A trama é mais do que sabida, os personagens são conhecidos, o final da história não é segredo; no entanto, “O Processo” surpreende. Documentário que acompanha a tramitação do impeachment da presidenta Dilma no Senado, o filme de Maria Augusta Ramos é um soco no estômago. Enquanto as cenas se desenrolam na tela, o espectador é assaltado de terror, culpa, vergonha, raiva: como é que isso pode acontecer com o Brasil?
Não tem música, não tem narração, não tem entrevistas, não tem cineasta se explicando, não tem guia sublime carregando o público pela mão. A história é contada pela própria história, pelo encadeamento dos fatos, em que os atores são senadores, deputados, advogados, a própria presidenta; de suas falas, expressões, sorrisos, esgares é construído o registro dessa trajetória kafquiana –não por acaso empresta seu título da obra principal do filho de Praga, que virou sinônimo, como ensinam os dicionários, de “ ambiente de pesadelo, de irrealidade, de angústia e de absurdo; diz-se do que, no âmbito burocrático ou na civilização atual, se afasta da lógica ou da racionalidade”.
“Queria mostrar esse teatro da Justiça”, disse Maria Augusta Ramos ao TUTAMÉIA em uma conversa em mesa de bar, na última da série de entrevistas que concedeu em São Paulo como parte das atividades de lançamento de seu filme na cidade.
“E o que você viu, mais teatro ou mais Justiça”, perguntamos a ela. Brasiliense de 54 anos, responde com sua voz miúda que esse julgamento quem deve fazer é o público.
Mantém a postura de distanciamento presente no documentário, que faz da sobriedade uma arma, além de afirmação estética –até os letreiros são simples, despojados. Afinal, a história que está contada é tão fantástica, absurda, labiríntica, histriônica, violenta que basta por si mesma.
Para contá-la, Maria Augusta Ramos e sua equipe mergulharam em mais de quatrocentas horas de filmagem –“muita coisa bacana ficou para trás”, lamenta ela na entrevista que você pode acompanhar no vídeo acima.
Jornalistas, podemos imaginar o ouro de informação que ela teve nas mãos: ao longo do processo, recebeu acesso privilegiado a reuniões dos defensores da democracia, apoiadores da presidenta Dilma, registrando tanto diálogos entre senadores quanto conversas dos advogados na preparação de argumentos e linha de defesa.
Não teve, nos diz Ramos, a mesma liberdade de movimentação entre a turma dos impichadores. Mesmo assim, tratou de registrar com a maior precisão possível a posição e os argumentos –ou a falta deles—dos que tramaram o golpe contra a democracia no Brasil.
Recheado de imagens de gabinetes, corredores, escritórios, auditórios, “O Processo” transcorre sem a presença do povo –decisão emblemática da diretora, como a dizer que, naqueles cenários, a voz da massa se faz ausente, não inspira nem reverbera, mesmo que esteja nas ruas (cenas de manifestações pró e contra o impeachment aparecem no início e no final do documentário).
Registro histórico, o filme não acusa nem denuncia o “golpe nefasto contra o país” –palavras usadas pela diretora no final da noite da segunda-feira, 14.5, em manifestação em defesa da democracia e pela liberdade do presidente Lula. Mas dá a cada espectador armas para decidir o que fazer com esse processo.
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