.
Acordam as aves
e as pedras repetem
músicas, rumores,
do dia que cresce.
Move-se a tropilha:
que outra vez se apreste
o macho rosilho
do animoso Alferes.
Adeuses e adeuses…
Talvez não regresse.
(Mas que voz estranha
para a frente o impele?)
Cavalga nas nuvens.
Por outros padece.
Agarra-se ao vento…
Nos ares se perde..
(E um negro demônio
seus passos conhece:
fareja-lhe o sonho
e em sombra persegue
o audaz, o valente,
o animoso Alferes.)
Que importa que o sigam
e que esteja inerme,
vigiado e vencido
por vulto solerte?
Que importa, se o prendem?
A teia que tece
talvez em cem anos
não se desenrede
Toledo? Gonzaga?
Alceus e Glaucestes?
-Nenhum companheiro
seu lábio revele.
Que a língua se cale.
Que os olhos se fechem.
(Lá vai para a frente
o que se oferece
para o sacrifício,
na causa que serve.
Lá vai para sempre
o animoso Alferes!)
Adeus aos caminhos!
-montes, águas, sebes,
ouro, nuvens, ranchos,
cavalos, casebres… –
Olham-no de longe
os homens humildes.
E nos ares ergue
a mão sem retorno
que um dia os liberte.
(Pois que importa a vida?
aqui se despede
do sol da montanha,
do aroma silvestre:
-venham já soldados
que a prender se apressem;
venham já meirinhos
que os bens lhe sequestrem;
venham, venham, venham..
– que sua alma excede
escrivães, carrascos,
juízes, chanceleres,
frades, brigadeiros,
maldições e preces!.
Venham, venham, matem:
ganhará quem perde.
Venham, que é o destino
do animoso Alferes.)
De olhos espantados,
do rosilho desce.
Terra de lagoas
onde a água apodrece.
Janelas, esquinas,
escadas… – parece
que há sombras que o espreitam,
que há sombras que o seguem…
Falas sem sentido
acaso repete,
-pois sente, pois sabe
que já se acha entregue.
Perguntas, masmorras,
sentença… Recebe
tudo além do mundo…
E em sonho agradece,
o audaz, o valente,
o animoso Alferes.
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