Neste 2018 de tantas efémerides ditas “redondas”, como os 170 anos do Manifesto do Partido Comunista, os 200 anos do nascimento de Marx -um dos autores do já dito manifesto–, celebramos hoje os 90 anos do nascimento daquele que é talvez o maior ícone da juventude mundial, chama de vida, de esperança, generosidade, heroísmo, fé e confiança na humanidade: Ernesto Che Guevara.
Para homenagear sua memória, TUTAMÉIA traz para você uma breve história deste corredor, que um dia andou por veredas onde Ernestito havia caminhado. Sem mais, segue o texto, que foi publicado originalmente no BLOG DO LUCENA, em 2015 (as fotos também são de minha lavra).
APOSENTADO CORRE PELOS CAMINHOS DO CHE MENINO
Celia era uma garota linda, aventureira e rebelde. Fumava, mantinha curta a cabeleira, pregava a autonomia das mulheres e não se filiava a religião nenhuma –muito pelo contrário. Só isso bastaria para escandalizar a sociedade argentina naquele fim dos anos 1920, ainda mais que a moçoila era a caçulinha dileta de uma família de poderosos estancieiros.
Pois ela não estava nem aí. Além de tudo, defendia e praticava, no frescor de seus 20 aninhos, a independência sexual.
Vai daí que, quando se engraçou com um rapagão desempenado, que se apresentava como engenheiro e se dizia empreendedor do ramo da construção civil, não demorou muito para ficar grávida, fora do casamento!!!, e sem a benção paterna!!!
Para obrigar a família a aceitar o inevitável, engendrou com Ernesto Guevara uma fuga de casa. Papá La Cerna se rendeu ao fogo da filha, e não só se fez o casório como também ela, ainda menor de idade, ganhou o direito de levar sua parte na herança.
Com a grana, Ernesto e Célia compraram uma plantação de erva mate em Puerto Caraguatay, uma zona rural da província de Misiones, no distrito de Montecarlo, a 1.200 quilômetros ao norte de Buenos Aires. Lá o intrépido engenheiro poderia trabalhar e manter a gravidez da mulher longe de línguas fofoqueiras.
Não só, como o próprio Guevara pai conta em seu livro “Meu Filho, o Che”, de 1981: “Era um lugar emocionante, cheio de animais ferozes, trabalho perigoso, roubos e assassinatos, ventos com chuvas intermináveis e doenças tropicais. Lá, na misteriosa Missiones, tudo atrai e emociona. Atrai como tudo o que é perigo e emociona como toda paixão”.
A citadina Celia se deu bem no meio do mato. Sua barriga de grávida vicejou saudável e, em meados de maio, avisou o marido que tinha chegado a hora. Foi só baixar até a praia, no próprio terreno Guevarista, nas barrancas do rio Paraná, para pegar um barquinho rumo a Buenos Aires.
Para o parto do primogênito, a família queria a segurança e os recursos da capital. Mas a natureza falou mais alto: na descida do rio, passando por Rosario, as dores se fizeram sentir. Ela estava com oito meses e meio de gravidez, não havia como prosseguir.
Assim, às 15h05 do dia 14 de maio de 1928, nasceu no hospital Centenário aquele que o mundo conheceria por Che, comandante Guevara, herói da humanidade, combatente da liberdade e da justiça. Nos registros oficiais, Ernestito veio à luz no dia 14 de junho, de “parto prematuro”, explicação dada para encobrir o fato de que o garoto fora gerado antes do casamento, realizado em dezembro de 1927.
Passadas as naturais celebrações com a família e o período de resguardo, o trio calafrio voltou para as barrancas do rio Paraná, no distrito de Montecarlo.
E foi lá que este aposentado corredor –mas não corredor aposentado—se encontrou a treinar dias atrás, em uma manhã fresquinha…
A cidade de Montecarlo é o principal ponto turístico na região, ficando entre Foz do Iguaçu e as reduções jesuíticas de Santo Inácio. Também é famosa pela produção de orquídeas –lá se realiza uma festa nacional dedicada a essa flor.
Implantada em região encoxilhada, praticamente não há trecho plano. No meu curto treino, feito para desencaroçar as juntas depois de longa viagem, estive sempre subindo ou descendo longas e suaves (às vezes, nem tanto).
A cidade ainda dormia enquanto eu corria, mas deu para perceber a quantidade de lojas de flores e o uso generoso da palavra orquídea nos nomes de lojas, restaurantes, oficinas, hotéis e pousadas –a que eu fiquei, por sinal, era bem boazinha, ainda que bastante simples; em contrapartida, o café da manhã era esquálido.
Com cerca de três quilômetros de corrida já chegara à estrada que corta os arrabaldes de Montecarlo; por algumas centenas de metros, corri ao lado de uma plantação de árvores. A madeira seria destinada a fabricação de móveis, outro dos orgulhos locais –há várias lojas de mesas, cadeiras, camas e armários apresentados como “artísticos”.
Lá do alto, só me restava voltar. E assim fiz, cumprindo seis gostosos quilometrozinhos sem dor, cheios de curiosidade pelo território desconhecido e de emoção por trilhar percursos que possivelmente foram percorridos pela família Guevera, já lá se vão mais de 80 anos.
Dali partiria, já alimentado, limpo e de roupas civis, para visitar a joia mais rara da região: el Hogar Misionero del Che.
Do lar dos Guevara, construído por Ernesto pai com as próprias mãos (não sem ajuda de algum empregado, por supuesto, pois a família era simples e aventureira, mas tinha recursos), sobram ruínas tomadas pela grama, cobertas de limo e musgo, debilmente protegidas por uma cerquinha de madeira que fecha o perímetro do quadrilátero quase nonagenário.
Uma casa apresentada como réplica daquela em que Che viveu sua primeira infância abriga um museu simples e emocionante. A inscrição “Caraguatay – Aqui comenzó la historia”, escrita em cartaz que encima a entrada geral do museu dá o tom do que o visitante vai encontrar nas salas quase desnudas.
A riqueza maior do memorial são fotos de Che menino, com a mãe e o pai, em cenas domésticas.
Em uma delas, por exemplo, o garoto testa com o pé a temperatura do arroio Salamanca, que serpenteia cantante por trás da propriedade, gerando pequena cascata e piscina natural.
Há ainda cartazes, pinturas, imagens lembrando a trajetória do Comandante. Uma pintura, em especial, marca o lugar, posicionando o Che guerreiro em meio à paisagem missioneira.
No terreno em frente à casa, uma pequena rótula apresenta árvores plantadas por filhos de Che quando da reinauguração do memorial, há quase dez anos. Lá estão os nomes de Camilo, Aleida e Celia.
E há também a indefectível lojinha, onde o visitante encontra recuerdos do passeio, como botoms, chaveiros, canetas, camisetas e erva mate guevarista.
Sai-se de lá de espírito leve, ainda que circunspecto. A história de Che pode ter começado ali, mas sua luta continua, abraçada por milhares e milhões no mundo, emocionando até velhinhos de barba branca.
Vamo que vamo!
Antes de ir definitivamente, assista também ao vídeo completo da entrevista que fizemos com o Diógenes de Oliveira, que teve um encontro com Che quando estava em treinamento de guerrilha em Cuba na década de 1960.
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